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Proc. n.º 485/99
1ª Secção Relator: Cons. Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM NA 1.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1.1. A sociedade comercial denominada A. pretende recorrer para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido na 2ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo que negou provimento ao recurso interposto pela mesma recorrente de acórdão da 2ª Secção do Tribunal Central Administrativo que, por sua vez, negara provimento ao recurso interposto de sentença emitida em 17 de Janeiro de
1997 no Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Setúbal por força da qual improcedeu a impugnação judicial deduzida pela recorrente ao IVA e IRC que lhe foram liquidados relativamente a 1989 e a 1991.
O recurso é interposto nos termos da alínea b) do n. 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC) e visa impugnar as interpretações normativas dos artigos 40º do Código de Processo Tributário, 396º do Código Civil e 655º do Código de Processo Civil aplicadas na decisão recorrida, alegadamente violadoras do disposto nos artigos 13º e 266º da Constituição.
1.2. Já depois de junta a alegação, a recorrente foi convidada a pronunciar-se sobre questão prévia atinente à admissibilidade do seu recurso, apresentada essencialmente nos seguintes termos:
«Acontece que o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.1 do artigo 70º da LTC cabe das decisões que apliquem, como razão de decidir, normas acusadas de inconstitucionais, e a verdade é que a decisão recorrida fundamenta a improcedência do recurso essencialmente numa deficiência técnica da respectiva alegação, que seria inábil para admitir “um juízo conducente à revogação ou anulação” do acórdão recorrido. Tal decisão não faz qualquer aplicação das normas acusadas de inconstitucionais.
Sendo assim, é plausível que, por falta dos respectivos pressupostos, o Tribunal não conheça do recurso.»
A recorrente respondeu, concluindo, em suma:
«...
– O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo ao julgar improcedente o recurso, fundamentando a sua decisão no princípio da livre apreciação da prova previsto, entre outros, no artigo 655º do CPP, violou o princípio constitucional de igualdade de tratamento;
– A livre apreciação da prova não constitui um poder discricionário das instâncias e da sua aplicação não pode resultar violação dos princípios constitucionais;
– A aplicação do artigo 655º do CPC com o sentido e o alcance que lhe foi atribuído, resultou num tratamento desigual, pelo que viola os deveres que devem presidir à actuação da justiça, conforme artigo 266º n. 2 da CRP;
Em face do exposto, deve o princípio da livre apreciação da prova, consignado nas normas invocadas ser considerado inconstitucional, quando aplicado e interpretado da forma que se descreveu, resultando numa desigualdade de tratamento dos cidadãos perante a lei, ao utilizar um critério de valoração da prova produzida violador do direito constitucional.»
2. Cumpre, portanto, e antes do mais, verificar se é possível conhecer do presente recurso.
O acórdão recorrido julgou da seguinte forma:
«As conclusões do recurso interposto para este STA são, ipsis verbis, as que foram apresentadas aquando do recurso para o TCA, indo-se ao ponto de pedir a revogação da sentença da 1ª Instância quando a decisão ora recorrida é o acórdão do TCA. Este, na verdade, saiu incólume das conclusões do recurso, por não lhe ser assacado qualquer erro ou vício. Ora, sabido como é que o recurso jurisdicional visa a apreciação da decisão recorrida e determinando-se o seu âmbito em face das conclusões ou alegações da recorrente, conclui-se não poder este STA, por falta de alegação de vício ou erro de que eventualmente padeça, emitir um juízo conducente à revogação ou anulação da peça recorrida. Daí que o recurso nunca pudesse lograr êxito. Mas, mesmo que assim não fosse, e se se entendesse que a recorrente nas preditas conclusões, dirige um ataque ao acórdão do TCA, melhor sorte não merecia o recurso. Na verdade, toda a discordância da recorrente assenta na matéria fixada pelas instâncias. Sucede, porém, que este STA, nos processos inicialmente julgados na 1ª Instância, como é o caso, apenas conhece da matéria de direito (v. art. 21º n.º
4 do ETAF). Por outro lado, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa da disposição expressa na lei que exige certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força do determinado meio de prova (v. art.
722º n.º 2 do CP Civil). Ora, não vindo alegada ofensa deste tipo, forçoso é concluir que a matéria factual fixada pelas instâncias não pode sofrer alterações. De qualquer forma, a este propósito, vigora como se alcança no art. 655º do CP Civil, o princípio da livre apreciação das provas pelo julgador. Termos em que se acorda em negar provimento ao recurso.»
A leitura deste trecho revela que a 2ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo decidiu negar provimento ao recurso jurisdicional interposto pela recorrente mediante uma fundamentação complexa, exposta em planos de valência subsidiária.
Na verdade, a decisão adoptou um motivo principal de objecção à procedência do recurso, que é indicado em primeiro lugar: o recurso “nunca” poderia lograr
êxito, diz-se, porque “a decisão [então] recorrida saiu incólume das conclusões do recurso, por não lhe ser assacado qualquer erro ou vício”. Sendo, porém, certo que os recursos jurisdicionais, cujo âmbito é delimitado pelas conclusões da respectiva alegação, devem visar a apreciação pelo tribunal superior das decisões recorridas, concluir-se-ia não poder o Supremo Tribunal Administrativo,
“por falta de alegação de vício ou erro de que eventualmente padeça, emitir um juízo conducente à revogação ou anulação da peça recorrida.”
É certo que, após esta asserção, se abordam outros motivos de improvimento do recurso que radicariam quer na circunstância de o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não poder ser objecto de recurso de revista, salvo casos então irrelevantes, nos termos do invocado artigo 722º n.º
2 do Código de Processo Civil, o que não foi alegado, quer na circunstância de no caso em presença vigorar, “como se alcança do artigo 655º do Código de Processo Civil, o princípio da livre apreciação das provas pelo julgador.”
A referência ao artigo 655º do Código de Processo Civil surge, portanto, num patamar de fundamentação manifestamente acessório, quase excrescente, inútil para determinar a reforma da decisão no caso de se concluir pela sua imprestabilidade como fundamento do veredicto.
A característica de instrumentalidade do presente recurso impõe como “condição do conhecimento do respectivo objecto” a possibilidade de repercussão do julgamento que nele vier a ser efectuado na decisão recorrida – como se afirma no Acórdão n.º 441/02 (www.tribunalconstitucional.pt). Isto é: quando a decisão recorrida assenta numa pluralidade de fundamentos, cada um deles suficiente para conduzir ao mesmo resultado, a não impugnação de algum deles provoca a inutilidade do respectivo julgamento uma vez que a sua subsistência determina a não repercussão, na decisão, do julgamento da questão de constitucionalidade.
Ora isto é assim quando, como no caso em apreço, o segmento decisório principal permanece inatacado no recurso de constitucionalidade.
3. Pelos fundamentos expostos, acordam em não conhecer do objecto do recurso. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 11 UC.
Lisboa, 13 de Abril de 2004
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida