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Processo n.º 413/12
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, A. interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
O objeto do recurso foi delimitado, pelo recorrente, nos seguintes moldes:
“(…) apreciação da constitucionalidade da norma vertida no art.º 229-A do CPC conjugado com o art.º 16º do CCJ, por violação da reserva absoluta da lei formal, da legalidade e da tipicidade contida no art.º 103 nº 2 e 3 e 165º nº 1 al. i) da CRP, na interpretação tácita dada pelo tribunal de 1ª instância e pelo TRL, sobre a arguição de inconstitucionalidade suscitada e fundamentada na petição inicial e nas alegações de recurso, pois o art.º 229-A do CPC não tem sanção legal; e se a tiver, aplicando-se o art.º 16º do CCJ, torna este também inconstitucional por violação dos supra citados preceitos constitucionais conjugados com os artºs 202 nº 2 e 208º da CRP, pois não pode o sancionado ser o mandatário, conforme arguição e fundamentação das inconstitucionalidades suscitadas nos mesmos lugares e, por fim, violarem-se os princípios da colaboração e cooperação entre magistrados e advogados, ferindo-se assim o art.º 208º da CRP, que implica a aplicação aos advogados do regime de imunidades e prerrogativas conferido pelos artºs 5º do EMJ e do art.º 10º do EO, conforme também suscitado nas mesmas peças processuais.”
2. Por Decisão Sumária de 2 de agosto de 2012, não se conheceu do objeto do recurso, com os seguintes fundamentos:
“4. O recorrente não especifica, de forma clara e inequívoca, a concreta interpretação normativa, cuja sindicância pretende, limitando-se a identificar as disposições legais, que lhe servirão de suporte, e a remeter para o entendimento sufragado (pelo Tribunal de 1.ª Instância e) pelo Tribunal da Relação de Lisboa, sem que, em rigor, concretize os específicos contornos de tal entendimento.
Incumpre o recorrente, desta forma, o disposto no n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC, in fine.
Na verdade, por força do referido preceito, tem este Tribunal entendido que sobre a parte, que pretenda questionar a constitucionalidade de uma determinada interpretação normativa, impende o ónus de enunciar expressamente tal interpretação, em termos tais que o Tribunal Constitucional, no caso de concluir pela sua inconstitucionalidade, possa reproduzir tal enunciação, de modo a que os respetivos destinatários e operadores do direito em geral fiquem cientes do concreto sentido interpretativo julgado desconforme com a Lei Fundamental.
A omissão de menção, autónoma e especificada, de tal elemento não é, por natureza, abstratamente insuprível.
Porém, não é equacionável, in casu, facultar ao recorrente a possibilidade de suprir a analisada deficiência, mediante o convite ao aperfeiçoamento a que se reporta o n.º 6 do referido artigo 75.º-A, atenta a não verificação de pressupostos de admissibilidade do recurso, que sempre determinaria a impossibilidade de conhecimento de mérito, como melhor exporemos infra.
Na verdade, o convite ao aperfeiçoamento, previsto no artigo 75.º-A, n.os 5 e 6, da LTC, só tem sentido útil quando faltam apenas meros requisitos formais do requerimento de interposição do recurso – a que se alude nos n.os 1 a 4 do mesmo preceito - carecendo, ao invés, de utilidade quando faltam pressupostos de admissibilidade do recurso, que não podem ser supridos deste modo. Nesta última hipótese, em vez de proferir um convite ao aperfeiçoamento – que determinaria a produção de processado inútil, em prejuízo dos princípios de economia e celeridade processuais – deve o relator proferir logo decisão sumária, no sentido do não conhecimento do recurso (cfr., neste sentido, acórdãos deste Tribunal Constitucional n.os 99/00, 397/00, 264/06, 33/09 e 116/09, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
5. Feito este esclarecimento prévio, detenhamo-nos sobre os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, atendendo à especificidade do concreto tipo de recurso em análise nos autos.
O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP); artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
6. Como já referimos, o recorrente não enuncia, de forma clara e explícita, no requerimento de interposição do recurso, o específico critério normativo, cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, limitando-se a mencionar duas disposições legais, de que tal critério será presumivelmente extraível.
Porém, não estando em causa qualquer interpretação normativa insólita ou surpreendente que, sendo adotada de forma imprevisível pelo tribunal a quo, poderia legitimar uma não suscitação prévia da mesma – note-se que, desde logo, fica afastada essa possibilidade, face à circunstância de o recorrente identificar as peças processuais em que suscitou previamente a questão - conclui-se que o critério normativo, cuja constitucionalidade o recorrente pretende ver sindicada, deverá ter sido problematizado junto do tribunal a quo, antes de esgotado o seu poder jurisdicional.
Ora, in casu, analisadas as alegações do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa – peça processual em que o recorrente deveria ter suscitado ou renovado a suscitação da questão de constitucionalidade, que pretendesse ver apreciada em ulterior recurso a interpor para o Tribunal Constitucional – constata-se que o recorrente se reporta à alegada violação da Lei Fundamental, nos seguintes termos:
“(…) o legislador não consagra qualquer sanção legal para o não cumprimento do artº 229º-A do CPC, pelo que não pode o tribunal substituir-se a este, aplicando um imposto ou taxa não previsto na lei (…)
Até porque as normas de incidência tributária (pessoal ou subjetiva, ou seja, as que definem os responsáveis pelo pagamento de impostos ou taxas) estão sujeitas ao princípio de reserva absoluta de lei formal, da legalidade e da tipicidade (artºs 103º nº 2 e 3 e 165º nº 1 al. i) da CRP).
(…) Ora, a lei nacional não prevê em parte alguma a responsabilidade do advogado pelo pagamento de custas (exceção feita no artº 459º do CPC, exceção esta que só confirma a regra), pelo que tendo-se tributado este e não a parte que representa (o que seria igualmente ilegal), torna não só o ato nulo (artº 201º do CPC), como também inconstitucional, pois a aplicação do artº 16º do CCJ aos [advogados] (e até às partes no caso sub judice) viola os artºs 103º nº 2 e 3, 165º nº 1 al. i), 202º nº2 e 208º da CRP e artº 6º nº 1 da CEDH.
(…)
Além disso, a sanção aplicada em sede do artº 229º- A do CPC, faz perder todo o sentido aos princípios da colaboração e cooperação entre magistrados e advogados.
(…) Violando também o artº 67º nº 1 do EOA, mas principalmente o artº 208º da CRP que (cfr. artº 18º nº 1 ex vi do artº 17º da CRP), só pode ser entendido para os advogados, como aplicando-se-lhes a estes por analogia as imunidades e prerrogativas conferidas pelo artº 5º do EMJ e artº 10º do Estatuto dos Deputados.”
Tal argumentação é retomada nas conclusões.
Analisado o excerto transcrito, conclui-se que o recorrente problematiza a constitucionalidade do entendimento que associa ao incumprimento da notificação, determinada pelo artigo 229.º-A, n.º 1, do Código de Processo Civil, a realização dessa notificação pelo Tribunal e a tributação do mandatário responsável em custas, nos termos do artigo 16.º do Código das Custas Judiciais.
Tal entendimento, porém, não corresponde à ratio decidendi da decisão recorrida.
Na verdade, o acórdão recorrido não adere, nem assume posição sobre a correção do entendimento enunciado, mas apenas sobre a circunstância de o mesmo não se evidenciar como “um erro grosseiro”.
De facto, refere-se, na decisão recorrida, que “os atos jurisdicionais de interpretação de normas de direito e respetiva valoração dos factos, na aplicação ao caso concreto (…) são insindicáveis em termos de erro, a não ser que o mesmo seja intolerável, indesculpável, que proceda de culpa grave do errante, constituindo uma aberratio legis, e assim grosseiro (…) e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas.”
Em conformidade, o acórdão recorrido perspetiva o entendimento, posto em crise pelo recorrente, como um dado, apenas analisando se o mesmo constitui um erro intolerável, indesculpável e, nessa medida, se a prolação do despacho, que consagra tal entendimento, é gerador da obrigação de indemnizar por parte do Estado.
Pelo exposto, conclui-se que a questão que o recorrente erige como objeto do recurso – plasmada, no respetivo requerimento de interposição, de forma difusa, mas aferível pela análise da exposição prévia constante das alegações - não corresponde ao fundamento jurídico da solução encontrada pelo tribunal a quo, que, como já afirmámos, se centra – para além das questões relativas à alegada nulidade por falta de fundamentação e omissão de pronúncia, nos termos das alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil, que o acórdão também resolve – no regime jurídico da responsabilidade extracontratual do Estado.
Assim, não incidindo a questão de constitucionalidade problematizada pelo recorrente no fundamento jurídico ou ratio decidendi do acórdão recorrido, fica prejudicada a sua apreciação, atenta a instrumentalidade do recurso.
Na verdade, o caráter ou função instrumental do recurso de constitucionalidade traduz-se na possibilidade de o julgamento da questão de constitucionalidade se repercutir, de forma útil e eficaz, na solução jurídica do caso concreto. Tal possibilidade efetiva-se quando a decisão sobre a questão de constitucionalidade é suscetível de alterar o sentido ou os efeitos da decisão recorrida, implicando uma reponderação da solução dada ao caso, pelo tribunal a quo. Pelo contrário, a mesma possibilidade é afastada – acarretando a inutilidade da apreciação do mérito do recurso - quando a decisão sobre a questão de constitucionalidade seja insuscetível de se projetar no caso concreto, nomeadamente por incidir sobre norma ou interpretação normativa que não foi utilizada como ratio decidendi da decisão recorrida.
No caso, independentemente do juízo que o Tribunal pudesse emitir sobre a questão de constitucionalidade colocada, o sentido da decisão recorrida, quanto à improcedência da pretensão indemnizatória do recorrente, manter-se-ia intocada.
Por tudo quanto fica exposto, sendo os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade de necessária verificação cumulativa, conclui-se, desde já, pela inadmissibilidade do presente recurso.”
3. Inconformado, o recorrente apresentou reclamação, defendendo que as considerações feitas pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a propósito do erro, reportam-se necessariamente à norma identificada como objeto do recurso, pelo que nada obsta à sua admissibilidade.
Acresce que, ainda que se entenda que o tribunal recorrido não assume posição quanto à interpretação normativa, cuja apreciação de constitucionalidade é pretendida, tal omissão não pode implicar a rejeição do presente recurso, por se dever considerar que a aplicação da norma, exigível para a admissibilidade do recurso de constitucionalidade, tanto pode ser expressa como implícita.
Assim, considerando que a interpretação normativa, identificada como objeto do recurso, é “ratio decidendi mediata” da decisão recorrida, ao contrário do que se refere na decisão reclamada, conclui o recorrente pela procedência da reclamação, mais invocando a ilegalidade e inconstitucionalidade da decisão sumária proferida, por violação do artigo “20º nº 4 da CRP, que estatui um due process que se traduz na proibição de requisitos ou exigências processuais desnecessárias”.
4. O Ministério Público, respondendo à reclamação, refere, em síntese, que não assiste razão ao reclamante, não encontrando a sua tese apoio na jurisprudência citada do Tribunal Constitucional.
Conclui, desta forma, que não existem razões para alterar o sentido da decisão sumária proferida.
II - Fundamentos
5. Como resulta do teor da reclamação e do seu confronto com os fundamentos exarados na decisão sumária reclamada, o reclamante não aduziu qualquer argumento que abalasse a correção do juízo efetuado.
Na verdade, inferindo-se da análise das alegações do recurso, interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa, que a questão que o recorrente pretenderia ver apreciada corresponde à constitucionalidade do entendimento que associa ao incumprimento da notificação, determinada pelo artigo 229.º-A, n.º 1, do Código de Processo Civil, a realização dessa notificação pelo Tribunal e a tributação do mandatário responsável em custas, nos termos do artigo 16.º do Código das Custas Judiciais, reafirma-se que tal entendimento não corresponde à ratio decidendi da decisão recorrida.
De facto, como se refere na decisão reclamada, o tribunal recorrido não adere ou assume posição quanto à correção do entendimento enunciado, mas apenas quanto à circunstância de o mesmo não se evidenciar como “um erro grosseiro”, justificando tal atitude referindo que “os atos jurisdicionais de interpretação de normas de direito e respetiva valoração dos factos, na aplicação ao caso concreto (…) são insindicáveis em termos de erro, a não ser que o mesmo seja intolerável, indesculpável, que proceda de culpa grave do errante, constituindo uma aberratio legis, e assim grosseiro (…) e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas.”
Assim sendo, não assiste razão ao reclamante quando refere que a questão enunciada como objeto do recurso corresponde à “ratio decidendi mediata” da decisão recorrida ou quando afirma que ocorreu uma aplicação implícita do critério normativo cuja constitucionalidade é colocada em crise, não encontrando a sua tese apoio na jurisprudência constitucional que refere.
Em face do exposto, reafirmando e dando por reproduzida toda a fundamentação constante da decisão reclamada, resta apenas concluir pela impossibilidade de conhecer do objeto do recurso e, em consequência, pelo indeferimento da reclamação da decisão sumária, proferida nestes autos a 2 de agosto de 2012, que se enquadra no sentido da jurisprudência consolidada deste Tribunal Constitucional, não beliscando, de nenhuma forma, o direito consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da Lei Fundamental.
III - Decisão
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão sumária reclamada no sentido do não conhecimento do objeto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 26 de setembro de 2012.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.