Imprimir acórdão
Procº nº 756/2003.
3ª Secção. Relator: Bravo Serra.
1. Em 24 de Novembro de 2003 o relator proferiu a seguinte decisão:
1. Não se conformando com o acórdão lavrado em 20 de Fevereiro de 2001 pelo Tribunal de Círculo de Santa Maria da Feira que, pela prática de actos que foram subsumidos ao cometimento de um crime de abuso de confiança, previsto e punível pelo artº 300º, números 1 e 2, alínea a), da versão originária do Código Penal, o condenou na pena de três anos de prisão, cuja execução ficou suspensa pelo período de três anos, sujeita à condição de pagar à assistente A., no prazo de dois anos, a quantia de Esc. 26.909.155$10, acrescida de juros vencidos e vincendos, sendo que Esc. 15.000.000$00 deveriam ser pagos logo no primeiro ano, recorreu para o Tribunal da Relação do Porto o arguido B..
Na motivação adrede produzida, o arguido não suscitou qualquer questão de desconformidade com a Lei Fundamental reportadamente a norma ou normas constantes do ordenamento jurídico infra-constitucional.
Tendo o representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto exarado «parecer» no sentido de o recurso não merecer provimento, foi cumprido o nº 2 do artº 417º do Código de Processo Penal.
Notificado de tal «parecer», o arguido veio responder ao mesmo, igualmente não suscitando na peça processual consubstanciadora da resposta qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 26 de Fevereiro de 2003, negou provimento ao recurso.
De novo inconformado, o arguido recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça.
Este Alto Tribunal, por acórdão de 5 de Junho de 2003, rejeitou o recurso por inadmissibilidade do mesmo, em face do disposto na alínea f) do nº 1 do artº 400º do Código de Processo Penal.
Por intermédio de requerimento dirigido aos “Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça” manifestou o arguido a sua intenção de recorrer para o Tribunal Constitucional do acórdão prolatado no Tribunal da Relação do Porto, o que fez ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, por via de tal recurso pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade das normas ínsitas no nº 2 do artº 400º, dos números 3 e 4 do artº 412º, do artº 127º e do nº 1 do artº 300º, todos do Código de Processo Penal, em dimensões interpretativas que intenta identificar, dizendo que suscitara a questão nas motivações do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça.
Tendo o Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça determinado que o aludido requerimento fosse apreciado no Tribunal da Relação do Porto, o Desembargador Relator deste último órgão de administração de justiça, por despacho de 18 de Setembro de 2003, veio admitir o recurso.
2. Não obstante tal despacho, porque o mesmo não vincula este Tribunal
(cfr. nº 3 do artº 76º da Lei nº 28/82) e porque se entende que o recurso não deveria ter sido admitido, elabora-se, ex vi do nº 1 do artº 78º-A daquela Lei, a vertente decisão, por intermédio da qual se não toma conhecimento da presente impugnação.
Na verdade, como deflui do relato supra efectuado, precedentemente ao acórdão tirado em 26 de Fevereiro de 2003 pelo Tribunal da Relação do Porto, o ora recorrente não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade dirigida a norma ou normas jurídicas, designadamente aquelas que agora refere no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
Ora, postando-nos perante um recurso esteado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, impendia sobre o impugnante o ónus de, antes de ser proferido o aresto que agora deseja submeter à censura deste órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa, ter equacionado uma tal questão, sendo que dispôs de ampla oportunidade processual para o fazer.
Como se viu, um equacionamento de questões de inconstitucionalidade só surgiu na motivação do recurso que desejou interpor para o Supremo Tribunal de Justiça, recurso esse que foi rejeitado, por inadmissibilidade.
Estando, como está, em causa o acórdão tirado no Tribunal da Relação do Porto, e porque a esse tribunal de 2ª instância lhe não foi colocada qualquer questão de inconstitucionalidade, obviamente que o mesmo se não podia debruçar sobre a questão, pelo que, necessariamente, se haverá que concluir que não foi cumprido o requisito pressupositor do vertente recurso.
