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Proc. n.º 126/04
2ª Secção Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, neste Tribunal Constitucional:
A – O relatório
1 - A., com os demais sinais dos autos, reclama, nos termos do n.º 4 do art. 76º, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão
(doravante LTC), do despacho do Senhor Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, de 5 de Janeiro de 2004, que não lhe admitiu o recurso interposto nos autos para este Tribunal Constitucional.
2 - O despacho reclamado é do seguinte teor:
«A. pretendeu interpor recurso para o Tribunal Constitucional da minha decisão de fls. 56, apresentando, para o efeito, um requerimento sem atender às especificações exigidas pelo art. 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional. Em cumprimento do disposto no n.º 5 daquele preceito, a requerente foi notificada para, em 10 dias, observar o disposto nos n.os 1 a 4 do mesmo artigo
(despacho exarado a fls. 66 e notificação cotada a fls. 68). A requerente apresentou novo requerimento de interposição de recurso, juntando alegações. Mesmo aproveitando tal documento para cumprimento do artigo 75º-A citado, verifica-se que a requerente se limita a esclarecer que interpõe recurso ao abrigo do 'art. 70º, n.º 1, al. b), da Lei do Tribunal Constitucional'. Ora, nos termos do n.º 2 do art. 75º-A, se o recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º, o requerimento deve indicar a peça processual em que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade. Recorda-se que o recurso, ao abrigo daquela alínea, tem como objecto decisão cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. A recorrente não satisfaz aquela exigência do n.º 2 do art. 75º-A. Nem o podia fazer, pois em ponto algum suscitou a inconstitucionalidade que agora pretende ver apreciada. Não o fez mesmo quando se lhe deu oportunidade para se pronunciar sobre o despacho de sustentação do Senhor Juiz, o que se aceitou, como se vê do despacho de que se pretende recorrer, por, naquele despacho, se terem usado novos argumentos (cfr. fls. 56) a que, no essencial, aderi na minha decisão. Nestes termos e em obediência ao disposto no art. 76º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, não recebo o recurso.».
3 - Como fundamentos de impugnação do despacho reclamado, a reclamante alega, em resumo, que “a recorrente só foi confrontada com a, no seu entender inconstitucionalidade, no último despacho proferido pelo [...] Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra”, pelo que em nenhum outro momento, podia a ora reclamante alertar para a inconstitucionalidade que a mesma aduziu em recurso para o Tribunal Constitucional, senão em sede deste último recurso”, para “além de que resulta claramente do requerimento de interposição do recurso, que se recorre do despacho que decidiu sobre a reclamação, pelo que aquele requisito ainda se pode considerar cumprido - veja a primeira página do recurso, in fine”.
4 - A ora reclamante requerera ao Tribunal da Relação de Coimbra que, ao abrigo do art. 73º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10 (doravante Regime Geral das Contra-ordenações - RGC), conhecesse de um recurso, que logo motivou, interposto de um despacho do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda que, por sua vez, julgou improcedente um recurso judicial intentado contra uma decisão administrativa que impôs à reclamante uma coima de 180 Euros.
O recurso não foi recebido com o fundamento de o valor da coima o não permitir, nos termos do art. 73º, n.º 1, do referido RGC.
Inconformado com este despacho, a ora reclamante reclamou para o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, sob a invocação do disposto no art. 405º do Código de Processo Penal.
Apresentados a este órgão jurisdicional, ordenou ele que os autos fossem devolvidos ao tribunal a quo “a fim de ser proferido despacho de sustentação ou reparação da decisão tomada”, devendo, na primeira hipótese, “ser estabelecido o contraditório nos termos do art. 688º, n.º 4, do C. P. Civil, aplicável ex vi do art. 4º do C. P. Penal”.
O senhor juiz manteve o despacho reclamado com base na seguinte fundamentação:
«[...]Apreciando e decidindo Dispõe o artº. 73º, n.º 2 do Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas que
'... poderá a. relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público aceitar o recurso da. sentença. ...' In casu, o recurso foi decidido for despacho. O regime excepcional previsto no citado preceito legal apenas faz referência ao recurso da sentença, sendo que no n.º 1 e n.º 3 do citado preceito legal se menciona a sentença e aquele despacho. Logo, temos que ao não se referir ao despacho, quis o legislador excluí-lo da previsão da norma. Face ao exposto, mantenho o despacho que não admitiu o recurso por inadmissibilidade legal. Notifique.».
Notificado do despacho de sustentação, nos termos do n.º 4 do art.
688º do Cód. Proc. Civil, a ora reclamante respondeu sustentando, em síntese, que a possibilidade de recurso para a Relação, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 73º do RGC, tanto era aplicável às decisões condenatórias constantes de despacho como de sentença, por força dos princípios gerais de direito e da regra geral do art. 399º do Cód. Proc. Penal.
5 - O Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra indeferiu a reclamação deduzida contra a não admissão do recurso para a Relação por despacho do seguinte teor:
«[...] No processo de contra-ordenação n.º 963/03 do 1°. Juízo da Guarda, a arguida A. requereu a este Tribunal da Relação que, ao abrigo do disposto no artigo 73º, nº.2, do Dec-Lei 433/82, de 27-10, conhecesse de um recurso, que logo motivou, interposto de um despacho que, por sua vez, julgou improcedente um recurso de uma decisão administrativa que impôs àquela arguida uma coima de 180 euros. O recurso não foi recebido com fundamento de o valor da coima o não permitir nos termos do art. 73º, n.º 1, do Dec-Lei citado. Daí a presente reclamação da arguida alegando que o tribunal se devia ter limitado a aferir do cumprimento dos requisitos formais do recurso, extravasando os seus poderes ao proferir o despacho reclamado. O despacho foi sustentado, defendendo agora o Sr. Juiz que o art. 73º, n°. 2, citado só se aplica a sentenças e que o recurso da decisão administrativa foi decidido por despacho. O Ministério Público não respondeu. A reclamante pronunciou-se sobre os novos argumentos invocados pelo Senhor Juiz. Cumpre decidir: Confrontando o corpo do n.º 1 com o n.º 2 do art. 73º citado, dúvidas não ficam que a possibilidade de recurso ao abrigo desse n.º 2 se restringe ao recurso da sentença, como se refere no despacho de sustentação.
É aceitável essa restrição de garantismo, pois o recurso só é decidido por despacho quando, nomeadamente, o arguido se não oponha - art. 64º, n.º 2. Ou dito de outra maneira, ao aceitar a decisão por despacho, o arguido está a prescindir do recurso extraordinário previsto no n.º 2 do art. 73º. No caso dos autos, a arguida dispensou a realização da audiência, aceitando a decisão por despacho. Não pode usar da faculdade de interpor um recurso extraordinário de uma decisão quando esse recurso, como excepcional que é, não está expressamente previsto na Lei. Não havendo dúvidas de que a decisão em causa não pode ser objecto do recurso previsto no art. 73º, n.º 2, bem andou o Sr. Juiz ao não o receber sem necessidade de remessa do processo à Relação. Nestes termos, indefiro a reclamação.».
6 - Notificada do indeferimento da reclamação apresentada para o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, a ora reclamante apresentou um requerimento no qual disse o seguinte:
«[...] vem por este meio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos dos arts. 280º CRP e art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, em sede de processo de fiscalização concreta de constitucionalidade. Mais requer que se atribua a este recurso, o respectivo efeito suspensivo.».
7 - Por despacho do Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, de
9 de Dezembro de 2003, a ora reclamante foi convidada a, no prazo de 10 dias,
“dar cumprimento ao disposto no art. 75º-A, n.os 1 a 4, da Lei 28/82, de 15/11
(por lapso escreveu-se 10) - Lei do Tribunal Constitucional (n.º 5 daquele preceito)”.
8 - Dando cumprimento a tal despacho, a ora reclamante veio apresentar um novo requerimento de interposição de “recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos dos arts. 280/1, b), CRP e art. 70/1, b), da Lei do Tribunal Constitucional, requerendo a declaração de inconstitucionalidade material do art. 73º, nos seus números 1 e 2 e do art. 64º, número 2 da Lei Geral das Contraordenações, por violação dos artigos 1º, art. 2º, art. 20º, n.º
1, art. 32º, números 1, 6 e 10 e 268º, número 4, todos da Constituição da República Portuguesa, art. 399º do Código de Processo Penal e art. 41º, número 1 da Lei Geral das Contra-ordenações quando interpretado no sentido de [...] ”, desenvolvendo logo, nele, a respectiva motivação.
9- O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal Constitucional pronunciou-se, no seu parecer, no sentido do indeferimento da reclamação.
B - A fundamentação
10 - Constitui requisito do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão
(doravante designada por LTC), em cuja categoria se insere o interposto pelo ora reclamante, e como decorre do mesmo preceito quando fala da aplicação de norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, mas que encontra igualmente tradução no n.º 2 do art.º 75º-A da LTC, que a questão de inconstitucionalidade da norma efectivamente aplicada como ratio decidendi da decisão recorrida tenha sido suscitada durante o processo. O sentido deste conceito tem sido esclarecido, por várias vezes, por este Tribunal Constitucional. Assim, por exemplo, no Acórdão n.º 352/94, publicado no Diário da República II Série, de 6 de Setembro de 1994, disse-se que esse requisito deve ser entendido “não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)”, mas
“num sentido funcional”, de tal modo que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão, “antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita”. Por seu lado, afirma-se, igualmente, no Acórdão n.º 560/94, publicado no Diário da República II Série, de 10 de Janeiro de 1995, que «a exigência de um cabal cumprimento do ónus de suscitação atempada - e processualmente adequada - da questão de constitucionalidade não é [...] “uma mera questão de forma secundária”. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame da questão (e não a um primeiro julgamento de tal questão)». Neste domínio há que acentuar que, nos processos de fiscalização concreta, a intervenção do Tribunal Constitucional se limita ao reexame ou reapreciação da questão de (in)constitucionalidade que o tribunal a quo apreciou ou devesse ter apreciado. Ainda na mesma linha de pensamento podem ver-se, entre outros, o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República II Série, de 20 de Junho de 1995, e, aceitando os termos dos arestos acabados de citar, o Acórdão n.º
192/00, publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de 2000 - sobre o sentido de um tal requisito, cfr. José Manuel Cardoso da Costa, « A jurisdição constitucional em Portugal», separata dos Estudos em Homenagem ao Prof. Afonso Queiró, 2ª edição, Coimbra, 1992, pp. 51).
É certo que tal doutrina sofre restrições, como se salientou naquele Acórdão n.º
354/94, mas isso apenas acontece em situações excepcionais ou anómalas, nas quais o interessado não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes proferida ou não era exigível que o fizesse, designadamente por o tribunal a quo ter efectuado uma aplicação de todo insólita e imprevisível. Usando os termos do recente Acórdão n.º 192/00, dir-se-á, ainda, que “quem pretenda recorrer para o Tribunal Constitucional com fundamento na aplicação de uma norma que reputa inconstitucional tem, porém, a oportunidade de suscitar a questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferido o acórdão da conferência de que recorre...”. E é claro que não poderá deixar de entender-se que o recorrente tem essa oportunidade quando a apreensão do sentido com que a norma é aplicada numa decisão posteriormente proferida poderá/deverá ser perscrutado no(s) articulado(s) processual(ais) funcionalmente previsto(s) para discretear juridicamente sobre as questões cuja resolução essa decisão tem de ditar, por antecedentemente colocadas, e em que aquele sentido, cuja constitucionalidade se poderá questionar, se apresenta como sendo um dos plausíveis a ser aplicados pelo juiz. Ao encararem ou equacionarem na defesa das suas posições a aplicação das normas, as partes não estão dispensadas de entrar em linha de conta com o facto de estas poderem ser entendidas segundo sentidos divergentes e de os considerar na defesa das suas posições, aí prevenindo a possibilidade da (in)validade da norma em face da lei fundamental. Digamos que as partes têm um dever de prudência técnica na antevisão do direito plausível de ser aplicado e, nessa perspectiva, quanto à sua conformidade constitucional. O dever de suscitação da inconstitucionalidade durante o processo e pela forma adequada enquadra-se dentro destes parâmetros acabados de definir.
11 - Ora, no caso sub judicio, é por demais patente que esse requisito do recurso não se verifica. Na verdade, a recorrente colocou a questão de constitucionalidade da norma inferida, por via interpretativa, dos artigos
64º, n.º 2, e 73º, n.os 1 e 2, do RGC, segundo a qual a possibilidade de recurso para a Relação, fora das hipóteses desenhadas no n.º 1 do primeiro artigo, prevista no n.º 2 do mesmo artigo (ou seja “quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência”), apenas cabe de decisões sancionatórias constantes de sentença e não também de decisão punitiva constante de despacho, tão só no requerimento complementar de interposição de recurso apresentado em resposta ao convite que lhe foi efectuado pelo Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra. Todavia, a recorrente foi confrontada com um tal entendimento do art. 73º, n.º 2, do RGC logo no despacho de sustentação do senhor juiz do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, proferido nos termos do n.º 3 do art. 688º do CPC, aplicável ex vi do art. 4º do CPP, e foi notificada, nos termos do n.º 4 deste mesmo artigo, para lhe responder. Não obstante a recorrente ter exercido o contraditório relativamente a tal despacho, respondendo-lhe, o certo é que ela apenas o impugnou no plano do direito ordinário, sustentando ser ele passível de um outro sentido, nos termos do qual as decisões constantes de despacho também se incluiriam na hipótese do n.º 2 do art. 73º do RGC. A decisão proferida pelo Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, de indeferimento da reclamação apresentada pela recorrente nos termos do art. 405º do CPP, fundamenta-se exactamente nas mesmas razões que foram expendidas no despacho de não admissão do recurso para a Relação da decisão de não provimento do recurso do acto administrativo de aplicação da coima, constante de despacho judicial, e do referido despacho de sustentação da anterior decisão de não admissão do recurso, sendo o art. 64º, n.º 2, cuja constitucionalidade também se impugna, não invocado em qualquer destes dois despachos, chamado à colação por aquele despacho de indeferimento da reclamação apenas como razão de ser legislativa do regime estabelecido no n.º 2 do art. 73º do RGC.
Sendo assim, é por demais evidente que a recorrente teve oportunidade processual de questionar a validade constitucional do art. 73º, n.º
2, mesmo que conjugado com o art. 64º, n.º 2, ambos do RGC. No mínimo, a recorrente foi colocada perante a hipótese da sua aplicação por parte do despacho do qual agora pretende recorrer para este Tribunal Constitucional na notificação que lhe foi feita do despacho do senhor juíz da 1ª instância, de sustentação do despacho de não admissão do recurso, e teve a oportunidade de suscitar a inconstitucionalidade da respectiva norma na resposta que apresentou posteriormente sobre essa mesma matéria. É, pois, perfeitamente de exigir da reclamante um prévio juízo de prognose relativo à aplicação da norma cuja validade constitucional agora pretende questionar, mesmo sem grandes exigências quanto à amplitude do seu dever de prudência técnico-jurídica. Aliás, note-se que a reclamante acaba por problematizar a questão de constitucionalidade apenas no referido requerimento complementar de interposição de recurso, nem sequer o tendo feito no requerimento inicial.
Temos, portanto, de concluir que bem andou o despacho reclamado ao não admitir o recurso para este Tribunal Constitucional do referido despacho de indeferimento da reclamação apresentada nos termos do art. 405º do CPP.
C – A decisão
12 - Destarte, atento tudo o exposto, este Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação.
Custas pela reclamante com taxa de justiça que se fixa em 6 UC.
Lisboa, 18 de Fevereiro de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos