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Proc. n.º 609/03 TC - 1ª Secção Rel.: Cons.º Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 - Nos autos de recurso supra identificados em que é recorrente A. foi proferida a seguinte decisão sumária:
'1- A., com os sinais dos autos, interpôs recurso para este Tribunal por requerimento de fls.269, nos seguintes termos:
“O recurso é interposto ao abrigo das alíneas b). e g). do n.º 1 do artigo 70º da mesma Lei (LTC). Quanto à previsão da referida al. b)., para efeito do disposto no n.º 2 do artigo 75º-A da referida Lei, declara-se: a).. que o Venerando Tribunal da Relação violou as garantias de defesa dos arguidos e os princípios constitucionais da proibição do arbítrio e da segurança no direito penal, consagrados no n.º 1 do artigo 32º, n.º 3 do artigo 18º, n.º 2 do artigo 202º, artigo 2º e artigo 29º da Constituição. b).. que o Tribunal da Relação violou o princípio constitucional nos termos do qual o arguido deve ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa, consagrado no n.º2 do artigo 32º da Constituição. c).. que o Tribunal da Relação violou o princípio constitucional relativo à aplicação da lei criminal, consagrado nos n.ºs 1 e 3 do artigo 29º da Constituição. d)..que o Tribunal da Relação violou os princípios de paz jurídica, da certeza, da segurança, da necessidade de imposição de pena e da proporcionalidade, que se extraem dos artigos 2º, 18º, n.º2, 29º e 32º, n.º 2 da Constituição. e).. o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade nas “Alegações” apresentadas no Tribunal de Viana do Castelo em 31.10.02 e no “requerimento de apreciação de nulidade” apresentado em 12.05,03 no Tribunal da Relação de Guimarães. Quanto à previsão da al. g). do n.º 1 do artigo 70 da referida LTC, esclarece o recorrente que o Tribunal Constitucional já anteriormente através dos seus acórdãos n.º 122/2000 e n.º 483/2002 de 20.11.02, julgou inconstitucionais as normas a que o recorrente alude sob as als. c). e d). do requerimento apresentado em 12.05.03 junto do Tribunal da Relação- vg. N.º 3 do artigo 75º-A da LTC.”
Neste Tribunal, proferiu o relator o seguinte despacho:
“O recorrente não obedece, no seu requerimento de interposição de recurso, ao previsto no art.º 75º-A n.º 1 da LTC, no ponto em que não indica a(s) norma(s) (ou uma sua interpretação) cuja constitucionalidade pretenda ver sindicada pelo Tribunal Constitucional.
Assim, notifique-se o recorrente para suprir a omissão, devendo ainda, para cada norma ou interpretação normativa, indicar as normas ou princípios constitucionais que entenda violados.
O presente convite é feito nos termos do art.º 75º-A n.ºs 5 e 6 da LTC.”
Respondeu o recorrente com requerimento do seguinte teor:
“1.. O recurso é interposto ao abrigo das alíneas b) e g). do n.º 1 do artigo 70º da L. T. Constitucional.
2.. Quanto à previsão da referida al. b).:
a).. o recorrente pede que o tribunal aprecie a inconstitucionalidade da interpretação adoptada pelo TR em relação ao disposto na al. a). do n.º 1 do artigo 119º do Código Penal de 1982:
Entende, assim, que com o entendimento seguido forma violadas as normas que constam do n.º 1 do artigo 32º, n.º 3 do artigo 18º, n.º
2 do artigo 202º, artigo 2º e artigo 29º da Constituição;
b)..o recorrente pede também que o Tribunal aprecie a inconstitucionalidade da interpretação conjugada adoptada pelo TR em relação ao disposto nos artigos 3º e 147º do Cód. Proc. Penal 1929.
Entende, nesta parte, que o douto acórdão recorrido violou as normas que constam dos n.ºs 1 e 2 do artigo 32º da Constituição.
3..Quanto á previsão da al. g). do referido artigo 70º da LTC: a)..o recorrente pretende que este Tribunal aprecie a inconstitucionalidade da interpretação adoptada pelo TR do disposto na al. a). do n.º1 do artigo 120º do Cód. Penal de 1982.
Entende, deste modo, que forma violadas as normas constantes dos n.ºs 1 e 3 do artigo 29º e n.ºs 1 e 2 do artigo 32º da Constituição.
Este Alto Tribunal já se pronunciou no seu Acórdão n.º
122/2000 que a interpretação que também foi adoptada no douto aresto do TRG daquela norma jurídica violava as normas dos n.ºs 1 e 3 do artigo 29º da Constituição.
b).. o recorrente pede por fim que este tribunal aprecie a inconstitucionalidade do conjunto normativo resultante das normas constantes dos artigos 118º (seus números 1 e 2-b).) e 300º (n.ºs 1 e 2-a).) do Cód. Penal de
1982.
Entende que o TR no douto acórdão proferido ao aplicar essas normas violou os princípios da paz jurídica, da certeza, da segurança, da necessidade de imposição da pena e da proporcionalidade, que se extraem dos artigos 2º, 18º, n.º 2, 29º e 32º n.º 2 da Constituição.
Este Alto tribunal no seu Acórdão n.º 483/2002 de
20.11.02 apreciou já um caso em tudo semelhante, tendo julgado inconstitucional o referido artigo 118º na interpretação seguida nestes autos pelo douto acórdão recorrido.” (Sublinhados nossos)
Cumpre decidir.
2 - Como se deixou relatado, na ausência (no requerimento de interposição de recurso) da identificação de normas ou de interpretações normativas que o recorrente pretendia ver apreciadas sub specie constitutionis, o relator lançou mão do “convite” previsto no artigo 75º-A nºs 5 e 6 da LTC – preceitos expressamente mencionados no despacho – para que o recorrente suprisse a omissão.
E porque a omissão era total, deixou-se bem claro que o recorrente devia indicar as normas ou as interpretações normativas (consoante a pretensão do recorrente) em causa.
Ora, é manifesto que, na resposta dada àquele convite, o recorrente não cumpriu o ónus que sobre ele recaía, previsto no nº 1 do artigo 75º-A da LTC.
Ficou, com efeito, claro que o recorrente pretendia ver apreciadas, em todos os casos, com excepção de um, interpretações normativas. Mas, em vez de indicar essas interpretações, limitou-se a remeter para o acórdão recorrido, como se revela pelos passos sublinhados da sua resposta, supra transcrita, procedimento que, segundo jurisprudência deste Tribunal, não é admissível.
Escreveu-se, a propósito, no Acórdão nº 39/03 que versou questão em tudo idêntica à que agora nos ocupa:
“Como este Tribunal tem afirmado, repetidamente, nada obsta a que seja questionada apenas uma certa interpretação ou dimensão normativa de um determinado preceito. Porém, nesses casos, tem o recorrente o ónus de indicar, de forma clara e perceptível, o exacto sentido normativo do(s) preceito(s) que considera inconstitucional. Como se disse, por exemplo, no Acórdão nº 178/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p.1118.) “tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão nº
269/94, Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental. Porém, in casu, verifica-se que nem no requerimento de interposição do recurso nem na resposta ao despacho de aperfeiçoamento - peças que supra já transcrevemos integralmente - o recorrente identifica a exacta dimensão ou interpretação normativa dos preceitos do Código de Processo Penal e do Código de Processo Civil, por si referidos, cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada, limitando-se a referir que tais preceitos são inconstitucionais na interpretação que lhes é dada pelo Supremo Tribunal de Justiça. Ora, tal forma de proceder não é suficiente para que se possa considerar cumprido o ónus referido supra. Efectivamente, dizer que se pretende ver apreciada a inconstitucionalidade de um preceito na interpretação normativa que lhe é dada por uma decisão judicial não é ainda identificar essa interpretação normativa. Na verdade, ao limitar-se a remeter para a “interpretação que lhes
(aos preceitos) é dada pelo Supremo Tribunal de Justiça”, o recorrente mais não está do que a transferir – de forma inadmissível – para o Tribunal ad quem – no caso o Tribunal Constitucional – o ónus, que sobre ele impende, de delimitar o objecto do recurso.”
É esta a jurisprudência que aqui se segue e de que resulta, no caso, o reconhecimento de que o requerimento de interposição do recurso, mesmo aperfeiçoado, não obedece aos requisitos estabelecidos no artigo 75º-A nº 1 da LTC.
3 – Disse-se atrás que o recorrente pretendia ver apreciadas, em quase todos os casos, interpretações normativas.
De facto, no que respeita ao recurso interposto ao abrigo da alínea g) do nº 1 do artigo 70º da LTC, o recorrente já não se reporta, num dos casos
[supra, 3 b)], ao menos expressamente, a uma qualquer interpretação ou dimensão normativa, referindo-se apenas ao “conjunto normativo resultante das normas constantes dos artigos 118º [nos números 1 e 2 b)] e 300º [nºs 1 e 2 a)] do Cód. Penal de 1982”.
Não haveria, pois, que especificar uma interpretação normativa.
Simplesmente, não se mostra preenchido um pressuposto essencial do recurso ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea g) da LTC – a aplicação de uma norma anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal Constitucional.
Com efeito, o Acórdão nº 483/2002 – indicado pelo recorrente como sendo o aresto que julgara a inconstitucionalidade – apreciou e julgou um complexo normativo de que fazia parte a norma do artigo 118º nºs 1 e 4 do CP82 mas também as normas constantes dos artigos 270º n.ºs 1 e 2 e 267º do mesmo Código, assumindo relevância no julgamento a circunstância de se tratar de um caso de crime de propagação de doença agravado pelo resultado, questionando-se se o entendimento segundo o qual o início do prazo de prescrição do procedimento criminal é referido ao último resultado agravativo ofendia, ou não, a Constituição.
Não pode, assim, dizer-se que o complexo normativo indicado pelo recorrente (onde intervêm normas relativas ao crime de abuso de confiança na forma continuada) tenha sido julgado inconstitucional por aquele citado acórdão.
4 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se não se conhecer do objecto recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 Ucs.'
Contra esta decisão reclama o recorrente para a conferência, dizendo, em síntese, que:
- a decisão sumária enferma de nulidade por omissão de pronúncia por não conhecer da matéria respeitante ao recurso interposto ao abrigo do artigo
70º n.º 1 alínea g) da LTC tendo como objecto a norma do artigo 120º do Código Penal;
- o artigo 75º-A n.º 1 da LTC não impõe que se defina a interpretação normativa cuja constitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada;
- o Acórdão n.º 483/2002 julgou inconstitucional a norma do artigo
118º do Código Penal de 1982, sendo irrelevante que o tenha feito atendendo a um complexo que compreendia as normas dos artigos 270º n.ºs 1 e 2 e 267º do Código Penal.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público sustenta, na sua resposta, que se deve indeferir a reclamação.
Cumpre decidir.
2 - Como resulta da decisão sumária supra transcrita, entendeu-se que o recorrente não cumprira o requisito de identificação das normas cuja constitucionalidade pretendia ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, uma vez que, tratando-se, 'em todos os casos, com excepção de um', de interpretações normativas, as não identificara, (em contrário do que fora convidado a fazer nos termos do artigo 75º-A n.ºs 5 e 6 da LTC) limitando-se a reportar à interpretação feita no acórdão recorrido.
Identificou, depois, aquela decisão o único caso em que o recorrente não questionava uma determinada interpretação normativa - o do recurso interposto ao abrigo da alínea g) do citado artigo 70º n.º 1 da LTC enquanto reportado ao conjunto normativo resultante das normas constantes dos artigos
118º n.ºs 1 e 2 alínea b) e 300º n.ºs 1 e 2 alínea a) do Código Penal.
Isto ficou claramente expresso quando se escreveu:
'Disse-se atrás que o recorrente pretendia ver apreciadas, em quase todos os casos, interpretações normativas.
De facto, no que respeita ao recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, o recorrente já não se reporta num dos casos
(supra 3 b)), ao menos expressamente, a uma qualquer interpretação ou dimensão normativa (...)' (sublinhados nossos).'
Daqui decorre, sem margem para quaisquer dúvidas, que a decisão sumária se pronunciou sobre o recurso interposto ao abrigo da citada alínea, reportado à norma do artigo 120º n.º 1 alínea a) do Código Penal, enquanto ele se inseria também naqueles casos em que, questionada uma interpretação normativa, o recorrente a não identificava.
Não se verifica, pois, omissão de pronúncia.
3 - No que concerne à identificação de interpretações normativas, a decisão sumária fez valer jurisprudência deste Tribunal sobre a matéria, transcrevendo parte do Acórdão n.º 39/03, não se vendo agora razão para a abandonar, nem se reconhecendo na reclamação qualquer argumento válido que a infirme.
Acrescenta-se que tal identificação se compreende na exigência, feita no artigo 75º-A n.º 1 da LTC, de indicação da 'norma' cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie.
Com efeito, as várias interpretações possíveis de um determinado conteúdo preceptivo acabam por corresponder a outras tantas normas e, cabendo ao recorrente delimitar o objecto da sua impugnação, a ele incumbirá definir com clareza qual a interpretação (qual a norma) cuja constitucionalidade questiona.
E nem se diga que 'ao compor as alegações' o entendimento do recorrente 'pode sofrer alterações mesmo significativas', para justificar um menor rigor na aludida indicação no requerimento de interposição de recurso.
Na verdade é nesta peça que o recorrente delimita o objecto do recurso, inalterável em alegações, sendo apenas lícita a sua restrição nos termos do artigo 684º n.º 3 do CPC.
Por último, sempre se dirá que, proferido o convite de aperfeiçoamento do requerimento de interposição de recurso, não é já a fase de reclamação da decisão sumária o momento oportuno para corrigir o que não foi corrigido na resposta àquele convite, como resulta do disposto 78º-A n.º 2 da LTC.
4 - Finalmente, reitera-se o que se entendeu na decisão sumária reclamada no sentido de que o complexo normativo indicado pelo recorrente (o que resulta dos artigos 118º n.ºs 1 e 2 alínea b) e 320 n.ºs 1 e 2 alínea a) do Código Penal) não foi julgado inconstitucional pelo Acórdão n.º 483/2002.
E era, com efeito, relativamente àquele específico complexo normativo, que haveria que determinar se o aresto mencionado pelo recorrente havia proferido qualquer juízo de inconstitucionalidade.
A inclusão do artigo 118º n.º 1 do Código Penal no conjunto normativo julgado inconstitucional no referido acórdão é, para o efeito irrelevante, pois foi atendendo ao tipo legal de crime então em causa (crime de propagação de doença contagiosa agravado pelo resultado) e à sua consumação que se proferiu o citado juízo, juízo esse que não é necessariamente transponível para um caso em que está em causa o início da contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal relativo a um crime de burla agravada cometido de forma continuada.
Não merece, assim, censura a decisão sumária reclamada.
5 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 19 de Dezembro de 2003
Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida