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Processo n.º 729/02
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O Ministério Público requereu julgamento com processo autónomo de multa, ao abrigo do disposto nos artigos 58º, n.ºs 1, alínea d), e 5, e 89º e seguintes da Lei n.º 98/97, de 26 de Maio (Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas), contra A., director do estabelecimento prisional de
..............., por violação do disposto nos artigos 81º, n.º 2, e 82º, n.º 2, da citada Lei n.º 98/97, a que corresponde a aplicação de multa nos termos previstos no artigo 66º, n.ºs 1, alínea e), e 2, da mesma lei.
Por sentença da 3ª Secção do Tribunal de Contas de 12 de Julho de
2001, constante de fls. 52 e seguintes (Processo n.º 4-M/2000, do Tribunal de Contas), A. foi , porém, absolvido.
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, restrito à decisão de absolvição do demandado pela infracção ao disposto no artigo 81º, n.º
2, da Lei n.º 98/97, para o plenário da 3ª Secção do mesmo Tribunal, invocando que “a douta sentença violou, por erro de interpretação, a norma do art. 81º, n.º 2” citado. O Tribunal de Contas, por acórdão de 24 de Abril de 2002, constante de fls. 21 e seguintes (Processo n.º 7-R.O.-Multa/2001, do Tribunal de Contas) julgou parcialmente procedente o recurso, “por se entender que a remessa do contrato a visto do tribunal de Contas foi intempestiva, o que viola materialmente o disposto no artigo 81º, n.º 2, alínea c), da Lei n.º 98/97”, e ordenou “a repetição do julgamento (...) em vista ao apuramento da existência, ou não, de factos que suportem suficientemente a imputação ao demandado da materialidade infraccional apurada sob o ponto de vista subjectivo (negligência)”.
Por sentença da 3ª Secção do mesmo Tribunal de Contas, de 29 de Outubro de 2002, constante de fls. 91 e seguintes (Processo n.º 4-M/2000, do Tribunal de Contas), foi decidido não aplicar o artigo 81º, n.º 2, alínea c), da Lei n.º 98/97, na interpretação perfilhada pelo acórdão de 24 de Abril de 2002, por ser “contrária à Constituição, à luz, designadamente, dos artigos: 2º
(preterição de confiança e da segurança jurídicas que é suposto o Estado de Direito democrático oferecer aos cidadãos quando lhes impõe condutas que se permite sancionar com multa); 29º, n.º 1, e 165º, n.º 1, alínea c) (preterição da tipicidade, da legalidade, e da reserva de lei na definição dos elementos essenciais de infracção de natureza transgressional); 62º (na medida em que a sujeição a sanção de carácter patrimonial sem adequada definição na lei dos respectivos pressupostos representa abusiva expropriação e ofensa do direito de propriedade)”. Em consequência, foi absolvido “o demandado A., director do estabelecimento prisional de ..............., porque havendo celebrado o contrato sub specie em
12/08/99, com eficácia reportada a 01/03/99, conforme cláusula de retroactividade nela inserta, o remeteu a este Tribunal em 13/08/99, não havendo, pois, praticado o ilícito que lhe é imputado pelo Ministério Público”.
2. Notificado desta sentença, o Ministério Público veio recorrer para o Tribunal Constitucional “ao abrigo do disposto no artigo 280º, n.ºs 1, alínea a), e 3, da Constituição da República Portuguesa, e dos artigos 70º, n.º
1, alínea a), e 72º, n.ºs 1, alínea a), e 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterado pela Leis n.º 85/89, de 7 de Setembro, e n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro”.
3. Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as respectivas alegações.
O Ministério Público, após ter observado que não cabe no âmbito do presente recurso saber se “a dita interpretação normativa é a que melhor se coaduna com as regras interpretativas e os princípios vigentes em sede de direito financeiro – isto é, se tal interpretação ‘extravasa da letra e do espírito da norma, dentro do que se revela pelos elementos literal, histórico, sistemático e teleológico’(...) – mas tão somente decidir se tal interpretação afronta efectivamente alguma norma ou princípio constitucional”, pronunciou-se no sentido de que se não pode considerar que a norma impugnada se situe “no
âmbito de um qualquer direito sancionatório público”. Em seu entender, está apenas em causa uma norma que define o “prazo para (tempestivo) cumprimento do dever de submissão e visto prévio do Tribunal de Contas de determinados contratos”, que não adquire natureza sancionatória pela circunstância de poder gerar responsabilidade financeira o incumprimento de tal dever dentro do prazo.
Por outro lado, o Ministério Público adverte para que “não pode confundir-se a problemática da existência de um prazo para remeter certos contratos ao Tribunal de Contas, para efeitos de visto prévio, com a do eventual sancionamento na mora do cumprimento desse dever pelo visado: é que tal sanção não decorre automaticamente de desrespeito objectivo por tal prazo, cumprindo naturalmente ao Tribunal de Contas indagar, em conformidade, desde logo, com o princípio da culpa, da existência de violação censurável de tal norma procedimental, aplicando, para tanto, os institutos pertinentes, avaliando da concreta existência de negligência, de possíveis causas de exclusão da culpa, de eventual falta de consciência da ilicitude, etc.,– matéria que, como é manifesto, se situa de pleno fora do âmbito do presente recurso de constitucionalidade e dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional”.
Assim, afasta a admissibilidade de avaliação da norma objecto do recurso à luz, quer dos princípios da tipicidade e da legalidade criminal, decorrentes do n.º 1 do artigo 29º da Constituição, quer da alínea c) do n.º 1 do artigo 165º (desde logo, por constar de uma lei da Assembleia da República), quer do artigo 62º da Constituição, por não fazer sentido considerar como expropriação ilegítima uma “imposição de uma sanção patrimonial ao autor de uma infracção”. E considera, portanto, só haver que analisar a compatibilidade com o
“princípio da confiança, emergente da regra do artigo 2º da Constituição da República Portuguesa”, concluindo pela sua não violação, seja porque contém um regime “perceptível e apreensível pelos destinatários da norma”, seja porque é objectivamente justificada pelo interesse público de “obstar a que possa ocorrer uma verdadeira ‘eternização’ fáctica de relações contratuais (...)”.
E formulou as seguintes conclusões:
“1 – A norma constante do artigo 81º, n.º 2, alínea c), da Lei do Tribunal de Contas não pode ser qualificada como integrando o direito sancionatório público, já que nela apenas se estabelece o regime de contagem do prazo para cumprimento pelos serviços do dever de remessa dos processos relativos a actos ou contratos, sujeitos ao visto prévio daquele Tribunal, não afrontando o artigo 29º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
2 – Tal norma, interpretada em termos de o prazo de 30 dias, ali estabelecido, se contar – não da celebração formal de certo acto ou contrato – mas da efectiva realização de prestações ou atribuições patrimoniais a terceiros, geradores de despesa pública, tendo como ‘causa’ a futura celebração ‘formal’ do contrato, não afronta o princípio da confiança.
3 – Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
O recorrido apresentou alegações, pugnando pela improcedência do recurso, secundando a interpretação feita pela decisão recorrida e concluindo nestes termos:
“EM CONCLUSÃO A defesa não pode deixar de corroborar a fundamentação da decisão do Tribunal a quo com base na qual desaplicou a referida norma do artº 81º, n.º 2 da Lei n.º
98/97, de 26 de Agosto, pois que esta norma, pelo menos na interpretação que lhe foi dada no douto acórdão que mandou repetir o julgamento, ofende efectivamente os princípios da protecção e da confiança, da tipicidade e da segurança jurídica. Por outro lado, permitimo-nos discordar, salvo o devido respeito, das conclusões do recurso produzidas pelo senhor Procurador Adjunto do Ministério Público, no que respeita à qualificação da norma do artº 81º n.º 2 alínea c) da Lei em referência, pois esta norma, em nosso entender integra efectivamente o direito sancionatório público, pois estatui um pressupostos cujo incumprimento gera responsabilidade contravencional de natureza pecuniária. Esta norma é omissa e imprecisa na sua letra, de tal modo que o demandado, no exercício das suas funções, a aplicou segundo a interpretação que lhe pareceu mais conforme com a sua previsão e com os princípios da C.R.P., interpretação que foi depois confirmada por decisão do Tribunal , mas que apesar disso continua controvertida, pondo assim em crise o princípio da segurança e da confiança jurídica. Da interpretação desta norma foram retiradas consequências jurídicas sancionatórias de carácter pecuniário desfavoráveis para o demandado, cuja causa não resulta de uma lei que claramente o preveja e em função da qual o demandado pudesse ter conformado a sua conduta de modo a evitar tal situação de que resulta uma efectiva agressão do seu património, o que consubstanciaria uma ilegítima expropriação do montante dessa sanção. Fica, assim, claro que a norma cuja interpretação está aqui em causa, é de facto omissa e imprecisa, demonstrando-se contrária à Constituição , ofendendo, designadamente, os seus artºs 2º, 29º, n.º 1, 62º e a65º, n.º 1, c)”.
4. Cabe começar por fixar o objecto do presente recurso.
É o seguinte o texto da norma impugnada (como é manifesto, apenas interessa a norma do artigo 81º, n.º 2, alínea c), da Lei n.º 98/97, de 26 de Maio):
Artigo 81º Remessa dos processos a Tribunal
...
2 – Os processos relativos a actos e contratos que produzam efeitos antes do visto devem ser remetidos ao Tribunal de Contas no prazo de 30 dias a contar, salvo disposição em contrário: a) Da data em que os interessados iniciaram funções, no caso das nomeações e dos contratos de pessoal; b) Da data da consignação, no caso de empreitada; c) Da data do início do contrato, nos restantes casos.
A sentença recorrida entendeu que a norma impugnada, interpretada e aplicada no sentido de “querer sancionar a falta de remessa do contrato quando ocorra após mais de 30 dias contados da data a que o contrato retroage, para tanto subentendendo que a norma, além da remessa, impõe a celebração nesse mesmo prazo”, viola o disposto nos artigos 2º, 29º, n.º 1, 165º, n.º 1, alínea c), e
62º da Constituição.
Note-se, desde já, que não integra o objecto do presente recurso a norma, constante da alínea e) do n.º 1 do artigo 66º da mesma Lei, cujo texto é o seguinte:
Artigo 66º Outras infracções
1 – O Tribunal pode ainda aplicar multas nos casos seguinte:
(...)
e) Pela inobservância dos prazos legais de remessa ao Tribunal dos processos relativos a actos ou contratos que produzam efeitos antes do visto;
(...)
Trata-se, pois, de saber apenas se a interpretação do artigo 81º, n.º 2, alínea c), da Lei n.º 98/97, segundo a qual o prazo ali previsto se deve contar a partir da data à qual retroagem os efeitos do contrato, se for o caso, independentemente da celebração por escrito do mesmo, é inconstitucional.
5. A recusa de aplicação da norma em apreciação assentou em que a mesma não respeita o que “constitucionalmente se exige a norma de cariz e com consequências sancionatórias”. Ora, como observa o Ministério Público, não parece que se deva reconhecer tal natureza a uma norma que se limita a estabelecer um prazo para a remessa de certos processos ao Tribunal de Contas, sem pretender definir qualquer infracção; assim resulta da sua letra e, aliás, da respectiva colocação sistemática na Lei n.º 98/97. Não se vê, assim, que faça sentido analisá-la à luz dos princípios decorrentes do n.º 1 do artigo 29º da Constituição, ou da reserva de competência legislativa constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 165º, da Constituição. Diga-se, aliás, no que se refere a este último preceito, que está em causa uma lei da Assembleia da República, o que em qualquer caso afastaria a alegada inconstitucionalidade.
6. Por idênticas, ou próximas, razões, se deve concluir pela irrelevância da norma do artigo 62º da Constituição para o caso presente. Com efeito, não faria sentido falar de expropriação, ainda que de uma norma sancionatória se tratasse, desde logo porque a expropriação não tem carácter sancionatório. Na sentença afirma-se que a norma do artigo 81º, n.º 2, alínea c), viola o artigo 62º da Constituição, “na medida em que a sujeição a sanção de carácter patrimonial sem adequada definição na lei dos respectivos pressupostos representa abusiva expropriação e ofensa do direito de propriedade”. Como decorre desta passagem, apenas a falta de “adequada definição na lei dos pressupostos” da sanção seria susceptível de violar a Constituição, não se invocando qualquer argumento susceptível de sequer permitir configurar uma violação autónoma da garantia constitucional da propriedade. Todavia, como se disse, a norma desaplicada não estabelece qualquer sanção.
7. A sentença aponta ainda a violação do artigo 2º da Constituição, por estar em causa a “preterição da confiança e da segurança jurídicas que é suposto o Estado de Direito Democrático oferecer aos cidadãos quando lhes impõe condutas que se permite sancionar com multa”. Ora, mais uma vez se observa que no presente recurso de constitucionalidade está apenas em causa a questão da determinação do termo a quo do prazo para remessa dos processos ao Tribunal de Contas, e já não a questão das consequências do desrespeito de tal prazo por parte de quem estava obrigado ao seu cumprimento.
Feita esta prevenção, vejamos por que razão a sentença recorrida entende que a interpretação da norma do artigo 81º, n.º 2, alínea c), segundo a qual prazo ali previsto se deve contar a partir da data à qual retroagem os efeitos do contrato, se for o caso, independentemente da celebração por escrito do mesmo, viola os princípios da confiança e da segurança jurídicas. Segundo tal sentença, a interpretação em causa, “por extravasar da letra e do espírito da norma, dentro do que se revela pelos elementos literal, histórico, sistemático e teleológico, dela não decorre como certa, precisa e segura”. O sentido correcto seria, antes, o de que “o artigo 81º, n.º 2, quis curar do prazo de remessa de contratos escritos e não do prazo de remessa de eventuais acordos verbais ou do prazo em que esses acordos devem ser reduzidos a escrito, questão esta que claramente excede os fins ou a ‘economia’ do preceito”. Assim, segundo a sentença, quando na norma desaplicada se fala em “início da execução do contrato”, deve entender-se que se têm em vista os contratos reduzidos a escrito antes desse momento, ou seja, antes do início da respectiva execução; admite que “se entenda que a norma, na sua letra, tanto pode convocar para uma interpretação como para outra”, mas considera que a interpretação que motivou a desaplicação da norma, pela “insegurança que ela gera no destinatário, obsta a que este se motive por ela de forma livre e consciente”.
Prescindindo de considerações próprias do direito financeiro susceptíveis de fundamentar a opção por uma ou outra das citadas interpretações, e que aqui não teriam cabimento, o que parece claro é que a interpretação recusada, não só não viola o princípio da confiança e da segurança jurídica decorrente do artigo 2º da Constituição, como nem sequer interfere com a esfera de protecção própria desses princípios (quanto a esta, cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 786/96, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 34º vol., pp. 23 e seguintes, e ainda o Acórdão n.º 269/01, publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Julho de 2001). Não se vislumbra, aqui, nem a aplicação retroactiva de um regime legal, nem a alteração de expectativas legítimas dos cidadãos relativamente às respectivas posições jurídicas, de modo a que se possa colocar a questão de uma eventual violação dos princípios da confiança e da segurança jurídica.
Assim, concede-se provimento ao recurso, devendo a sentença recorrida ser reformada de acordo com a decisão relativa à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 28 de Abril de 2003 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida