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Proc. nº 387/03 TC – 1ª Secção Rel.: Cons.º Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 – Nos autos supra identificados, em que é recorrente A., foi proferida a seguinte decisão sumária:
'1 - A., identificado nos autos, recorre para este Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 70º n.º 1 alínea b) da LTC, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 340 e segs.
Nos termos do requerimento de interposição do recurso, o recorrente pretende ver apreciada a constitucionalidade das normas dos artigos 720º do Código de Processo Civil e 37º n.º 1 alínea d) [por manifesto lapso, o recorrente refere apenas 'alínea d)'] do Decreto-Lei n.º 387-B/87 de 29 de Dezembro, os quais violariam os artigos 13º, 20º n.º 1 e 266º n.º 2 da CRP.
O recurso foi admitido no tribunal 'a quo' e os autos foram remetidos ao Tribunal Constitucional.
Cumpre decidir.
2 - O artigo 720º do CPC tem como epígrafe 'Defesa contra as demoras abusivas'.
Trata-se, com efeito, de uma disposição que visa obviar a manobras dilatórias das partes - requerimentos com os quais se pretende obviar ao cumprimento do julgado ou à baixa do processo, ou à sua remessa para o tribunal competente (n.º 1) e incidentes, manifestamente infundados, com o objectivo de evitar o trânsito em julgado da decisão do recurso (n.º2).
Só este n.º 2 foi aplicado no acórdão da Relação do Porto de fls.
259 e segs., com fundamento em que o recorrente estava a impedir que a decisão contida no acórdão documentado a fls. 220 e segs. 'em tempo devido se cumpra' e, portanto, apenas a norma nele contida pode ser apreciada neste recurso nos termos do disposto no artigo 70º n.º 1 alínea b) da LTC.
Ora, é manifesto que tal norma não enferma de qualquer inconstitucionalidade, maxime por violação do direito de acesso à justiça consagrado no artigo 20º n.º 1 da CRP (cfr. n.º 54 das alegações de recurso para o STJ).
Com efeito, a norma em causa não subtrai o processo 'à acção fiscalizadora dos Tribunais Superiores' - os incidentes posteriores à decisão, com os quais, segundo o juízo do tribunal, a parte pretende obstar ao trânsito em julgado daquela decisão, não deixam de ser apreciados e julgados. Sucede, apenas, que o processo é remetido ao tribunal 'a quo' - evitando-se, assim, que a parte alcance o objectivo censurável que visou - ficando no tribunal competente para apreciar os ditos incidentes cópia ou certidão das peças processuais necessárias para o efeito, sendo ainda certo que a lei salvaguarda os efeitos de uma eventual decisão favorável à parte, com a anulação do processado.
Não são, deste modo, em nada afectados os direitos da parte à apreciação e julgamento dos incidentes que suscitou.
Coisa diversa é a de saber se a conduta processual da parte é correctamente avaliada ou se as certidões que ficam no tribunal competente são bastantes para o julgamento dos incidentes; mas isso é questão que nada tem a ver com a constitucionalidade da norma aplicada e só esta é questão que o Tribunal Constitucional pode conhecer nos termos do artigo 70º n.º 1 alínea b) da LTC.
3 - Nos termos do artigo 37º n.º1 alínea d) do Decreto-lei n.º
387-B/87, de 29 de Dezembro, é retirado o apoio judiciário se o requerente tiver sido condenado como litigante de má fé e essa condenação for confirmada em recurso. Esta norma veio também a ser consagrada no artigo 37º n.º 1 alínea d) da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro que revogou o Decreto-Lei n.º 387-B/87
(artigo 56º n.º 1).
A norma tem um fundamento racional e ético evidente: impedir que a medida de apoio judiciário, concedida para permitir que a insuficiência económica do cidadão não constitua óbice à defesa judicial dos seus direitos e interesses legítimos, seja usada para litigância de má fé, ou seja com uma conduta processual tipificada no n.º 2 do artigo 456º do CPC.
Vinculadas as partes ao princípio da cooperação (artigo 266º do CPC) e ao dever de boa fé processual (artigo 266º-A do CPC), não podem elas reclamar um acesso aos tribunais para, depois de garantido esse acesso, assumirem condutas processuais que comprometem a justa composição dos litígios, com brevidade e eficácia.
Note-se, de resto, que o legislador foi particularmente cuidadoso ao prever a medida de retirada do apoio judiciário que só pode ser decretada se a condenação como litigante de má fé for confirmada em recurso.
O condicionamento (ou, se se quiser, a restrição) ao direito de acesso à justiça é, assim, materialmente fundado, adequado e proporcionado.
E se, por esta via, se instala, entre as partes, uma desigualdade, ela só se deve ao próprio beneficiário do apoio judiciário que, à custa do erário público (à custa de todos os cidadãos contribuintes), usa os tribunais para fins reprováveis que, obviamente, não são os que justificam a concessão daquela medida.
4 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso, por nele se dirimirem questões manifestamente infundadas.
.............................................................................................................'
Notificado desta decisão apresentou o recorrente, com invocação do disposto no artigo 669 nº 1 alínea a) do CPC, requerimento (fls. 381) onde pediu determinado
“esclarecimento” e que mereceu o seguinte despacho (fls. 383 e segs.):
'1 - A., identificado nos autos, interpôs recurso de acórdão do STJ de fls. 340 e segs para este Tribunal, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade das normas dos artigos 720º do CPC e 37º n.º 1 alínea d) do Decreto-Lei n.º
387-B/87.
O relator proferiu, em 12/6/2003, decisão sumária de negação de provimento ao recurso, por neste se dirimirem questões manifestamente infundadas.
Entretanto, em 11/6/2003, dera entrada neste Tribunal expediente provindo do STJ (só, porém, junto aos autos em 16/6/2003) onde constava requerimento do recorrente apresentado no STJ em 5/6/2003; nesse requerimento alegava-se a ilegibilidade parcial do despacho de fls. 365 (de 22/5/2003), proferido pelo relator do citado acórdão de fls. 340 e segs., e pedia-se 'cópia dactilografada do mesmo'.
Em 30/6/2003, o recorrente apresentou o requerimento que está junto aos autos a fls. 381 onde, depois de dar conta do facto de não ter conhecimento de qualquer despacho relativo à pretensão por ele formulado em 5/6/2003, pede, com invocação do disposto no artigo 669º n.º 1 alínea a) do CPC, que 'V.Exª se digne esclarecer se o teor daquele despacho do Supremo Tribunal de Justiça foi ou não tomado em consideração por V. Exª ao proferir a douta 'Decisão Sumária' de que fomos notificados'.
Cumpre decidir.
2 - Nos termos do artigo 78º-A n.º 3 da LTC da decisão sumária prevista no n.º 1 do mesmo preceito cabe reclamação para a conferência.
Consequentemente, na falta de reclamação aquela decisão transita em julgado.
Não está, porém, excluído que, previamente, o recorrente requeira, nos termos do artigo 669º n.º 1 alínea a) do CPC, o 'esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade' que a decisão reclamanda contenha; o prazo para a reclamação contar-se-á, então, a partir do despacho que deferir ou indeferir o pedido de aclaração.
Ponto é que se trate, substancialmente e independentemente do seu mérito, de um pedido de esclarecimento relativamente ao teor do despacho em causa. O que significa que não basta a mera invocação do disposto no artigo 669º n.º 1 alínea a) do CPC e a alusão expressa a um pedido de 'esclarecimento' para se considerar que se está perante o meio processual ali previsto com o inerente efeito interruptivo do prazo para reclamar da decisão sumária para a conferência.
Ora, no caso, só formalmente o pedido é de esclarecimento, uma vez que o recorrente não manifesta qualquer dificuldade de apreensão do teor da decisão sumária que julgou improcedente o recurso de constitucionalidade, limitando-se a formular a pergunta ao relator sobre se tomou em consideração o aludido despacho de fls. 365, supostamente ilegível, proferido no STJ.
A decisão sumária é, aliás, claríssima, limitando-se a conhecer das questões de constitucionalidade que, reportadas ao acórdão do STJ recorrido (de
18/12/2002), o recorrente pretendia ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional, sendo irrelevante para efeito, e qualquer que fosse o seu teor, o despacho de fls. 365 (datado de 22/5/2003). Senão vejamos:
- Em 18/12/2002 é proferido pelo STJ acórdão que nega provimento ao recurso interposto pelo ora recorrente de acórdão da Relação do Porto.
- O recorrente apresenta em 15/1/2003 dois requerimentos, um de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão de 18/12/2002 e outro de arguição de nulidade do mesmo aresto.
- Por acórdão de 20/3/2003 o STJ julga improcedente a arguição de nulidade.
- Em 3/4/2003, o recorrente apresenta novo requerimento, alegando que o acórdão de 20/3/2003 não conhecera do recurso de constitucionalidade 'o que constitui(ria) uma nulidade por omissão de pronúncia, além de violação do disposto no artº 76º n.º 1 da Lei do Tribunal Constitucional' e reclamando 'nos termos do disposto no artigo 76º n.º 4 da Lei do Tribunal Constitucional para este Venerando Tribunal'; pede que 'o processo siga os ulteriores termos, ou seja, os previstos nos artºs 77º n.º 1 e 78º-A n.ºs 3 e 4 da Lei do Tribunal Constitucional'.
- Sobre este requerimento é proferido, em 7/4/2003 o seguinte despacho:
'Fls. 359:
· O acórdão de fls, 356 só conheceu da invocada nulidade do acórdão de fls. 340.
· Conhecer-se-á agora da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional (fls. ) Admito o recurso, com efeito meramente devolutivo e subida imediata e em separado.
Notifique.'
- Em 2/5/2003, o recorrente pede a entrega de cópia legível do despacho de 7/4/2003.
- O requerimento é deferido e em 21/5/2003, o recorrente argui a nulidade do mesmo despacho com fundamento em que não conhecera da 'matéria constitucional suscitada', apreciação que 'se integra(ria) na esfera cognitiva obrigatória do Juiz que admite o recurso' (!).
- Sobre este requerimento é proferido, em 22/5/2003, o seguinte despacho:
'Não se mostram violadas quaisquer normas da Constituição da República Portuguesa.
Remeta de imediato os autos ao Tribunal Constitucional.'
- Em 27/5/2003 os autos são remetidos ao Tribunal Constitucional, onde veio a ser junto o expediente, supra referido, vindo do STJ, onde consta o também já referido pedido de cópia legível do despacho de fls. 22/5/2003.
Do que acaba de se relatar resulta evidente o que acima se começou por dizer: o pedido de 'esclarecimento' formulado pelo recorrente nada tem a ver com o meio previsto no artº 669º n.º 1 do CPC.
Constituindo, com efeito, a decisão sumária o julgamento do recurso interposto do acórdão do STJ de 18/12/2002 e não aludindo ela, como se impunha, a qualquer outro despacho posterior a tal aresto, o que o recorrente faz, sob a capa de um
'pedido de esclarecimento', não é mais do que uma pergunta descabida que não pode reportar-se à inteligibilidade daquela decisão.
Aliás, o recorrente bem sabia a questão que tinha suscitado, no STJ, em
21/5/2003: a nulidade do despacho que admitira o recurso para o Tribunal Constitucional, com o fundamento de que nesse despacho o STJ deveria conhecer das inconstitucionalidades arguidas.
Mas se a decisão sumária era, claramente, - repete-se - o julgamento da constitucionalidade das normas aplicadas no acórdão de 18/12/2002, o teor do despacho de 22/5/2003 - qualquer que ele fosse - não poderia deixar de ser irrelevante para aquela decisão.
3 - Pelo exposto e em conclusão, não se conhece do pedido de esclarecimento de fls 381.
Transitada em julgado, como está, a decisão sumária, vão os autos à conta'.
É sobre a matéria que foi objecto deste despacho que o mesmo recorrente pede agora que recaia acórdão, alegando, em síntese, que;
- A lei não permite que o julgador não aprecie o pedido de esclarecimento, mas apenas que o defira ou indefira.
- O prazo para recurso só começa a correr depois de notificada a decisão proferida sobre o requerimento, não podendo o julgador julgar desde logo expirado aquele prazo como foi decidido.
- O despacho em causa deu uma interpretação restritiva do disposto no artigo
669º nº 1 alínea a) do CPC incompatível com o artigo 20º nº 1 da CRP, tal como foi acolhido pelo Acórdão nº 485/2000.
Pede que se decida não estar transitada a aludida decisão sumária, sendo ainda susceptível de reclamação para a conferência.
Cumpre decidir.
2 - O despacho em causa explicita o decidido e o fundamento em que assenta.
A decisão é a de não conhecimento do pedido formulado a fls. 381 e o fundamento o de, substancialmente, se não estar perante um pedido de esclarecimento, tal como o artigo 669º nº 1 alínea a) do CPC o prevê.
A que objecto se reporta, pois, a decisão de não conhecimento ?
Claramente a uma pretensão que, não se considerando ser de aclaração da decisão sumária, não poderia ser apreciada de acordo com a disciplina própria do pedido previsto na citada norma processual.
O que, em rigor, se deixa perceber no despacho em causa é que o Tribunal estava perante um requerimento anómalo e que só formalmente se apoiava no disposto no artigo 669º nº 1 alínea a) do CPC, não podendo ser conhecido como tal.
Nesta lógica, não tem cabimento a alegação de que a lei não consente uma decisão de não conhecimento do pedido de aclaração, só permitindo o deferimento ou o indeferimento, decisões estas que supõem um pedido substancialmente de esclarecimento, ainda que eventualmente infundado..
Como não tem a de que a decisão sobre esse pedido interrompe o prazo de reclamação do julgado “aclarando”, interrupção que se compreende em função das dúvidas do peticionante, fundadas ou infundadas, quanto ao sentido ou fundamentos daquele julgado, podendo, consequentemente, por em causa uma tomada de posição do interessado, esclarecida e ponderada, face ao mesmo julgado
(acatamento ou impugnação).
O que de todo repugna ao sistema é o “aproveitamento” de um mecanismo processual legítimo, para obter uma dilação no trânsito em julgado da decisão com pedidos que nada têm a ver com a inteligibilidade dessa decisão, mas se acobertam no preceito que prevê aquele mecanismo.
Trata-se de uma tese que a conferência também aqui acolhe e a que o reclamante não opõe qualquer argumento consistente.
Como também não opõe – significativamente - ao que no despacho constitui uma razão essencial do que nele se decidiu: o pedido nada ter a ver com a inteligibilidade da decisão sumária.
E, com efeito, qualquer que fosse o teor do despacho proferido no STJ, posterior ao acórdão recorrido e sobre o qual a decisão sumária exclusivamente se tinha que pronunciar e se pronunciou (nela, não há uma palavra sobre aquele despacho) sempre o reclamante dispunha de todos os elementos necessários para reclamar para conferência daquela decisão ou seja para demonstrar que não era manifestamente infundada a questão de constitucionalidade suscitada – a infracção da garantia de acesso à justiça em que incorreriam as normas do artigo
720º nº 2 do CPC e 37º nº 1 alínea d) do Decreto-Lei nº 387-B/87
Acrescente-se ainda que a interpretação do artigo 669º nº 1 alínea a) do CPC feita no despacho em nada contraria o Acórdão nº 485/2000 que se pronunciou sobre uma interpretação das normas dos artigos 668º nº 1 alínea d), 669º nº 1 alínea a) e 670º nº 3 do CPC, segundo a qual a apresentação de um requerimento de aclaração permite concluir que a parte concorda com a decisão, não podendo, depois, arguir a sua nulidade, situação completamente diversa da que agora nos ocupa.
Em suma, pois, não merece censura o despacho reclamado que não conheceu do pedido formulado no requerimento de fls. 381 e, consequentemente, considerou que a decisão sumária transitara em julgado, ordenando a remessa dos autos à conta.
3 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se confirmar o despacho de fls. 383 e segs.
Lisboa, 19 de Dezembro de 2003
Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida