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Proc. n.º 292/03
1ª Secção Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. deduziu, junto do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto, impugnação judicial da liquidação adicional do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) respeitante ao ano de 1994 e correspondentes juros compensatórios, na importância total de 10.879.681$00.
Invocou como fundamentos da sua pretensão: violação do direito fundamental de audiência; falta de fundamentação; violação do artigo 38º do CIRS, em virtude de os serviços fiscais não terem demonstrado a verificação dos pressupostos da tributação por métodos indiciários; inexistência de facto tributário; violação dos princípios da justiça e da boa fé.
Por despacho do Director de Finanças, foi defendida a estabilidade do acto tributário, em concordância com o parecer da Divisão de Justiça Administrativa e Contenciosa da Direcção de Finanças do Porto (fls. 192 e seguintes).
Na contestação (fls. 210), a Representante da Fazenda Pública subscreveu na íntegra o mencionado parecer jurídico, pedindo que a impugnação fosse considerada improcedente.
O Ministério Público também emitiu parecer no sentido da improcedência da impugnação (fls. 214 e seguinte).
2. Por sentença de 26 de Novembro de 2001, o juiz do 2º Juízo do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto decidiu julgar a impugnação improcedente por não provada e, em consequência, absolveu a Fazenda Pública do pedido (fls. 217 e seguintes).
3. Inconformado com a mencionada sentença, A. dela interpôs recurso jurisdicional para a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo (fls. 225), tendo nas alegações respectivas (fls. 240 e seguintes) concluído do seguinte modo:
“[...] D) A douta sentença, ao não assacar à liquidação impugnada a violação dos princípios da boa fé, da justiça e da proporcionalidade, incorreu em erro de julgamento. E) Finalmente, a douta sentença, porque interpretou e aplicou o disposto no art.
46º, n° 2, do CIRC, ex vi do art. 54º, n° 2, do CIRS, nas redacções vigentes em
1994, cujas normas violam os princípios da capacidade contributiva, da justiça, da proporcionalidade e da proibição dos efeitos necessários e automáticos de sanções, consagrado no art. 30º, n° 4, da CRP, é nula e não pode manter-se na ordem jurídica.”
O Ministério Público emitiu parecer no sentido de que ao recurso devia ser negado provimento (fls. 250).
4. Por acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo de 26 de Novembro de 2002, foi negado provimento ao recurso (fls.
253 e seguintes).
A propósito das “nulidades e erros” imputados à sentença, disse o Tribunal Central Administrativo:
“[...] I) – Se a sentença é nula, por que interpretou e aplicou o disposto no art. 46º, nº 2, do CIRC, ex vi do art. 54º, nº 2, do CIRS, nas redacções vigentes em 1994, cujas normas violam os princípios da capacidade contributiva, da justiça, da proporcionalidade e da proibição dos efeitos necessários e automáticos de sanções, consagrado no art. 30º, nº 4, da CRP (conclusões d) e e) -). Quanto a esta questão, vê-se do petitório (arts. 72° e segs.) que o recorrente assacou ao acto tributário a violação dos princípios da justiça e da boa fé, sendo que a violação de tais princípios, na perspectiva do impugnante, resulta da insignificante diferença entre o lucro tributável declarado, com a correcção técnica efectuada, e o lucro tributável a que se chegou com a utilização do método indiciário (mais esc. 457.958$00) e a sanção que decorre do art. 46°, nº
2, do CIRC, impossibilidade de abater os prejuízos acumulados dos anos anteriores (no valor de esc. 32.927.062$00) no ano [em] que o citado lucro foi encontrado através do método indiciário, sendo que não tem possibilidade de criação de lucros futuros, pelo não exercício actual ou esperável de qualquer actividade de natureza comercial ou industrial.
[...] Nos termos do nº 1 do art° 144º do CPT eram causas de nulidade da sentença em processo judicial tributário a falta de assinatura do juiz, a não especificação dos fundamentos de facto e de direito da decisão, a oposição dos fundamentos com a decisão, a falta de pronúncia sobre questões que o juiz deva apreciar ou a pronúncia sobre questões que não deva conhecer. Assim, da análise da sentença recorrida resulta que a Mº Juiz «a quo» se pronunciou especificamente e de forma clara, rigorosa e explícita sobre a causa de pedir invocada pelo impugnante e que agora nos ocupa, para justificar o pedido de anulação do acto. Doutro modo, a sentença é uma decisão jurisdicional, dos tribunais no exercício da sua função jurisdicional que, no caso posto à sua apreciação, dirimem um conflito de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas fiscais (art. 3° do ETAF). Ela conhece do pedido e da causa de pedir, ditando o direito para o caso concreto, pelo que a sentença pode estar viciada de duas causas que poderão obstar à eficácia ou validade da dicção do direito: – por um lado, pode ter errado no julgamento dos factos e do direito e então a consequência é a sua revogação; por outro, como acto jurisdicional, pode ter atentado contra as regras próprias da sua elaboração e estruturação ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra da qual é decretada e então torna-se passível de nulidade, nos termos do art. 668° do CPC. Cremos que o caso «sub judicio» se integra na primeira hipótese já que o que a recorrente pretende é que o acto tributário violou os princípios constitucionais em apreço (violação de lei). Termos em que por estes motivos o provimento do recurso somente poderá determinar a revogação da sentença e a anulação do acto da liquidação impugnada e não a anulação daquela. Donde se conclui que a sentença não está afectada na sua validade jurídica por omissão de pronúncia, não se verificando a arguida nulidade porque, no contexto precisado, tendo a sentença recorrida decidido a questão que lhe fora posta e justificado a sua decisão, não cometeu erro algum de actividade jurisdicional até porque aplicou e interpretou correctamente o direito aos factos relevantes, sem afrontar os princípios constitucionais referidos.
[...].”
Sobre a invocada “falta de verificação dos pressupostos para o recurso a métodos indiciários assim como por inexistência de facto tributário e violação do princípio da capacidade contributiva”, decidiu-se no acórdão do Tribunal Central Administrativo:
“[...] Foi com base nesta factualidade que a sentença recorrida concluiu, em síntese: por um lado, estavam reunidos os pressupostos de que a lei faz depender o recurso a métodos indiciários de fixação da matéria tributável (nos termos do art. 38° do CIRS), sendo que tais factos hipotecam, de modo irremediável, a credibilidade da respectiva contabilidade. A al. d) do n° 1 do art. 38° do CIRS estatuía que a determinação do lucro tributável por métodos indiciários se verificará sempre que ocorram erros ou inexactidões no registo das operações ou indícios seguros de que a contabilidade ou os livros de registo não reflectem a exacta situação patrimonial e o resultado efectivamente obtido. O imperativo constitucional de que a tributação das empresas deverá incidir sobre o seu rendimento real [...] implica um acréscimo dos deveres de cooperação do sujeito passivo para com a AT. Entre eles, destaca-se a obrigação que decorre do art. 78° do CPT e 98° do CIRC ou, no caso, dado o regime previsto nos arts. 39° e 46° do CIVA, a que decorre do registo e conservação dos duplicados dos talões de venda ou demais documentos referidos no n° 2 do art. 52° do CIVA. Embora o sistema fiscal português consagre o método da declaração do contribuinte no apuramento da matéria tributável (arts. 57° a 61° do CIRS, 16° do CIRC e 28° a 40° do CIVA), nem sempre o apuramento da matéria colectável se fará com base na declaração do contribuinte: desde logo, como é óbvio, não se fará quando o contribuinte não apresente a declaração, caso em que a AF procederá oficiosamente à sua determinação, com base nos elementos de que dispuser ou que lhe sejam fornecidos pelos serviços de fiscalização; não se fará quando, como resulta do n° 2 do art. 76° do CPT, a declaração não seja apresentada nos termos previstos na lei ou quando o contribuinte não forneça à AF os elementos indispensáveis ao controlo da situação tributária dele; não se fará também quando do controlo efectuado resultar que a matéria colectável apurada na declaração ou com base nos elementos por ela fornecidos não corresponde à realidade. Nos termos do art. 78° do CPT (correspondente ao art. 75º da LGT, «quando a contabilidade ou escrita do sujeito passivo se mostre organizada segundo a lei comercial ou fiscal, presume-se a veracidade dos dados e apuramentos decorrentes, salvo se se verificarem erros, inexactidões ou outros indícios fundados de que ela não reflecte a matéria tributável efectiva do contribuinte». Assim, se a declaração do contribuinte estiver de acordo com os elementos constantes da sua contabilidade ou escrita, esta se mostrar organizada nos termos da lei e não se verificarem erros, inexactidões ou outros indícios fundados de que ela não corresponde à realidade, presume-se que a matéria tributável declarada é a real. Como se disse, a al. d) do n° 1 do art. 38° do CIRS – aplicável ex vi do art.
84°-1 do CIVA – estatuía que a determinação do lucro tributável por métodos indiciários se verificará sempre que ocorram erros ou inexactidões no registo das operações ou indícios seguros de que a contabilidade ou os livros de registo não reflectem a exacta situação patrimonial e o resultado efectivamente obtido. E o seu n° 2 dispunha que a aplicação dos métodos indiciários em consequência de anomalias e incorrecções da contabilidade ou dos livros de registo só poderá verificar-se quando não seja possível a comprovação e a quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação do lucro tributável, devendo, então, a determinação desse lucro fazer-se de acordo com o disposto no art. 52° do CIRC, com as necessárias adaptações (nº 5 do mesmo art. 38° do CIRS). A fixação da matéria tributável por métodos indiciários constitui, pois, um método excepcional de tributação do rendimento que, em regra, se faz com base na declaração do sujeito passivo, alicerçada nos elementos constantes da respectiva contabilidade. No caso sub judice estavam, ou não, verificados os pressupostos que permitem à AT, afastando-se dos valores declarados pelo recorrente, recorrer a estimativas ou presunções para determinar o seu lucro tributável? Tenha-se presente que é à AT que compete demonstrar, fundamentadamente, que a escrita não merece confiança, para que seja possível recorrer a estimativas ou presunções (métodos indiciários) na fixação da matéria tributável [...]. Feita essa demonstração, cabe então ao contribuinte demonstrar, e não só gerar fundada dúvida, que houve «erro ou manifesto excesso na matéria tributável quantificada»
(cfr. art. 121°, n° 3, do CPT). No caso vertente a AT, depois efectuar as diligências que houve por convenientes, concluiu que a escrita, pese embora a sua correcção formal, não merecia credibilidade. Mais concluiu a AT que, dada a falta de tais elementos, não podia apurar directamente a matéria tributável, através das chamadas correcções técnicas, motivo por que procedeu à determinação da mesma por presunções. Ou seja, a AT considerou estarem verificadas as situações previstas na citada al. d) do n° 1 e no n° 2, ambos do art. 38° do CIRS – veja-se, quanto ao IVA os arts. 16° n° 3 e 51° nºs 1 e 2, do CIRC e 82° e 84° do CIVA –, devendo fundamentar a sua decisão (arts. 268° n° 3, da CRP, 125° do CPA, 21° e 81° do CPT e 53° n° 1 do CIRC), que legitima a fixação do lucro tributável por métodos indiciários, já que constatou erros e omissões no registo das operações e considerou existirem indícios fundados de que a contabilidade não reflecte a exacta situação patrimonial e o resultado efectivamente obtido e já que considerou não ser possível a comprovação e a quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação do lucro tributável. E, na verdade, face aos factos provados, vê-se que aqueles erros e omissões ocorrem na escrita do recorrente e que, face à ausência dos elementos em falta, não é possível, dada a sua amplitude e relevância, a comprovação e a quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação do lucro tributável, pelo que estavam verificados esses pressupostos que permitem à AT, afastando-se dos valores declarados pelo contribuinte, recorrer a estimativas ou presunções para determinar o seu lucro tributável, não tendo o recorrente, por sua vez, logrado fazer prova de que aqueles pressupostos em que a AT fez assentar a sua decisão de aplicação de métodos indiciários se não verificam ou estão errados. Consequentemente, não merece qualquer reparo a conclusão de que a contabilidade do recorrente não reflecte a sua realidade negocial. Por outro lado, e como refere o Mº Juiz recorrido, a tributação tem de ser efectuada pelo rendimento real e efectivo; este, em 1ª linha, será apurado segundo a declaração do contribuinte; contudo, como forma de controlar e de evitar a fraude e evasão fiscal, são cometidos à Administração Fiscal, através dos serviços da DGCI, um poder/dever de fiscalização (cfr. arts. 124° e 125° do C.I.R.S. e 75° do CPT). Ora, apurando-se anomalias e/ou irregularidades e não sendo possível em face da contabilidade a quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à determinação da matéria colectável, esta será apurada por métodos indiciários
(cfr. art. 38° do C.I.R.S.). Como já se demonstrou, a AF no caso concreto podia estabelecer presunções quer no sentido de que o recorrente exerceu a actividade, quer no sentido de que obtivera lucros. Se a AT podia presumir a existência de lucros isso pressupõe que seja claramente assumida a actividade. Se um indivíduo possui um estabelecimento comercial ou industrial, não pode dizer que não exerce a actividade. Pelo que ficou dito, tem de entender-se que a AT ao apurar determinados factos, deve verificar se os mesmos se acomodam à lei tributária, não operando com presunções que não estejam previstas na lei fiscal e proibidas pelo principio da legalidade, não sendo fundado os vícios de INEXISTÊNCIA DE FACTO TRIBUTÁRIO e VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA invocados, pois estamos perante um critério seguido pela AF que se revela manifestamente acertado e aceitável e que se contém no campo da legalidade, não dando assim fundamento ao tribunal para anular o acto por inexistência de facto tributário.
[...] O facto tributário não só se verificou como resulta do relatório da fiscalização como foi feita a liquidação, tornando-se exigível ao contribuinte. E isso sem ferir o princípio da capacidade contributiva. Na verdade e como se viu, nos termos do artigo 76°, nº 2 do Código de Processo Tributário, o apuramento da matéria tributável é feito com base nas declarações dos contribuintes, desde que as mesmas estejam apresentadas nos termos previstos na lei e sejam fornecidos à Administração Fiscal os elementos indispensáveis à verificação da sua situação tributária. E claro que quando a contabilidade ou escrita do sujeito passivo se mostra organizada segundo a lei comercial ou fiscal, se presume a veracidade dos dados e apuramentos decorrentes, salvo se se verificarem erros, inexactidões ou outros indícios fundados de que ela não reflecte a matéria tributável efectiva do contribuinte (vide o artigo 78° do mesmo Código – hoje o artigo 75° da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n° 398/98, de 17 de Dezembro). Em nosso entender a interpretação expressa na sentença não privilegia a justiça formal, sobre a justiça material, aproximando-se do princípio da tributação do lucro real. A justiça material não é, por força do princípio da legalidade fiscal, a justiça no exclusivo interesse de qualquer das partes mas a justiça distributiva, que é a visada pelo direito fiscal. Com efeito, a justiça tributária alcança-se pela tributação de cada um, de acordo com a sua capacidade contributiva (art. 103-1 da CR, versão actual, anterior art. 106-1).
[...] A não declaração de todos os custos e proveitos obtidos ou incorridos em determinado ano ou exercício económico é que constitui não só violação do princípio da especialização de exercícios, como também viola o princípio da tributação do lucro real, porque se não forem declarados, pelo contribuinte, num determinado ano ou exercício, todos os proveitos e lucros a ele economicamente imputáveis, o lucro que vier a apurar não pode, naturalmente, corresponder ao lucro real desse ano ou exercício, e é em relação a esse período de tempo, que o lucro real, para efeitos de tributação, deve ser aferido, como vimos. Assim como também não podemos falar de lucro real de um determinado exercício, se nele se considerarem custos ou proveitos de outros anteriores. E isto é assim, independentemente de quem ficar prejudicado – o contribuinte ou o Fisco – com o cumprimento da lei. Ora, sendo a matéria colectável, em regra, determinada com base na declaração do contribuinte, sem prejuízo do seu controlo pela AF, o desrespeito, nessa declaração, das regras apontadas pelo Fisco para justificar a aplicação do método indiciário, impõe ao contribuinte o dever de comprovar que se encontra numa situação em que não era permitido o uso de tal método. Cabia, pois, [ao] recorrente o ónus dessa alegação e prova, nos termos do art.
342-l do CC, sendo certo que, como já vimos, no domínio da Cind. cabia ao contribuinte a prática integral dos actos tributários, desde o apuramento dos factos e respectiva qualificação e valoração segundo os tipos legais de incidência em ordem ao apuramento da matéria tributável, até ao cálculo e entrega do imposto nos cofres do Estado. Por falta de preceito legal a AF no caso concreto não podia estabelecer presunções quer no sentido de que os recorrentes exerceram a actividade de
«vendedores», quer no sentido de que obtiveram lucros. Improcedem, portanto, as Conclusões do recurso.
[...].”
5. Deste acórdão interpôs A. recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação da “inconstitucionalidade material das normas dos art.º
46º, n.º 2, do Código do Imposto sobre o Rendimento das pessoas Colectivas
(CIRC), aplicadas ex vi do art.º 54º, n.º 2, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), nas redacções vigentes em 1994, por violação dos princípios da capacidade contributiva, da justiça, da proporcionalidade e da proibição dos efeitos necessários e automáticos de sanções, tendo tais questões sido suscitadas quer na petição inicial da impugnação judicial quer nas alegações de recurso para o Tribunal Central Administrativo” (fls. 273).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 276.
6. Nas alegações que produziu junto do Tribunal Constitucional (fls. 294 e seguintes), concluiu assim o recorrente:
“A) O douto acórdão sob recurso – como, aliás, a douta sentença por ele conformada – aplicam o art. 46º, nº 2, do CIRC, ex vi do art. 54º, nº 2, do CIRS, no sentido de a aplicação de métodos indiciários num determinado ano vedar em absoluto a dedução de prejuízos fiscais apurados em anos anteriores, independentemente do montante maior ou menor das correcções efectuadas com base em tal metodologia e da impossibilidade de dedução futura desses prejuízos por virtude da cessação da actividade. B) A consagração na lei da possibilidade do reporte de prejuízos concretiza o princípio da solidariedade dos exercícios, que, por sua vez, constitui emanação, no plano tributário, do princípio da capacidade contributiva. C) A aplicação de métodos indirectos na determinação da matéria tributável não afasta o princípio da capacidade contributiva. D) A norma do art. 46º, nº 2, do CIRC, ex vi do art. 54º, nº 2, do CIRS, tal como foi interpretada e aplicada no douto acórdão recorrido – ou seja, no sentido de a aplicação de métodos indiciários num determinado ano vedar em absoluto a dedução de prejuízos fiscais apurados em anos anteriores, independentemente do montante maior ou menor das correcções efectuadas com base em tal metodologia e da impossibilidade de dedução futura desses prejuízos por virtude da cessação da actividade – viola os princípios constitucionais da capacidade contributiva, da proporcionalidade e da justiça. E) A mesma norma viola o princípio da proibição dos efeitos necessários e automáticos de sanções, consagrado no art. 30º, nº 4, da CRP.”
Nas contra-alegações, veio a representante da Fazenda Pública dizer, em síntese, o seguinte (fls. 310 e seguinte):
“[...]
5º - O cerne da alegação do recorrente, reside na invocação da impossibilidade de dedução futura dos prejuízos em causa por, no seu caso, ocorrer cessação de actividade.
6º - Isto é, segundo a alegação do recorrente, é uma especificidade da sua situação – a cessação de actividade – que vem inviabilizar a solidariedade de exercícios (por já não haver exercícios subsequentes para o efeito).
7º - Pelo que não pode ser assacada à disposição legal em causa a impossibilidade de reporte dos prejuízos como pretende o recorrente.
8º - E, consequentemente, a alegada impossibilidade de reporte não constitui um efeito necessário da norma do artigo 46°, n° 2 do CIRC.
9º - Tão pouco a cominação da norma do artigo 46°, n° 2 do CIRC, da automática proibição do reporte de prejuízos, consubstancia qualquer sanção de natureza penal ou sequer contra-ordenacional pelo que se situa fora do âmbito de aplicação do artigo 30°, nº 4 da CRP.
10º - Deste modo, o recorrente não foi, pela via da aplicação do artigo 46°, nº
2, do CIRC, atingido por qualquer efeito susceptível de pôr em causa os princípios constitucionais da capacidade contributiva, da proporcionalidade e da justiça.
11º - E também não viola o princípio da proibição dos efeitos necessários e automáticos das sanções, consagrado no artigo 30°, n° 4 da CRP. Termos em que não ocorre a alegada inconstitucionalidade, devendo ser mantido o douto Acórdão recorrido.”
7. Atendendo a que, nas suas contra-alegações, a representante da Fazenda Pública sustentara que da norma do artigo 46º, n.º 2, do CIRC não decorre a impossibilidade de dedução futura dos prejuízos, decorrendo antes tal impossibilidade de uma especificidade da situação do recorrente (a cessação da respectiva actividade), sendo tal argumentação susceptível de configurar questão prévia impeditiva do conhecimento do objecto do recurso (na verdade, dela pode retirar-se que, para a Fazenda Pública, o tribunal recorrido não aplicou a norma do mencionado artigo 46º, n.º 2, no sentido questionado pelo recorrente e que constitui objecto do presente recurso), foi ordenada a notificação do recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 3º, n.º 3, do Código de Processo Civil, para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias (cfr. despacho de fls.
313).
8. Notificado de tal despacho, veio o recorrente dizer o seguinte (fls.
315 e seguinte):
“[...]
1. A argumentação referida como sendo utilizada pela representante da Fazenda Pública no sentido de da norma do art. 46°, n° 2, do CIRC não decorrer a impossibilidade de dedução futura, em geral, dos prejuízos é acompanhada pelo próprio recorrente nas suas alegações de recurso.
2. Contudo, essa argumentação é marginal à matéria do presente recurso, porquanto a questão de constituciona1idade suscitada incide sobre a conformidade da norma do art. 46°, n° 2, do CIRC (aplicada ex vi do art. 54°, n° 2, do CIRS):
- com os princípios constitucionais da capacidade contributiva, da proporcionalidade e da justiça, quando aquela norma é interpretada no sentido de a aplicação de métodos indiciários num determinado ano vedar em absoluto a dedução de prejuízos fiscais apurados em anos anteriores, independentemente do montante maior ou menor das correcções efectuadas com base em tal metodologia e da impossibilidade de dedução futura desses prejuízos por virtude da cessação da actividade (conclusão D))
- com o princípio da proibição dos efeitos necessários e automáticos de sanções, consagrado no art. 30°, n° 4, da CRP
3. Daí que nem sequer a argumentação utilizada nas contra-alegações da Fazenda Pública constituam questão prévia eventualmente impeditiva do objecto do recurso, devendo os autos prosseguir os seus normais termos.”
Cumpre apreciar.
II
9. Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (supra, 5.), constitui seu pressuposto processual a aplicação, na decisão recorrida, da norma (ou interpretação normativa) cuja conformidade constitucional se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie.
No requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, pediu o recorrente que o Tribunal Constitucional apreciasse a norma do artigo 46º, n.º 2, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), aplicada ex vi do artigo 54º, n.º 2, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), nas redacções vigentes em
1994.
Mais tarde, nas alegações, restringiu o objecto do recurso, atendendo a que passou a questionar apenas um específico sentido da norma: o de a aplicação de métodos indiciários num determinado ano vedar em absoluto a dedução de prejuízos fiscais apurados em anos anteriores, independentemente do montante maior ou menor das correcções efectuadas com base em tal metodologia e da impossibilidade de dedução futura desses prejuízos por virtude da cessação da actividade.
Sendo este o objecto do recurso, obstará naturalmente ao seu conhecimento a não aplicação, na decisão recorrida, desta dimensão interpretativa.
Segundo a recorrida (supra, 6.), não pode ser assacada à norma do artigo 46º, n.º 2, do CIRC, em si mesma considerada, a impossibilidade de reporte dos prejuízos, sendo a especificidade da situação do recorrente (a cessação de actividade) a causa da inviabilização da solidariedade de exercícios.
Desta argumentação da recorrida parece deduzir-se que, na sua perspectiva, o tribunal recorrido não teria aplicado a norma do artigo 46º, n.º 2, do CIRC, no sentido questionado pelo recorrente, porque pura e simplesmente tal norma não regula a situação da impossibilidade de dedução futura de prejuízos por virtude da cessação da actividade e o tribunal recorrido se limitara a aplicar tal norma.
O recorrente não respondeu verdadeiramente a tal argumentação. Na sua resposta a esta questão prévia (supra, 8.), limitou-se a reiterar que o objecto do recurso era constituído pela norma do artigo 46º, n.º 2, do CIRC, num sentido que já nas alegações apontara.
Ora percorrendo o texto da decisão recorrida (supra, 4.), verifica-se que nele não é feita qualquer referência à circunstância de a norma do artigo 46º, n.º 2, do CIRC vedar a dedução futura de prejuízos por virtude da cessação da actividade. Já o Tribunal Tributário de 1ª Instância, aliás, não atendera a tal circunstância para efeitos da fundamentação de direito da sentença.
Poder-se-á objectar, dizendo que é precisamente essa indiferença perante a impossibilidade de dedução futura de prejuízos por virtude da cessação da actividade que torna questionável a norma do artigo 46º, n.º 2, do CIRC. Ou, dito de outro modo, que a circunstância de o tribunal recorrido não ter considerado esta impossibilidade indicia, ela mesma, a aplicação da norma no sentido apontado pelo recorrente.
Mas não é pertinente esta objecção. Que a aplicação da norma do artigo 46º, n.º 2, do CIRC possa ter como consequência, no caso concreto do recorrente, a impossibilidade de dedução futura de prejuízos não significa que o tribunal recorrido, no momento da aplicação dessa norma, tenha ponderado tal consequência e, sobretudo, que tenha considerado tal consequência como um efeito da aplicação da norma. Nada no texto da decisão recorrida indicia que assim tenha sido, pelo que não está demonstrado que o tribunal recorrido aplicou a norma do artigo 46º, n.º 2, do CIRC, no sentido questionado pelo recorrente e que constitui o objecto do recurso.
Aliás, no acórdão do Tribunal Central Administrativo diz-se expressamente que
“Se a AT podia presumir a existência de lucros isso pressupõe que seja claramente assumida a actividade. Se um indivíduo possui um estabelecimento comercial ou industrial, não pode dizer que não exerce a actividade”,
acrescentando-se que incumbe ao contribuinte
“o dever de comprovar que se encontra numa situação em que não era permitido o uso de tal método [o método indiciário].”
O último aspecto sublinhado revela de modo claro que, no entendimento do Tribunal Central Administrativo – e, já antes, no entendimento da Administração Fiscal –, o ora recorrente foi considerado, para efeitos de tributação em IRS, como contribuinte que exercia uma actividade económica, tanto mais que o recorrente não lograra demonstrar que assim não fosse.
Conclui-se assim que à norma impugnada não foi atribuído o sentido identificado pelo recorrente e por ele considerado inconstitucional, pelo que não podem dar-se como verificados os pressupostos processuais do recurso interposto.
III
10. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não conhecer do objecto do presente recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 (oito) unidades de conta.
Lisboa, 9 de Março de 2004
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos (vencido nos termos da declaração de voto junta) Luís Nunes de Almeida (vencido, nos mesmos termos que o Exmº Consº Rui Moura Ramos)
Declaração de voto
Votei vencido por não poder acompanhar o Tribunal na constatação de que a decisão recorrida (o acórdão do Tribunal Central Administrativo de 26 de Novembro de 2002 transcrito supra no nº 4) não faz aplicação da dimensão interpretativa que o recorrente considera inconstitucional (transcrita no ponto
9). Na verdade, o recorrente invoca claramente a inconstitucionalidade do artigo
46º, nº 2 do CIRC (aplicado por força do artigo 54º, nº 2 do CIRC), ambos nas redacções vigentes em 1994, na medida em que daquela primeira norma resulta que a aplicação de métodos indiciários num determinado ano veda em absoluto a dedução de prejuízos fiscais apurados em anos anteriores, mesmo quando a cessação da actividade do sujeito passivo determina a impossibilidade de dedução futura de tais prejuízos. Ora, a referida consequência jurídica da aplicação dos métodos indiciários não deixou de ser aplicada na decisão recorrida pelo facto de esta (como aliás já a decisão do Tribunal Tributário de
1ª Instância) não mencionar expressamente que a utilização dos métodos indicários impede a dedução de prejuízos apurados em anos anteriores também nos casos de cessação de actividade. Contrariamente ao invocado pela recorrida (a Fazenda Pública), a norma do artigo 46º, nº 2 do CIRC regula a questão colocada pelo recorrente, considerando que a circunstância de o sujeito passivo cessar a actividade é irrelevante para a consequência jurídica (a não dedução de prejuízos fiscais aprovados em anos anteriores) que decorre da aplicação de métodos indiciários. É pois aquela norma (e não a situação do recorrente, ao encontrar-se no estado de cessação da actividade) que invalida a solidariedade de exercícios, na medida em que, mesmo em tal situação (encontrar-se o sujeito passivo em cessação de actividade) a aplicação dos métodos indiciários continua a produzir o efeito jurídico que normalmente lhe vai ligado (a referida não dedução de prejuízos fiscais apurados em anos anteriores). Conclusão que não se nos afigura poder ser contrariada ainda que, como se refere no acórdão, o tribunal recorrido não tenha isolado tal consequência, referindo-a especificamente à situação de cessação de actividade do sujeito passivo. Não tendo o acórdão recorrido assente noutro fundamento jurídico, a falta de referência explícita a esta última hipótese não afasta a efectiva aplicação da dimensão normativa questionada. Esta dimensão está compreendida no artigo 46º, nº 2, do CIRC, pelo que não pode ter deixado de ser aplicada ao caso concreto. Além disso, os excertos citados do acórdão recorrido apenas se referem à justificação em geral do recurso aos métodos indiciários, deles não resultando que a ratio decidendi daquele acórdão resida na circunstância de o sujeito passivo não ter demonstrado que não exercia uma actividade económica.
Rui Manuel Moura Ramos