Termos em que se não conhece do respectivo objecto.
Custas pelo impugnante, fixando a taxa de justiça em seis unidades de conta”.
É da transcrita decisão que, pelo arguido B., vem deduzida reclamação.
Para tanto, utiliza o reclamante a seguinte corte argumentativa:
“........................................................................................................................................................................................................................................................................................
Ora, a decisão ora reclamada não terá tido em conta:
- Por um lado, que a questão de inconstitucionalidade apenas terá surgido com o próprio Acórdão da Relação do Porto;
- Por outro lado e, em consequência, que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade antes de proferido o mesmo Acórdão. II Efectivamente, antes de proferido o Acórdão da Relação do Porto, o recorrente não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade, já que a mesma não surge antes de proferido aquele. Mesmo em relação ao parecer do Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto, as questões de inconstitucionalidade que se pretendem que o Tribunal Constitucional aprecie não se colocam aí. Efectivamente, o Ministério Público, apesar de reconhecer que nenhum obstáculo se levanta em relação ao conhecimento do recurso sobre matéria de facto, considera apenas que ‘No caso vertente, o arguido manifesta uma clara discordância com a decisão sobre a matéria de facto, invocando os vícios previstos nas als. a) e c) do n.º 2 do artº 410°
(insuficiência da matéria de facto para a decisão e o erro notório da apreciação da prova)’. E, em consequência de considerações teóricas, em abstracto, sem recurso a quaisquer circunstâncias alegadas pelo recorrente, conclui ‘deste modo, a matéria de facto deve considerar-se assente’. Ou seja, na opinião do Ministério Público o recorrente não impugnou a matéria de facto nos termos do artigo 412° do C.P.P., mas apenas alegou os vícios previstos no artigo 410º do C.P.P que, ao considerar não se verificarem e concordando plenamente com a pena imposta, ‘afigura-se que o recurso não merece provimento’. Deste modo, também o recorrente não dispôs de ‘ampla’ oportunidade processual
(como se considera na decisão sumária), para suscitar a questão que inconstitucionalidade antes de proferido o Acórdão da Relação do Porto. Na verdade, se o recorrente não fundamenta juridicamente o seu recurso, não especificando em que termos impugna a matéria de facto ou a decisão proferida em primeira instância, tal questão não é posta em causa pelo Ministério Público, partindo do princípio que a posição do recorrente era a que definiu nos termos supra expostos. E, não podemos olvidar que estamos no âmbito de um Parecer e não de uma decisão, não se colocando aí as questões de inconstitucionalidade tal e qual formuladas nas motivações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e em sede de recurso para o Tribunal Constitucional.
O que sucedeu é que o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto emite um juízo novo de inconstitucionalidade. III Nos termos do requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, o recorrente baseia o mesmo: a) Na interpretação que o Tribunal da Relação do Porto dá à norma constante do artigo 410°, n.º 2 do C.P.P., segundo a qual pertence ao domínio da convicção do juiz e, portanto, não desencadeando os vícios previstos nesse mesmo artigo, a resolução de uma questão prejudicial decorrente de documento junto aos autos - procuração - e referenciado como meio de prova na decisão de 1ª instância
(questão subjacente aos factos dado como provados e em estrita conexão destes com a decisão proferida em 18 instância) - interpretação esta que em nenhum momento processual anterior ao aresto recorrido foi efectuada. Tanto é que o Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto, como supra foi mencionado e se verifica pela leitura do respectivo Parecer, substitui-se ao recorrente quanto à fundamentação jurídica do recurso e apenas, em consequência de consideração teóricas, em abstracto, sem recurso a quaisquer circunstâncias concretas alegadas pelo recorrente, conclui ‘deste modo, a matéria de facto deve considerar-se assente’. Só o Acórdão da Relação do Porto faz tal interpretação sendo que, só a partir daqui ocorrem as circunstâncias que efectivamente permitem ao recorrente suscitar a questão de inconstitucionalidade em causa, tal como o fez. b) Na interpretação que o Tribunal da Relação do Porto faz da norma constante do artigo 412°, n.º 3 e 4 do C.P.P., segundo a qual atribui ao não cumprimento dos
ónus previstos nos n.º s 3 e 4 desse normativo, o efeito da imediata improcedência do recurso. sem que previamente seja feito o convite ao recorrente para suprir tal deficiência. Não há dúvida que, após a motivação de recurso para o Tribunal da Relação do Porto e antes de proferido o respectivo Acórdão, o único momento processual em que o recorrente intervém é o do Parecer proferido pelo Ministério Público. Ora, nesse mesmo Parecer jamais o Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto faz tal interpretação, tanto mais que considera que o recorrente nem sequer impugnou a decisão proferida sobre a matéria de facto, com base no artigo
412°, n.º 3. No Acórdão recorrido sim, no ponto 1. da ‘Fundamentação’ refere-se que:
‘Para criticar a matéria de facto, além da invocação do art.410º do CPP, o arguido emprega também metodologia com vista a poder socorrer-se do mecanismo de alteração da matéria de facto, previsto no art.412° do CPP. Contudo, os ns. 3 e 4 desta norma impõem ao recorrente diversos ónus, cuja inobservância importa a consequência de nessa parte o recurso não poder ser tido em conta. Justamente esses 6nus são a discriminação, a individualização dos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados; bem como a indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida. O recorrente não cumpriu tais ónus, pelo que se encontra este Tribunal impossibilitado legalmente de apreciar os conteúdos de declarações e depoimentos que referencia [. . .1 Em jeito de conclusão se pode dizer que, não se mostrando cumpridos todos os actos formais necessários para validamente provocar o reexame da matéria de facto, terá que se considerar esta definitivamente assente.’ Só aqui é dada a interpretação ao artigo 412°, n.º 3 e 4 do C.P.P. que o recorrente considera inconstitucional e, por isso, recorre e reclama. c) Na interpretação que o Tribunal da Relação do Porto faz da norma constante do artigo 127° do C.P.P., segundo a qual se situa no âmbito do princípio da livre convicção do juiz, a apreciação dos documentos referidos na sentença como meio de prova sem mais (ou seja, sem a ponderação dos seus elementos objectivos e confrontação com as regras da experiência comum limitativas da livre convicção), quando um dos documentos - procuração com poderes especiais - gera uma questão prejudicial de resolução prévia ao processo crime, nos termos do artigo 7° do C. P. P. de conhecimento oficioso e que, segundo as normas da experiência comum e do disposto nos artigos 1157° e ss. do Código Civil e, nos termos do artigo 169° do C. P. P. , se situa fora do âmbito da livre apreciação da prova. Mais uma vez, só no Acórdão da Relação do Porto é dada esta interpretação ao artigo 127° do C. P. P. que o recorrente considera inconstitucional e, por isso, recorre e reclama. O Parecer Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto muito longe da interpretação dada ao artigo 127° do C. P. P. no Acórdão da Relação do Porto
- apenas conclui que a matéria de facto deve ser considerada assente em consequência de consideração teóricas e em abstracto, sem qualquer referência a circunstâncias concretas que) in casu, são susceptíveis de integrar os conceitos jurídicos em causa. Mais uma vez, só o Acórdão da Relação do Porto faz tal interpretação sendo que, só a partir daqui ocorrem as circunstâncias que efectivamente permitem ao recorrente suscitar a questão de inconstitucionalidade em causa, tal como o fez. d) Na interpretação que o Tribunal da Relação do Porto faz da norma constante do artigo 300°, n.º 1 do Código Penal de 1982, segunda a qual se consideram preenchidos os elementos integradores do tipo legal de crime de abuso de confiança ao considerar-se provado que o arguido utilizou quantias em dinheiro em proveito próprio, integrando-as no seu património e que o mesmo actuou sempre de forma livre e consciente, com o propósito de delas se apoderar e fazer suas, sem menção dos factos que demonstram que houve inversão do título da posse pelo arguido e dos factos comprovativos de que este passou a dispor da coisa como se fosse sua. Quanto a esta interpretação, o Acórdão da Relação do Porto é claro e demonstrativo da mesma no seu ponto 4. da ‘Fundamentação’, sendo que o Parecer do Ministério Público junto daquele Tribunal apenas se pronuncia acerca da medida da pena. Concluindo, o Acórdão da Relação do Porto emite um novo juízo de inconstitucionalidade, impossibilitando ao recorrente oportunidade processual anterior de se pronunciar acerca do mesmo. Só o Acórdão da Relação do Porto faz as interpretações supra mencionadas que, não obstante o recorrente as ter suscitado nas motivações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (ainda antes de recorrer para o Tribunal Constitucional) só a partir daqui ocorrem as circunstâncias que efectivamente permitem ao recorrente suscitar a questão de inconstitucionalidade em causa, tal como o fez.
........................................................................................................................................................................................................................................................................................”
Ouvido sobre a reclamação, o Ex.mo Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido de a mesma manifestamente carecer de fundamento, já que o acórdão da Relação do Porto “não pode seguramente perspectivar-se como ‘decisão surpresa’ que - pelo seu carácter
‘insólito’ ou ‘imprevisível’ - legitimasse a suscitação das questões de constitucionalidade, colocadas apenas em momento ulterior à respectiva prolação”.
Por seu lado, a assistente A. igualmente propugnou pelo indeferimento da reclamação, a qual, na sua óptica, mais não constituiria que uma “manobra dilatória”.
Cumpre decidir.
2. A reclamação em apreço não abala a decisão ora impugnada.
Na verdade, o acórdão tirado no Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao recurso do acórdão condenatório proferido pelo Tribunal de Círculo de Santa Maria da Feira e, na motivação apresentada, o então recorrente não suscitou quaisquer questões de inconstitucionalidade, designadamente as conexionadas com normas adjectivas que estabelecem (quer em face do seu teor literal, quer em face de um sentido interpretativo que lhes seja conferido) os domínios da livre convicção do juiz em face de documentos juntos aos autos, gerando eventualmente a resolução de uma questão prévia ou prejudicial relativamente ao feito criminal, ou com normas substantivas definidoras do tipo legal de crime pelo qual o impugnante foi condenado na 1ª instância.
E, como, na decisão tomada na 1ª instância, esses normativos constituíram (pelo menos por entre outros) o seu suporte jurídico, obviamente que impendia sobre o agora reclamante suscitar a respectiva questão de desconformidade com a Lei Fundamental.
O que não fez.
Por outro lado, pelo que tange à norma (ou às normas) impositora de ónus aos recorrentes, quando os mesmos intentam pôr em causa, no recurso, a matéria de facto, é por demais claro que, após ter sido emitido o
«parecer» pelo Representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto - «parecer» esse que anotou que, dados os termos em que foi efectuada a motivação, o então recorrente não especificou ou discriminou os pontos da matéria dada por assente na 1ª instância em relação aos quais havia discordância, nem indicou quais as provas que impusessem decisão diversa da recorrida ou as provas que houvessem de ser renovadas, pelo que tal matéria havia que ser dada por assente -, o impugnante, notificado que foi desse
«parecer», caso entendesse que a obrigatoriedade de efectuar as especificações ou discriminações era algo de desarmónico com o Diploma Básico (ao menos se não viesse a ser convidado a efectivá-las), teria de, na resposta que deduziu ao aludido «parecer», equacionar essa questão.
O que também não fez.
Neste contexto, não merece censura a decisão em apreço, pelo que se indefere a reclamação, condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 8 de Janeiro de 2004
Bravo Serra Gil Galvão
Luís Nunes de Almeida