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Proc. nº 566/2003
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A. foi condenada pelo Tribunal Judicial de Viana do Castelo na pena de um ano de prisão, suspensa por dezoito meses mediante a condição de entregar à instituição “B.” a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) pela prática de um crime de lenocínio previsto e punido no artigo 170º, nº 1, do Código Penal. Dessa decisão recorreu a arguida para o Tribunal da Relação de Guimarães, invocando, entre o mais, que o artigo 170º, nº 1, do Código Penal, é inconstitucional por “limitar e condicionar a consciência pessoal e a liberdade de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho”, violando os artigos
41º, nº 1 e 47º, nº 1, da Constituição. O Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Viana do Castelo, em resposta ao recurso sustentou a não inconstitucionalidade do referido artigo
171º do Código Penal, concluindo o seguinte:
– o crime de lenocínio não pune a própria prática da prostituição, mas sim toda aquela conduta que fomenta, favorece e facilita tal prática, com intenção lucrativa ou profissionalmente;
– a ser assim, não viola o art. 171.º do CP qualquer normativo constitucional, mormente os arts. 41.º e 47.º da CRP invocados pela recorrente;
– ao condenar a arguida em pena de prisão, suspensa na sua execução, mas subordinada ao cumprimento de um dever, o Mmo. Juiz a quo teve em conta as finalidades da punição, atendendo, no presente caso, à protecção da própria pessoa que se dedica à prática da prostituição e que acaba por ser explorada por outrem;
– pelo exposto, entendemos que bem andou o Mmo juiz ao condenar a arguida da prática do crime pelo qual vinha acusada devendo, pois, negar-se provimento ao recurso e manter-se, na íntegra, a decisão recorrida.
O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Guimarães juntou parecer nos termos do qual o recurso não merecia provimento, afirmando, no que concerne
à questão de constitucionalidade suscitada, que “o que está em causa não é a liberdade de escolha da profissão, a não ser que seja profissão viver à custa de outras pessoas, nomeadamente explorando a sua prostituição ...”. O Tribunal da Relação de Guimarães rejeitou o recurso, expressando-se do seguinte modo sobre a questão de constitucionalidade:
Seja qual for o bem jurídico tutelado na norma em apreço, a conclusão que a recorrente formula está sempre errada. Pela simples razão de que, em qualquer circunstância, é censurável - ética e juridicamente censurável - o aproveitamento intencionalmente lucrativo de uma determinada condição de outra pessoa e em especial da prostituição. Não se trata de um mero exercício comercial, com sinalagmatismo de prestações: trata-se, isso sim, de uma actividade que viola valores da comunidade e concepções ético-sociais dominantes e que assim se manterá, seja qual for a solução que se vier a tomar sobre o problema social em causa, enquanto tal actividade fomentar, favorecer ou facilitar a degradação pessoal de um indivíduo. Para a recorrente, ao menos em matéria sexual, não existe uma teoria constitucional dos direitos fundamentais: a sua regra é a do “vale tudo”! Ora, ao contrário do que pensa, os direitos fundamentais não têm autonomia individual, em que é o indivíduo que decide ou não do seu uso, sem qualquer controle do seu valor ou desvalor pelo Direito (Teorias Liberais), mas antes são opções constitucionais de valor (Teorias dos Valores), traduzidas em princípios objectivos que elegem sentimentos comunitariamente estabelecidos e onde a liberdade individual apenas se realiza pela conformação com tais sentimentos, controlada pelo Direito. Como diz o Sr. Procurador da República-Adjunto, “o preceito não pune a prostituição!. Esta é ainda uma profissão livre! O que se pune é o fomentar, o favorecer ou o facilitar o exercício da prostituição, profissionalmente ou com intencão lucrativa”. Ou como realça o Sr. Procurador-Geral Adjunto, para quem não é para condutas como a da arguida que a Constituição dá liberdade de escolha de profissão: “...o que está em causa não é a liberdade de escolha da profissão, a não ser que seja profissão viver à custa de outras pessoas, nomeadamente explorando a sua prostituição”. Aliás, a seguir-se a concepção de liberdade de escolha que a recorrente propõe, a Mafia, em geral, ou, em especial, as actuais “Mafias de Leste”, que vivem da exploração de parte dos salários de imigrantes, devem ser consideradas como altruístas “Centros de Emprego”! A elaboração da recorrente é mais que bizarra, como lhe chama o Sr. PGA, é reveladora do enorme desvalor (a “consciência pessoal” que a arguida invoca) que ela tem pelas pessoas que lhe proporcionavam o ganho desonesto e que, afinal, nem terá sido devidamente ponderado para a medida da pena e para a ponderação do benefício da suspensão da sua execução.
É que, e com isto se aborda a segunda questão levantada no recurso, a condição imposta emerge exactamente de um benefício que o Mmo Juiz resolveu dar à arguida e cuja fundamentação não carece de ser expressa. Assim sendo, e considerando também a natureza do crime em apreço e os proventos presumidos, é natural que se lhe impusesse um relativo ónus. Afinal, considerando, pelo menos, duas profissionais, a uma média de cinco relações sexuais por dia, em escassos seis dias a arguida “ganhava” os € 1.500,00!
2. Em face do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, veio a arguida recorrer para o Tribunal Constitucional ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, sustentando a inconstitucionalidade da norma contida no nº 1 do artigo 170º do Código aprovado pelo Decreto-Lei nº 400/82, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei nº 48/95 e pela Lei nº 65/98, de 2 de Setembro. Tendo sido determinado por despacho da Relatora que alegasse, veio a recorrente apresentar as suas alegações sustentando o seguinte:
Entramos, pois, no campo da moralidade e do pudor. Modestamente entendemos (e nisso não estamos sós, veja-se a propósito as considerações do Prof. Figueiredo Dias, citado no comentário conimbricense ao art.º 170° do Código Penal) que a incriminação que é feita pelo n° 1 do art.º
170° do C.P. pretende defender sentimentalismos transpessoais, não tendo, como deveria ter, em primeira linha, os bens de natureza pessoal. O Direito criminal não deveria ter por fim o defender valores de ordem moral, mas sim, e tratando-se de um “crime contra as pessoas” defender interesses eminentemente pessoais, tais como, a liberdade e autodeterminação sexual. A actual redacção do n° 1 do art.º 170° do C.P. ao invés de diminuir o leque de situações incriminadas que têm um forte pendor moral, veio aumentá-las, pois retirou dos elementos a exploração de situações de abandono ou de necessidade económica. Há até quem defenda que este crime - lenocínio - tal como está previsto é um crime sem vítima, pois não protege ninguém em concreto; defendendo, antes, interesses de cariz sentimentalista. A previsão legal, ao criminalizar, como o faz, a conduta de quem profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição ou actos sexuais de relevo, parece estar a tolher direitos de outras pessoas. Note-se que, não é punível criminalmente quem fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição ou actos sexuais de relevo. Além de ser controversa a criminalização de condutas, entre adultos, de práticas de natureza sexual que ofendam apenas a moralidade e pudor público, parece-nos que tal criminalização fere direitos constitucionalmente garantidos, como o fere a inclusão da referência a “profissionalmente ou com intenção lucrativa”. Temos por assente que nem a prática da prostituição, nem a prática de actos sexuais de relevo, com adultos, nem o seu favorecimento, fomento ou facilitação
é criminalmente punível. Porque o será que tais práticas serão apenas puníveis quando são exercidas profissionalmente e com intenção lucrativa ??? Apesar de do ponto de vista da moral social e da defesa dos bens e valores da sociedade até entendermos a relutância da lei em permitir profissionalmente a exploração comercial de actividades ligadas à prostituição, comercialmente a prostituição, como o permitem já várias legislações europeias, a verdade é que do ponto de vista estritamente técnico-jurídico, não concordamos com tal incriminação. Ao criminalizar-se quem exerce uma actividade comercial que tem por base a prostituição ou “actos similares”, quando pode ser exercida pelo próprio ou por terceiro (este sem intuito lucrativo) parece estar a privar-se o cidadão de exercer uma actividade profissional, por imposição de regras e princípio morais. Parece-nos, salvo o devido respeito por outras opiniões que as limitações impostas pela norma do n° 1 do artigo 170° do C.P. pode conflituar e restringir
(nos termos do previsto no n° 2 do artigo 18° da C.R.P) o direito à liberdade de consciência, bem como o direito de livre escolha de profissão.
Concluindo:
1 - A norma contida no n° 1 do artigo 170° do Código Penal pode violar o preceituado nos artigos 41 ° e 47° n° 1, conjugados com o n° 2 do artigo 18° da Constituição da República Portuguesa.
2 - As decisões judiciais que aplicaram a norma do n° 1 do artigo 170° do C.P. devem ser revogadas, por aplicação de norma inconstitucional.
3 - A arguida deverá ser absolvida.
O Ministério Público junto do Tribunal Constitucional contra-alegou propugnando a não inconstitucionalidade da norma sub judicio. Concluiu as suas alegações nos seguintes termos:
1 - O crime de lenocínio do artigo 170° n° 1 do Código Penal visa a protecção de um bem jurídico complexo, que abarca o interesse geral da sociedade relativo à postura sexual e ao ganho honesto, como também a personalidade de quem seja visado pela conduta do agente.
2 - O seu sancionamento penal não representa qualquer violação do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18° n° 2 da Constituição, gozando nesta matéria o legislador ordinário de uma ampla discricionariedade.
3 - Na incriminação do lenocínio não é posto em causa o carácter subsidiário do direito penal, nem se configura como excessiva a restrição imposta a qualquer direito ou expressão de liberdade, com protecção constitucional, do agente da infracção penal.
4 - Não deverá assim, proceder o presente recurso.
Tudo visto, cumpre decidir.
II Fundamentação
4. Está em causa, no presente processo, a eventual inconstitucionalidade da norma contida no artigo 170º, nº 1, do Código Penal, por violação dos artigos
41º e 47º, nº 1, conjugados com o artigo 18º, nº 2, da Constituição. Tem o citado artigo 170º, nº 1, do Código Penal, o seguinte teor:
Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.
5. O ponto de vista que a recorrente apresenta ao Tribunal Constitucional consubstancia-se no seguinte:
– os bens jurídicos protegidos pela norma em crise são, em primeira linha,
“sentimentalismos transpessoais”, valores de ordem moral e não bens pessoais como a liberdade e autodeterminação sexual;
– não sendo a prostituição em si punível, incriminar-se a actividade comercial ou lucrativa que tem por base a prostituição ou “actos similares” corresponde a privar os cidadãos de exercer uma actividade profissional por imposição de regras morais. A pergunta a que importa responder é, portanto, a de saber se fere alguma norma ou princípio constitucional a incriminação das condutas que constituem a factualidade típica do artigo 170º.
6. Não se terá, aqui, de responder à questão geral sobre se o Direito Penal pode, constitucionalmente, tutelar bens meramente morais, questão que não pode ser resolvida sem o esclarecimento prévio do que se entende por bens puramente morais e que não pode deixar de tomar em consideração que há valores e bens tidos como morais e que relevam, inequivocamente, no campo do Direito. A relação entre o Direito e a Moral ou o Ethos tem sido objecto de uma controvérsia muito importante, sendo uma das questões fundamentais da Filosofia do Direito. Com efeito, desde a tradição liberal radicada em Stuart Mill (On liberty, 1859) ou mesmo do pensamento de Kant (Metaphysik der Sitten, 1797), em que o Direito se situa apenas no plano do dano ou do prejuízo dos interesses ou da violação dos deveres (externos) para com os outros até às concepções de uma total fusão entre o Direito e a Moral, em que se reconhece que o Direito tem legitimidade para impor colectivamente valores morais (assim, por exemplo, no pensamento anglo-saxónico, Patrick Devlin, em The Enforcement of Morals, 1965, em nome da manutenção da identidade da sociedade), tem-se mantido acesa a discussão. Apesar das duas posições extremas – a da separação absoluta entre o Direito e a Moral e a da total coincidência entre Direito e Moral – é amplamente aceite que o Direito e a Moral, embora a partir de perspectivas diferentes, fazem parte de uma unidade mais vasta (assim, Arthur Kaufmann, Recht und Sittlichkeit, 1964, p.
9, e, de modo introdutório à questão, J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1990, p. 59 e ss.). Assim, tanto quem procure em valores morais a legitimação do Direito, como quem acentue a distinção entre Moral e Direito, reconhecerá, inevitavelmente, que existem bens e valores que participam das duas ordens normativas [partindo de concepções diversas sobre o Direito, mas coincidindo neste último ponto, cf. Radbruch, Filosofia do Direito (trad. port. de L. Cabral de Moncada), 6ª ed.,
1979; e Kelsen, Teoria Pura do Direito (trad. port. de Baptista Machado), 1979 – este último, apesar da separação radical entre Direito e Moral, não deixa de reconhecer que o Direito pode tutelar valores morais, sem que, por isso, Direito e Moral se confundam; também Hart o reconhece em “Positivism and the Separation of Law and Morals”, Harvard Law Review, 1958; ver ainda, do mesmo autor, Conceito de Direito (trad. port. de A. Ribeiro Mendes), 1986]. Mesmo as posições mais favoráveis à autonomia do Direito não negam que possam existir valores morais tutelados também pelo Direito, segundo a lógica deste e, por força dos seus critérios (sobre toda a problemática da relação entre a Moral e o Direito, veja-se, por exemplo, Arthur Kaufmann, Rechtsphilosophie, 2ª ed., 1997, Kurt Seelmann, Rechtsphilosophie, 1994). Porém, questão prévia a tal problemática e decisiva no presente caso, é a de saber se a norma do artigo 170º, nº 1, do Código Penal apenas protege valores que nada tenham a ver com direitos e bens consagrados constitucionalmente, não susceptíveis de protecção pelo Direito, segundo a Constituição portuguesa. Ora, a resposta a esta última questão é negativa, na medida em que subjacente à norma do artigo 170º, nº 1, está inevitavelmente uma perspectiva fundamentada na História, na Cultura e nas análises sobre a Sociedade segundo a qual as situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída (cf. sobre a prostituição, nas suas várias dimensões, mas caracterizando-o como “fenómeno social total” e, depreende-se, um fenómeno de exclusão, José Martins Bravo da Costa, “O crime de lenocínio. Harmonizar o Direito, compatibilizar a Constituição”, em Revista de Ciência Criminal, ano 12, nº 3, 2002, p. 211 e ss.; do mesmo autor e Lurdes Barata Alves, Prostituição
2001 – O Masculino e o Feminino de Rua, 2001). Tal perspectiva não resulta de preconceitos morais mas do reconhecimento de que uma Ordem Jurídica orientada por valores de Justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de acção, situações e actividades cujo “princípio” seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão
(seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o artigo 1º da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade da pessoa humana. E é nesta linha de orientação que Portugal ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Lei nº 23/80, em D.R., I Série, de 26 de Julho de 1980), bem como, em
1991 a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem (D.R., I Série, de 10 de Outubro de 1991).
É claro que a esta perspectiva preside uma certa ideia cultural e histórica da pessoa e uma certa ideia do valor da sexualidade, bem como o reconhecimento do valor científico das análises empíricas que retratam o “mundo da prostituição”
(e note-se que neste terreno tem sido longo o percurso que conduziu o pensamento sociológico desde a caracterização da prostituição como anormalidade ou doença – assim, C. Lombroso e G. Ferro, La femme criminelle et la prostituée, 1896, e, no caso português, os estudos de Tovar de Lemos, A prostituição. Estudo anthropologico da prostituta portuguesa, 1908, e, sobre as concepções da ciência acerca da prostituição no início do século, cf. Maria Rita Lino Garnel, “A loucura da prostituição”, em Themis, ano III, nº 5, 2002, p. 295 e ss. – até ao reconhecimento de que as prostitutas são vítimas de exploração e produto de uma certa exclusão social). Mas tal horizonte de compreensão dos bens relevantes é sempre associado a ideias de autonomia e liberdade, valores da pessoa que estão directamente em causa nas condutas que favorecem, organizam ou meramente se aproveitam da prostituição. Não se concebe, assim, uma mera protecção de sentimentalismos ou de uma ordem moral convencional particular ou mesmo dominante, que não esteja relacionada, intrinsecamente, com os valores da liberdade e da integridade moral das pessoas que se prostituem, valores esses protegidos pelo Direito enquanto aspectos de uma convivência social orientada por deveres de protecção para com pessoas em estado de carência social. A intervenção do Direito Penal neste domínio tem, portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma perspectiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de Direito. O significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da protecção da liberdade e de uma “autonomia para a dignidade” das pessoas que se prostituem. Não está, consequentemente, em causa qualquer aspecto de liberdade de consciência que seja tutelado pelo artigo 41º, nº 1, da Constituição, pois a liberdade de consciência não integra uma dimensão de liberdade de se aproveitar das carências alheias ou de lucrar com a utilização da sexualidade alheia. Por outro lado, nesta perspectiva, é irrelevante que a prostituição não seja proibida. Na realidade, ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expressão da livre disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocando-o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de uma dimensão especificamente íntima do outro não para os fins dele próprio, mas para fins de terceiros. Aliás, existem outros casos, na Ordem Jurídica portuguesa, em que o autor de uma conduta não é incriminado e são incriminados os terceiros comparticipantes, como acontece, por exemplo, com o auxílio ao suicídio (artigo 135º do Código Penal) ou com a incriminação da divulgação de pornografia infantil [artigo 172º, nº 3, alínea e), do Código Penal], sempre com fundamento na perspectiva de que a autonomia de uma pessoa ou o seu consentimento em determinados actos não justifica, sem mais, o comportamento do que auxilie, instigue ou facilite esse comportamento. É que relativamente ao relacionamento com os outros há deveres de respeito que ultrapassam o mero não interferir com a sua autonomia, há deveres de respeito e de solidariedade que derivam do princípio da dignidade da pessoa humana.
7. Por outro lado, que uma certa “actividade profissional” que tenha por objecto a específica negação deste tipo de valores seja proibida (neste caso, incriminada) não ofende, de modo algum, a Constituição. A liberdade de exercício de profissão ou de actividade económica tem obviamente, como limites e enquadramento, valores e direitos directamente associados à protecção da autonomia e da dignidade de outro ser humano (artigos 471º, nº 1 e 61º, nº 1, da Constituição). Por isso estão particularmente condicionadas, como objecto de trabalho ou de empresa, actividades que possam afectar a vida, a saúde e a integridade moral dos cidadãos [artigo 59º, nº 1, alíneas b) e c) ou nº 2, alínea c), da Constituição]. Não está assim, de todo em causa a violação do artigo 47º, nº 1, da Constituição. Nem também tem relevância impeditiva desta conclusão a aceitação de perspectivas como a que aflora no pronunciamento do Tribunal de Justiça das Comunidades (Sentença de 20 de Novembro de 2001, Processo nº 268/99), segundo a qual a prostituição pode ser encarada como actividade económica na qualidade de trabalho autónomo (cf., em sentido crítico, aliás, Massimo Luciani, “Il lavoro autonomo de la prostituta”, em Quaderni Costituzionali, anno XXII, nº 2, Giugno 2002, p. 398 e ss.). Com efeito, aí apenas se considerou que a permissão de actividade das pessoas que se prostituem nos Estados membros da Comunidade impede uma discriminação quanto à autorização de permanência num Estado da União Europeia, daí não decorrendo qualquer consequência para a licitude das actividades de favorecimento à prostituição.
8. As considerações antecedentes não implicam, obviamente, que haja um dever constitucional de incriminar as condutas previstas no artigo 170º, nº 1, do Código Penal. Corresponde, porém, a citada incriminação a uma opção de política criminal (note-se que tal opção, quanto às suas fronteiras, é passível de discussão no plano de opções de política criminal – veja-se Anabela Rodrigues, Comentário Conimbricense, I, 1999, p. 518 e ss.), justificada, sobretudo, pela normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social, das pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência. O facto de a disposição legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir do qual o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desprotecção social. Tal opção tem o sentido de evitar já o risco de tais situações de exploração, risco considerado elevado e não aceitável, e é justificada pela prevenção dessas situações, concluindo-se pelos estudos empíricos que tal risco é elevado e existe, efectivamente, no nosso país, na medida em que as situações de prostituição estão associadas a carências sociais elevadas (sobre a realidade sociológica da prostituição cf., por exemplo, Almiro Simões Rodrigues,
“Prostituição: – Que conceito? – Que realidade?”, em Infância e Juventude, Revista da Direcção-geral dos Serviços Tutelares de Menores, nº 2, 1984, p. 7 e ss., e José Martins Barra da Costa e Lurdes Barata Alves, Prostituição 2001 ..., ob.cit., supra) não é tal opção inadequada ou desproporcional ao fim de proteger bens jurídicos pessoais relacionados com a autonomia e a liberdade. Ancora-se esta solução legal num ponto de vista que tem ainda amparo num princípio de ofensividade, à luz de um entendimento compatível com o Estado de Direito democrático, nos termos do qual se verificaria uma opção de política criminal baseada numa certa percepção do dano ou do perigo de certo dano associada à violação de deveres para com outrem – deveres de não aproveitamento e exploração económica de pessoas em estado de carência social [cf., com interesse para a questão da construção do conceito de dano nesta área e independentemente da posição sobre a pornografia aí defendida, matéria que não tem relevância no contexto do presente acórdão, Catherine Mackinnen, Pornography: On Morality in and Politics, em Toward a Feminist Theory of State, 1989, que defende a incriminação da pornografia em face da sua ofensividade contra a imagem da mulher e a construção da respectiva identidade como pessoa. Também sobre tal lógica de construção do dano, cf. Sandra E. Marshall, “Feminism, Pornography and the Civil Law”, em Recht und Moral (org. Heike Jung e outros), 1991, p. 383 e ss., defendendo a autora que, na pornografia, o dano consistiria na negação da humanidade da mulher, sendo relevante para o tema do presente Acórdão a perspectiva de que “a perda da autonomia não é um assunto meramente subjectivo
... a autonomia é negada mesmo que não se reconheça. Aqui pode ser traçado um paralelo com a escravatura ... A própria condição da escravatura requer que o escravo não se veja a si próprio como alguém que possui ou a quem falta autonomia ... Isto pode ser formulado dizendo que uma tal pessoa não se pode ver a si própria completamente. Como item da propriedade não possui um em si mesma”]. O entendimento subjacente à lei penal radica, em suma, na protecção por meios penais contra a necessidade de utilizar a sexualidade como modo de subsistência, protecção directamente fundada no princípio da dignidade da pessoa humana. Questão diversa que não está suscitada nos presentes autos é a que se relaciona com a possibilidade processual de contraprova do perigo que serve de fundamento à incriminação em casos como o presente ou ainda, naturalmente, com a prova associada à aplicação dos critérios de censura de culpa do agente e da atenuação ou eventual exclusão de culpabilidade, em face das circunstâncias concretas do caso.
9. Em face do exposto, não se pode considerar que estejam violados pela norma em crise quaisquer normas ou princípios constitucionais.
III Decisão
10. Ante o exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional, por violação dos artigos 41º, nº 1, 47º, nº 1 e 18º, nº 2, da Constituição, a norma constante do artigo 170º, nº 1, do Código Penal, negando, consequentemente, provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 10 de Março de 2004
Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos