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Processo n.º 437/10
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos, vindos do 2.º Juízo de Competência Cível de Vila Franca de Xira, veio o Ministério Público interpor recurso da sentença datada de 5 de janeiro de 2010, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. No requerimento de interposição do recurso, consta que “a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie é o art. 64.º, n.ºs 7 a 9, do DL n.º 291/2007, de 21 de agosto, na redação que lhe foi conferida pelo DL n.º 153/2008, de 6 de agosto.”
3. A presente ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, proposta pelo aqui recorrido contra a A. – Companhia de Seguros S.A., foi instaurada com base em pretensão de recebimento de indemnização por danos sofridos na sequência de acidente de viação.
A ré apresentou contestação.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, em 5 de janeiro de 2010, concedendo parcial procedência à ação.
Na parte relevante, para efeito de apreciação do objeto do presente recurso, é do seguinte teor a fundamentação da aludida sentença:
“A respeito do valor do rendimento mensal do lesado a ter em conta na determinação da indemnização por danos patrimoniais decorrentes da perda de rendimentos em consequência de incapacidade, foi recentemente introduzida uma alteração legislativa, acerca da qual se impõe tecer algumas considerações.
O Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, relativo ao seguro obrigatório automóvel, que veio substituir o Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de dezembro, tendo como principal objetivo a transposição de diretivas do Conselho e do Parlamento Europeu neste domínio, foi recentemente alterado pelo Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto, que introduziu no seu art. 64.°, inserido no Capítulo V relativo às “Disposições Processuais” e que rege sobre “Legitimidade das partes e outras regras”, os n.°s 7 a 9, que estabelecem regras a aplicar pelo tribunal na averiguação e fixação do valor da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao lesado em acidente de viação, a saber:
“7— Para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao lesado, o tribunal deve basear -se nos rendimentos líquidos auferidos à data do acidente que se encontrem fiscalmente comprovados, uma vez cumpridas as obrigações declarativas relativas àquele período, constantes de legislação fiscal.
8 — Para os efeitos do número anterior, o tribunal deve basear -se no montante da retribuição mínima mensal garantida (RMMG) à data da ocorrência, relativamente a lesados que não apresentem declaração de rendimentos, não tenham profissão certa ou cujos rendimentos sejam inferiores à RMMG.
9 — Para os efeitos do n.° 7, no caso de o lesado estar em idade laboral e ter profissão, mas encontrar-se numa situação de desemprego, o tribunal deve considerar, consoante o que for mais favorável ao lesado:
a) A média dos últimos três anos de rendimentos líquidos declarados fiscalmente majorada de acordo com a variação do índice de preços no consumidor, considerando o seu total nacional, exceto habitação, nos anos em que não houve rendimento; ou
b) O montante mensal recebido a título de subsídio de desemprego.”
Esta alteração legislativa, segundo consta do preâmbulo do citado DL 153/2008, pretende contribuir para a concretização da medida prevista na resolução do Conselho de Ministros n.º 172/2007, de 6 de novembro, de “revisão do regime jurídico aplicável aos processos de indemnização por acidente de viação, estabelecendo regras para a fixação do valor dos rendimentos auferidos pelos lesados para servir de base à definição do montante da indemnização, de forma que os rendimentos declarados para efeitos fiscais sejam o elemento mais relevante”.
Medida essa que, como outras previstas nessa Resolução, segundo o referido preâmbulo, visa diminuir a fonte de litigiosidade que contribui para o congestionamento dos tribunais, consistente em as seguradoras em regra basearem o cálculo da indemnização devida por danos patrimoniais nos rendimentos declarados pelos lesados à administração tributária, enquanto estes não raramente invocam em juízo rendimentos bastante superiores sem correspondência com as declarações fiscais.
Assim, conforme o referido preâmbulo, a alteração legislativa em apreço surge “para pôr cobro ao potencial de litigiosidade que aquela situação encerra, procurando, por um lado, contribuir para acentuar a tendencial correspondência entre a remuneração inscrita nas declarações fiscais e a remuneração efetivamente auferida — sinalizando-se também aqui o reforço de uma ética de cumprimento fiscal — e por outro, aumentar as margens de possibilidade de acordo entre seguradoras e segurados (...).” E ainda, de uma cajadada só, consegue-se com estas regras introduzidas no citado art.° 64° “que nestas matérias exista mais objetividade e previsibilidade nas decisões dos tribunais, criando também condições para que a produção de prova seja mais fácil e célere e a decisão mais justa.” (…)
Admite-se por compreensível, que as seguradoras se baseiem nas declarações de rendimentos apresentadas para efeitos fiscais pelos lesados para apresentarem as suas propostas indemnizatórias, o que, como é evidente, não resulta de terem tomado o encargo louvável de defesa da verdade tributária e da captação de receitas fiscais, visando antes a finalidade egoísta de defesa do seu património e aumento dos seus lucros, eximindo-se do cumprimento da sua obrigação contratual de ressarcir os danos patrimoniais efetivamente sofridos pelos lesados, traduzidos na perda de rendimentos presentes ou redução da capacidade de ganho futuro, em consequência de incapacidade com reflexos negativos no exercício da profissão.
Da nossa experiência judicial resulta ainda que, quando estão em causa valores acima de certo limite, como sucede em especial no que respeita a este tipo de danos patrimoniais, as seguradoras apenas fazem acordo se o lesado aceitar receber uma indemnização inferior, por vezes em mais de metade, ao valor concreto dos danos sofridos, sendo preferível, do ponto de vista financeiro, para as seguradoras, obrigar o lesado a propor a competente ação judicial, cuja tramitação em regra exige o decurso de vários anos enquanto se realizam as consabidamente morosas mas imprescindíveis periciais médico-legais para fixação da(s) incapacidade(s), período esse durante o qual o montante indemnizatório que devia estar nas mãos do lesado é investido de forma lucrativa pelas seguradoras dos lesantes devedoras.
Não cremos, pois, que as regras em apreço sejam dotadas da virtualidade de poderem, em alguma medida, contribuir para a diminuição da litigiosidade entre lesados e seguradoras dos lesantes nos acidentes de viação nem para o descongestionamento dos tribunais, apenas podendo redundar em injusto beneficio do património destas à custa do prejuízo do património daqueles.
De outra sorte, estamos certos de que da sua aplicação nunca poderá resultar a facilitação da produção de prova dos rendimentos auferidos pelos lesados e menos ainda uma decisão assente em critérios objetivos e materialmente justa.
Com efeito, sendo com base nas declarações de rendimentos apresentadas à administração tributária que esta calcula o montante de imposto devido pelo apresentante, o qual naturalmente tem interesse em declarar o menos possível por forma a pagar o menos possível, é evidente que raramente tais declarações refletem os verdadeiros rendimentos auferidos e, consequentemente, calcular com base nelas o valor dos rendimentos perdidos em consequência de incapacidade resultante de acidente de viação, é falsear a realidade, em benefício dos lesantes, ou melhor, das seguradoras que se lhes substituem, por obrigação contratual, na indemnização desses danos.
(…)
Não é atribuindo a esse documento — que apenas prova que o emitente declarou o que nele consta - uma especial força probatória em matéria de acidentes de viação, desse modo conduzindo a decisões injustas por baseadas em valores sem correspondência na realidade, que se sensibilizam os contribuintes para a necessidade de não omitirem rendimentos nas declarações fiscais, tanto mais que para essa omissão, a lei prevê sanções de natureza contraordenacional e penal no Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT — aprovado pelo D.L. n.º 15/2001, de 05/06).
A este respeito, por lapidar, veja-se o Ac. do STJ de 14/10/2008, no qual se entendeu, no sentido que propugnamos, que:
“Considerado provado pelas instâncias que o autor auferia o rendimento diário de 40€ no exercício da sua profissão, mas que declarou vencimento inferior para efeito de declaração de IRS e de descontos à Segurança Social, tal situação pode configurar uma infração de natureza fiscal, mas não se afigura que preencha uma situação de abuso de direito que impeça o autor de ser indemnizado pelo dano patrimonial apurado, com base no rendimento que efetivamente deixou de auferir.”
Nunca uma decisão exclusivamente baseada na declaração de rendimentos para efeitos fiscais, de duvidosa força probatória no que concerne aos rendimentos realmente auferidos, ou na ausência dessa declaração baseada num valor ficcionado correspondente ao escalão mais baixo de rendimentos — a RMG -, equiparando situações que podem ser muito diferentes e não permitindo atender às particularidades de cada caso concreto, poderá ser objetivamente justa, no sentido pretendido de atribuir aos lesados uma indemnização de valor correspondente ao dos danos sofridos, antes favorecendo injustificadamente as seguradoras em desfavor das vítimas dos acidentes de viação.
Não se vislumbra como pode o tribunal atender às regras estabelecidas nos n.ºs 7 a 9 do citado art. 64.°, na averiguação dos danos patrimoniais sofridos pelos lesados em acidente de viação e na fixação da indemnização por eles devida, sem afrontar as disposições contidas nos citados art.°s 562° e segs., que visam a indemnização do dano concreto realmente sofrido pelo lesado, nem ofender intoleravelmente os princípios constitucionalmente consagrados da igualdade (cfr. art.° 13° da CRP) e da tutela jurisdicional efetiva (cfr. art.° 20º da CRP), e contrariar frontalmente os princípios gerais do direito comunitário nesta matéria, em especial o direito dos lesados a uma indemnização suficiente, independentemente do país em que sofram o acidente.
Em sede judicial, em ordem a alcançar uma decisão materialmente justa, impõe-se fixar a indemnização devida aos lesados em acidentes de viação como em qualquer outra situação, com base no dano concreto efetivamente sofrido, apurado a partir da análise e valoração de todos os elementos de prova admissíveis em direito, com respeito pelos referidos princípios basilares constitucionais e de direito comunitário, não aplicando as regras contidas nos n.°s 7 a 9 do citado art.° 64°, por materialmente ofensivos desses princípios cuja superioridade impõe a sua observância em detrimento da aplicação destes normativos legais.
Nesta conformidade, no caso dos autos, será com base no rendimento realmente auferido pelo autor aquando do acidente de que foi vítima, apurado a partir da análise e valoração dos diversos elementos probatórios produzidos nessa matéria, que será fixada a indemnização que lhe é devida tanto pela perda de rendimentos em consequência de incapacidade temporária, ora em apreço, como pela perda de capacidade de ganho em consequência de incapacidade permanente e consequentes esforços acrescidos no exercício da profissão, a seguir apreciada. (…).”
4. É desta decisão que o Ministério Público interpõe o presente recurso, apresentando alegações, onde conclui, nos termos seguintes:
“1º
As normas constantes dos nºs 7 a 9 do artigo 64.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, com a redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto, na interpretação efetuada pela sentença recorrida, no sentido de que ao tribunal é vedado o recurso a outros meios de prova para a aferição dos rendimentos dos lesados, vítimas de acidente de viação, opera uma discriminação relativamente à aferição dos rendimentos dos lesados, vítimas de outros acidentes e/ou eventos originadores de responsabilidade civil.
2º
Essa discriminação, ao não consentir o uso de outros meios de prova para além das declarações fiscais ou do montante do RMMG, acaba por cercear, injustificada e desrazoavelmente, o direito de produção de prova, ínsito na garantia de acesso aos tribunais.
3º
E, ao coartar a averiguação dos reais danos patrimoniais sofridos pelos lesados em acidente de viação, assente na verdade dos factos, origina um sistema diferente de fixação do quantum indemnizatório, que se repercute, indelével e negativamente, na fixação da indemnização devida por tais danos.
4º
Efetivamente, a total e radical proibição de recurso a outros meios de prova, pode conduzir a que se lesione o direito do lesado a uma indemnização suficiente, tendo em conta o dano concreto, realmente sofrido, provocando-lhe prejuízos efetivos para os seus interesses.
5º
Como tal, a interpretação normativa questionada, é suscetível de afrontar os princípios constitucionais da igualdade e da tutela jurisdicional efetiva, na vertente do direito à produção de prova, consagrados, respetivamente, nos artigos 13.º e 20.º da Lei Fundamental.
6º
Assim sendo, deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade da interpretação normativa, objeto do presente recurso.”
5. O recorrido igualmente apresenta alegações, com as seguintes conclusões:
“1º As normas dos n.ºs 7 a 9 do artigo 64.º, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, aditadas pelo Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto, entraram em vigor em 11 de agosto de 2008;
2º O acidente dos autos de que emergiram os danos cuja indemnização foi peticionada ocorreu no dia 05/09/2001;
3º Não sendo, em consequência, tais aplicáveis retroactivamente ao caso dos autos;
4º Dão-se por reproduzidas as 6 conclusões das alegações do Exmº Procurador-Geral Adjunto.
Termos em que não merece censura a sentença recorrida, devendo ser mantida (…)”
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
6. Em primeiro lugar, impõe-se delimitar o objeto do presente recurso.
Não obstante o recorrente referir que a sentença recusou a aplicação das normas contidas nos n.os 7 a 9 do artigo 64.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto – o que, de resto, é textualmente afirmado na própria sentença – a verdade é que resulta da análise do teor da decisão que apenas a norma do n.º 7 do referido artigo 64.º é alvo de efetiva recusa, na interpretação segundo a qual, nas ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado, no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao mesmo, o tribunal apenas pode valorar os rendimentos líquidos auferidos à data do acidente, que se encontrem fiscalmente comprovados, após cumprimento das obrigações declarativas legalmente fixadas para tal período.
Na verdade, as normas contidas nos números 8 e 9 do mesmo preceito reportam-se a situações que não se verificavam no caso, pelo que a sua convocação, na decisão recorrida, é meramente argumentativa.
A interpretação normativa enunciada e efetivamente recusada, no caso, traduz-se numa restrição dos meios de prova, em geral admissíveis, vedando o recurso a outros meios para além da prova documental decorrente do cumprimento das obrigações fiscais declarativas de rendimentos auferidos.
7. Uma vez que o recorrido refere, nas alegações apresentadas, que “as normas dos n.ºs 7 a 9 do artigo 64.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, aditadas pelo Decreto –Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto” não são aplicáveis ao caso dos autos, importa salientar que tal juízo se encontra subtraído à sindicância deste Tribunal.
Na verdade, como se refere no Acórdão n.º 44/85, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, “para o Tribunal Constitucional, a norma de direito infraconstitucional que vem questionada no recurso é um dado (…). Saber se essa norma era ou não aplicável ao caso, se foi ou não bem aplicada – isso é da competência dos tribunais comuns, e não do Tribunal Constitucional. Em princípio, o Tribunal Constitucional não pode censurar o modo como os restantes tribunais aplicam o direito infraconstitucional; apenas lhe compete controlar o modo como eles aplicam (ou não) o direito constitucional”. Enfatiza ainda o mesmo aresto que: “Em matéria de fiscalização concreta da constitucionalidade (…) o dado normativo a ser submetido ao parâmetro constitucional chega já definido ao Tribunal Constitucional, não lhe cabendo pô-lo em causa.”
Pelo exposto, no presente recurso, apenas se apreciará a questão de saber se a interpretação normativa, que foi alvo de recusa pelo tribunal a quo, com fundamento em inconstitucionalidade, comporta violação de algum parâmetro da Lei Fundamental.
8. Estatui o preceito, que serve de suporte ao critério normativo em sindicância, o seguinte:
“Artigo 64.º
(…)
7 – Para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao lesado, o tribunal deve basear-se nos rendimentos líquidos auferidos à data do acidente que se encontrem fiscalmente comprovados, uma vez cumpridas as obrigações declarativas relativas àquele período, constantes de legislação fiscal.
(…)”
Tal redação resulta da revisão do “regime aplicável aos processos de indemnização por acidente de viação”, operada pelo Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto.
De acordo com o Preâmbulo do referido diploma legal, as alterações introduzidas inserem-se no âmbito da execução de um plano de ação para o descongestionamento dos tribunais, com vista a “restaurar a capacidade de resposta dos tribunais, através da eliminação do crónico crescimento da pendência processual” e, desta forma, a “garantir que o espaço disponível no sistema judicial fica mais liberto para resolver efetivos conflitos que afetem as pessoas e as empresas.”
Com especial pertinência para a compreensão do concreto preceito, que suporta o objeto do presente recurso, pode ler-se, no mesmo Preâmbulo:
“Uma das medidas previstas na Resolução do Conselho de Ministros n.º 172/2007, de 6 de novembro, diz respeito à “revisão do regime jurídico aplicável aos processos de indemnização por acidente de viação, estabelecendo regras para a fixação do valor dos rendimentos auferidos pelos lesados para servir de base à definição do montante da indemnização, de forma que os rendimentos declarados para efeitos fiscais sejam o elemento mais relevante.”
Com efeito, hoje sucede que a determinação do valor dos rendimentos auferidos pelos lesados em processos de indemnização por acidente de viação, na medida em que contribuem para a definição do quantum indemnizatório por danos patrimoniais, gera litígios evitáveis, uma vez que as seguradoras, em regra, baseiam o respetivo cálculo nos rendimentos declarados pelos lesados à administração tributária, ao passo que os sinistrados, não raras vezes, invocam em juízo rendimentos superiores, sem qualquer correspondência com as respetivas declarações fiscais.
Trata-se, portanto, de uma área que, em razão da potencial litigiosidade que lhe está associada, requer a aprovação de regras mais objetivas, que baseiem o cálculo da indemnização, quanto aos rendimentos do lesado, na declaração apresentada para efeitos fiscais.
Assim, não obstante o avanço trazido pela Portaria n.º 377/2008, de 26 de maio, que veio fixar os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel de proposta razoável para indemnização do dano corporal, torna-se imperioso pôr cobro ao potencial de litigiosidade que aquela situação encerra, procurando, por um lado, contribuir para acentuar a tendencial correspondência entre a remuneração inscrita nas declarações fiscais e a remuneração efetivamente auferida – sinalizando-se também aqui, o reforço de uma ética de cumprimento fiscal – e, por outro, aumentar as margens de possibilidades de acordo entre seguradoras e segurados, evitando o foco de litigância que surge associado à dissemelhança de valores que estas situações comportam. A introdução desta regra contribui igualmente para que nestas matérias exista mais objetividade e previsibilidade nas decisões dos tribunais, criando também condições para que a produção de prova seja mais fácil e célere e a decisão mais justa.”
9. A decisão recorrida baseia a recusa de aplicação da norma - que reputa como abstratamente aplicável ao caso – na violação dos princípios constitucionais da tutela jurisdicional efetiva e da igualdade, consagrados, respetivamente, nos artigos 20.º e 13.º da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP).
Comecemos por analisar o princípio da tutela jurisdicional efetiva.
O direito fundamental de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva corresponde a um alicerce estruturante do Estado de Direito democrático, que se traduz na faculdade de obter, pela via judiciária, a garantia de proteção e realização de direitos e interesses legalmente protegidos, nomeadamente através de uma solução justa de conflitos, com observância de imperativos de imparcialidade e independência.
De entre as várias dimensões em que se desdobra o direito à tutela jurisdicional efetiva, salienta-se, como alvo da presente análise, a garantia de um processo equitativo, por ser essa a vertente que mais se evidencia como potencialmente beliscada pela interpretação normativa posta em crise.
O princípio da equitatividade é expressamente referido no n.º 4 do artigo 20.º da Lei Fundamental, que dispõe o seguinte:
“Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.”
10. O direito fundamental a um processo equitativo pressupõe uma estrutura processual adequadamente conformada aos fins do processo, que conduza ao seu desenvolvimento em condições de equilíbrio, direcionada à obtenção de uma decisão ponderada, materialmente justa do litígio, que proporcione aos interessados meios efetivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos (Acórdão n.º 632/99). Da conformação justa e adequada do processo – de um processo equitativo - dependerá a efetividade do direito à tutela jurisdicional.
Um processo equitativo implica uma dialética, em que cada uma das partes tenha a possibilidade, em igualdade de armas, de apresentar a sua versão e os seus argumentos, de facto e de direito, oferecer provas e pronunciar-se sobre os argumentos e material probatório carreado pela parte contrária, antes da prolação da decisão judicial.
No âmbito do direito a um processo equitativo, está compreendido um “direito constitucional à prova” abrangendo “o direito à prova em sentido lato (poder de demonstrar em juízo o fundamento da própria pretensão) e o direito à prova em sentido restrito (alegando matéria de facto e procedendo à demonstração da sua existência)” (J.J. Gomes Canotilho, “Estudos sobre Direitos Fundamentais”, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, p. 170).
Na síntese de M. Teixeira de Sousa, a prova pode ser definida como a atividade direcionada, num processo, à “demonstração convincente (…) de uma afirmação de facto”, com o objetivo de contribuir para que, na mente do julgador, se forme a convicção sobre a realidade dos factos relevantes para a decisão (cfr. M. Teixeira de Sousa, “As partes, o objeto e a prova na ação declarativa”, Lex, Lisboa 1995, p. 195).
A atividade probatória assenta na apresentação dos meios de prova: “os elementos sensíveis ou percetíveis, nos quais o tribunal pode alicerçar a convicção sobre a realidade do facto” (M. Teixeira de Sousa, op. cit, p. 236).
Não obstante ser constitucionalmente garantida, como refração do direito a um processo equitativo, a faculdade das partes, num determinado processo, exporem as suas razões, trazendo ou produzindo, perante o tribunal, as provas que apoiam as suas pretensões, é reconhecida ao legislador uma ampla margem de liberdade de conformação processual, que lhe permite introduzir restrições ou limitações à admissibilidade dos meios de prova, em termos qualitativos ou quantitativos, e à respetiva valoração pelo julgador, desde que tais restrições sejam razoavelmente ajustadas, não desnecessariamente excessivas, nem desmesuradas.
A este propósito, refere o Acórdão n.º 452/2003 do Tribunal Constitucional (disponível no sítio da internet já aludido, onde é possível encontrar os acórdãos doravante mencionados):
“ (…) a garantia de acesso ao Direito e aos tribunais prevista no artigo 20.º da Constituição não contempla a possibilidade de utilização irrestrita de todos os meios de prova em qualquer processo judicial (…), nem proíbe o legislador de restringir o uso de certos instrumentos probatórios, desde que tal restrição não se configure como desproporcionada ou irrazoável”
Mas a margem de liberdade do legislador, neste âmbito, encontra-se condicionada, desde logo, pelo princípio da proporcionalidade das restrições ao direito à tutela jurisdicional efetiva e ao direito a um processo equitativo, nos termos dos n.os 2 e 3 do artigo 18.º da CRP.
11. Vejamos de que forma as considerações expendidas se aplicam à concreta questão de constitucionalidade colocada.
Encontramo-nos no âmbito da responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação.
O Acórdão n.º 25/2010, pronunciando-se sobre matéria atinente ao mesmo âmbito de responsabilidade, referiu o seguinte:
“O princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição, tem ínsito um princípio jurídico fundamental, historicamente objetivado e claramente enraizado na consciência jurídica geral, segundo o qual todo e qualquer autor de ato ilícito gerador de danos para terceiros se constitui na obrigação de ressarcir o prejuízo que causou (Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, pág. 442). E o lesado tem o direito correspondente, a exercer contra o autor do facto lesivo ou contra aquele a quem a responsabilidade seja juridicamente imputável.
Porém, em muitos casos, como se frisou no acórdão n.º 270/09, este direito à reparação dos danos depara-se com uma inultrapassável dificuldade de concretização prática: a inexistência de património do obrigado à reparação suscetível de execução. É, por isso, frequente que o legislador institua o dever de cobrir com um seguro de responsabilidade civil a obrigação de indemnizar que possa estar ligada ao exercício de determinadas atividades potencialmente geradoras de danos para terceiros de modo a que, verificado o evento que obriga à reparação, os lesados possam ter perante si uma entidade cuja solvabilidade esteja, em princípio, garantida (a seguradora) e não (ou não apenas) o lesante, cujos acasos de fortuna podem esvaziar de conteúdo prático o direito à indemnização.
O seguro automóvel obrigatório é precisamente um destes institutos. As regras gerais da responsabilidade civil tornaram-se inidóneas para dar resposta, prática, equitativa e economicamente equilibrada, ao problema da reparação dos danos emergentes de acidentes de viação. Sendo a circulação rodoviária uma das atividades em cujo desenvolvimento mais frequentemente ocorrem acidentes suscetíveis de causar danos pessoais ou patrimoniais a terceiros, ao estabelecer a obrigação de cobrir a responsabilidade civil emergente da circulação de veículos, não deixando a sua sorte ao acaso da previdência dos responsáveis, o legislador protege de modo genérico as potenciais vítimas e futuros titulares do direito à reparação.”
Como decorre do excerto transcrito, os acidentes de viação estão, frequentemente, na origem de danos graves, pelo que o legislador, reconhecendo a utilidade social da circulação rodoviária, e pretendendo salvaguardar o direito ao efetivo recebimento da justa indemnização pelos lesados, criou mecanismos adequados a proteger o equilíbrio entre a manutenção de tal atividade e a proteção das vítimas. É nessa lógica que se integra a instituição do regime de seguro obrigatório.
A norma em apreciação no presente recurso insere-se no âmbito de uma revisão do “regime aplicável aos processos de indemnização por acidente de viação”, operada pelo Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto, introduzindo alterações ao Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, que aprovou o “regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel”.
Na interpretação normativa assumida pela decisão recorrida, o n.º 4 do artigo 67.º do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de agosto, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto, determina que, nas ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado, no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao mesmo, o tribunal apenas pode valorar os rendimentos líquidos auferidos à data do acidente, que se encontrem fiscalmente comprovados, após cumprimento das obrigações declarativas legalmente fixadas para tal período.
De acordo com tal entendimento, a norma restringe os meios de prova admissíveis, vedando ao julgador a possibilidade de valorar outros meios de prova, para além da prova documental decorrente do cumprimento das obrigações fiscais declarativas de rendimentos auferidos.
De tal restrição decorrerá que o incumprimento do dever de verdade do contribuinte, relativamente a tais obrigações declarativas – que, como salienta a decisão recorrida, frequentemente ocorre através de uma declaração inexata, por defeito, dos rendimentos auferidos, por forma a diminuir o valor do imposto a pagar – terá efeitos incontornáveis sobre o cálculo da indemnização que lhe possa vir a ser devida, na sequência de acidente de viação.
Desta forma, cria-se uma situação em que danos importantes como a perda de rendimentos provenientes do trabalho, por incapacidade temporária, e sobretudo a perda ou redução da capacidade de ganho, por incapacidade permanente – que frequentemente correspondem à maior fatia do montante global indemnizatório devido por força de acidentes de viação - poderão não ser suficientemente ressarcidos.
Embora, como se afirmou, não caiba ao Tribunal Constitucional substituir-se à margem de liberdade do legislador no juízo valorativo que conduz à opção pela restrição probatória em causa, traduzida na introdução da norma em sindicância, respeitante ao regime da fixação da indemnização devida por acidente de viação, com fundamento, designadamente, no objetivo de celeridade processual, cabe-lhe, ainda assim, apreciar se tal opção comprime, de forma desproporcionada, sem justificação razoável e suficiente, a formatação, constitucionalmente imposta, de um processo equitativo, e consequentemente, o sentido útil da tutela jurisdicional efetiva.
Ora, apesar de se reconhecer a importância da proteção do bem jurídico constitucional da celeridade processual, enunciado pelo legislador como fundamento da introdução da norma em sindicância, no regime da fixação da indemnização devida por acidente de viação, e da adequação da medida para o realizar, aquele desígnio não pode comprometer, de forma desproporcionada, a funcionalidade ou sentido útil do direito à tutela jurisdicional efetiva.
Sucede que a solução legislativa em causa, dando prevalência à celeridade na resolução do conflito, prejudica, precisamente, os lesados em acidente de viação que, sendo, embora, os principais interessados na celeridade da obtenção do ressarcimento, são, ao mesmo tempo, os prejudicados pela exclusão de outros meios de prova que coadjuvassem a fixação da indemnização do efetivo dano sofrido. É por esta razão que os lesados estão dispostos a abdicar da celeridade, sempre que discordam da fixação do montante indemnizatório, atacando-a em juízo. Com a solução normativa em apreciação, a parte mais fragilizada vê cerceada, sem justificação bastante, a possibilidade de, em juízo, fazer corresponder o valor da indemnização à realidade dos danos sofridos, por impossibilidade de valoração judicial dos rendimentos realmente auferidos, o que, nalguns casos, pode ter consequências de extrema gravidade.
Também não se vê que o facto de ter sido apresentada pelo próprio lesado, para fins fiscais, a declaração que servirá como único comprovativo do rendimento a atender para efeitos de cálculo da indemnização – declaração que pode não corresponder à verdade - deva pesar decisivamente no sentido de vedar a valoração, pelo tribunal, de outros meios de prova mediante os quais fosse possível chegar aos rendimentos efetivamente auferidos e, com isso, ao montante indemnizatório justo.
Afastar a ponderação de outros meios de prova, pelo tribunal, com o intuito de fomentar a coincidência entre a remuneração inscrita nas declarações fiscais e a remuneração efetivamente auferida – no “reforço de uma ética de cumprimento fiscal” -, é uma opção que pode prejudicar de forma irrazoável e excessiva o direito ao justo ressarcimento, em momento de particular fragilidade da vítima de acidente de viação.
Isto dito, verifica-se que a pesada desvantagem para o lesado em acidente de viação, acarretada pela solução de afastar outros meios de prova, não encontra justificação bastante nas finalidades pretendidas. O prejuízo sentido pelos lesados excede, de forma desmesurada, os benefícios perseguidos pela solução legal em análise.
Assim sendo, no caso, a limitação probatória imposta no regime de fixação da indemnização devida por acidente de viação, impedindo, em absoluto, a valoração de meios de prova que poderiam demonstrar factos relevantes e imprescindíveis para apurar o valor indemnizatório justo a atribuir aos lesados, não se mostra equilibrada em face do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. Tal limitação, associada à especial fragilidade da vítima de acidente de viação, pode pôr em causa, de forma intolerável, o justo ressarcimento dos danos sofridos, sendo desconforme com a justiça e equidade que devem ser apanágio do processo.
A restrição probatória ínsita na interpretação normativa em análise, na medida em que constitui um obstáculo a que o julgador apure o dano efetivo do lesado, numa componente tão importante, anulando a margem de liberdade de decisão, quanto à pertinência de valoração e utilidade de produção de outros meios de prova, comporta uma significativa afetação do direito à tutela jurisdicional efetiva, na vertente da garantia de um processo equitativo, conducente ao justo ressarcimento do lesado, vítima de acidente de viação.
Concluímos, desta forma, pela inconstitucionalidade da interpretação normativa em apreciação, por violação do direito à tutela jurisdicional efetiva, na vertente da garantia de um processo equitativo.
Encontrando-se assente o juízo de inconstitucionalidade, torna-se desnecessário analisar a eventual violação de outros parâmetros da Lei Fundamental.
III - Decisão
13. Pelo exposto, decide-se:
a) julgar materialmente inconstitucional, por violação do direito à tutela jurisdicional efetiva, na vertente da garantia de um processo equitativo, consagrada no artigo 20.º, n.º 4, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 2, ambos da Constituição, e do direito à justa reparação dos danos, decorrente do artigo 2.º da Constituição, a interpretação normativa extraída do n.º 7 do artigo 64.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto, correspondente ao entendimento segundo a qual, nas ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado, no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao mesmo, o tribunal apenas pode valorar os rendimentos líquidos auferidos à data do acidente, que se encontrem fiscalmente comprovados, após cumprimento das obrigações declarativas legalmente fixadas para tal período;
b) e, em consequência, julgar improcedente o recurso.
Sem custas.
Lisboa, 12 de julho de 2012 – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro – José da Cunha Barbosa – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos