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Proc. n.º 224/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. instaurou, em Janeiro de 1997, acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra B. e mulher, C., e D., pedindo que os primeiros réus sejam condenados a pagar à autora a indemnização de 5.510 contos, acrescida de juros desde a citação, devida pelo não cumprimento, pelos primeiros réus, do contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma do imóvel identificado nos autos, celebrado em Janeiro de 1994, e bem assim que se declare que a autora goza do direito de retenção sobre a mesma fracção autónoma.
Julgada parcialmente procedente a acção em 1ª Instância, foi interposto recurso de apelação, quer pela autora A., quer pelos réus B. e C.
(tendo o recurso desta última ficado deserto).
O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 13 de Junho de 2002
(fls. 351 a 366), negou provimento à apelação do réu B. e concedeu provimento à apelação da autora A., condenando os réus B. e mulher, C., a pagar à autora a quantia de € 15.064, correspondente ao crédito resultante do não cumprimento por parte destes do contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma em causa e declarando que, para efeitos do artigo 869º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, “tal direito goza de garantia real, correspondente ao direito de retenção”, revogando, nesta parte, a decisão recorrida.
2. A D. e B. interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
Nas alegações que então produziu (fls. 391 a 398), a D. formulou, entre outras, as seguintes conclusões:
“[...]
6ª – O regime jurídico do direito de retenção concedido ao promitente-comprador, fixado através do D.L. 236/80, de 18/07, e D.L. 379/86, de
11/11, e constante das normas contidas no n.º 2 do artigo 442º e alínea f) [do n.º 1] do artigo 755º, ambas do C. Civil, frustra a legítima confiança que o credor hipotecário tem em que o Estado garanta os seus direitos fundamentais;
7ª – A hipoteca foi constituída e registada em 1993 e o contrato-promessa foi celebrado em 1994;
8ª – No caso dos autos a recorrente vê-se confrontada com um direito real de garantia, não sujeito a registo, com o qual não contava;
9ª – Tal direito de retenção sobrepõe-se à hipoteca constituída e registada cerca de um ano antes;
10ª – É uma injustiça para o credor hipotecário sofrer a ofensa dos seus interesses e direitos patrimoniais legitimamente constituídos e registados anteriormente à constituição e invocação do direito de retenção;
11ª – A recorrente credora hipotecária vê frustrada a confiança no comércio jurídico imobiliário;
12ª – No acórdão recorrido encontra-se manifestamente violado o princípio da confiança do comércio jurídico, princípio constitucional contido no artigo 2º da C.R.P.;
13ª – Os ónus ocultos não registados afectam a segurança no comércio jurídico;
14ª – Os referidos diplomas e as normas em apreço, o n.º 2 do artigo 442º e alínea f) [do n.º 1] do artigo 755º, ambos do C. Civil, interpretadas e aplicadas no sentido de que o direito de retenção tem preferência sobre a hipoteca registada anteriormente, são inconstitucionais por violação do princípio da confiança do comércio jurídico ínsito no artigo 2º da C.R.P.;
15ª – Os D.L. n.º 236/80, de 18/07, e n.º 379/86, de 11 de Novembro, são inconstitucionais por regularem matéria respeitante a direitos e garantias patrimoniais da competência exclusiva da Assembleia da República;
16ª – Para que o Governo pudesse legislar sobre tal matéria necessitava de autorização do ente legislativo competente;
17ª – Não foi concedida tal autorização;
18ª – Ao fazer inovações sobre tal matéria sem autorização houve a violação da esfera de competência de outro órgão;
19ª – Verifica-se assim haver inconstitucionalidade orgânica;
20ª – O n.º 2 do artigo 442º e a alínea f) do n.º 1 do artigo 755º, ambos do C. Civil, são inconstitucionais;
21ª – Sendo inconstitucionais tais normas, bem como os diplomas de onde emanam, não podem as mesmas ser invocadas e aplicadas em qualquer procedimento judicial;
[...]
25ª – Ao julgar-se como se julgou, encontram-se violadas as normas de ordem substantiva e processual, nomeadamente os artigos 442º, n.º 2, e al. f) do n.º 1 do artigo 755º do CC, artigo 661º, n.º 1, do CPC e ainda os artigos 2º e 20º da CRP;
26ª – Pelo que a referida decisão é ilegal;
Nestes termos, deve [...] ser declarada a inconstitucionalidade material do n.º 2 do artigo 442º e alínea f) [do n.º 1] do artigo 755º, todos do C. Civil, por na sua interpretação e aplicação nos presentes autos, ter sido violado o n.º 1 do artigo 20º da C.R.P. e artigo 2º da C.R.P. e, ainda, declarada a inconstitucionalidade orgânica do D.L. 236/80, de 18/07, e D.L.
379/86, de 11/11, devendo em consequência ser revogado o douto acórdão recorrido, que confere à A. o direito de retenção, que ofende o seu direito de hipoteca, registado a seu favor anteriormente, por tais normas legais e os diplomas de onde emanam enfermarem de inconstitucionalidade [...].”
Por sua vez, B. concluiu assim as suas alegações (fls. 402 a 407), para o que aqui releva:
“[...]
7 – A disciplina dos artigos 442º n.º 2 e f) do n.º 1 do 755º do C.C., com a redacção introduzida pelos D. Lei 236/80 e 379/86 frustra a confiança no comércio jurídico previsto no art.º 2º da CRP, pelo que são estas disposições materialmente inconstitucionais.
8 – O Governo carecia de autorização legislativa da Assembleia da República para legislar em tais matérias, pelo que se verifica igualmente a inconstitucionalidade orgânica de tais diplomas.
[...]
10 – Foram violados por erro de interpretação os artigos 258º, 262º, 220º,
334º, 442º e 755 do CC, 272º, 273º, 661º e 713º do CPC e ainda os artigos 2º e
20º da CRP;
[...].”
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 30 de Janeiro de 2003
(fls. 437 a 452), negou provimento às revistas, confirmando o anteriormente decidido pela Relação.
Sobre as questões de inconstitucionalidade suscitadas pelos recorrentes, lê-se no texto desse acórdão:
“[...]
Os DL 236/80 de 18-7 e 379/86 de 11-11 têm sido criticados na doutrina por conferirem ao promitente-comprador direito de retenção [...]. Não se tem posto em dúvida, que saibamos, a sua conformidade ao diploma fundamental (CR). Não se invoque nomeadamente o princípio da confiança, ínsito na ideia do Estado de Direito Democrático (art.º 2º da CR). O art.º 20º, também citado, não vem ao caso. Como escreve Galvão Teles [...], os credores não podem queixar-se pelo facto de o direito de retenção não estar sujeito a registo. Em primeiro lugar, porque o registo não é aplicável a todas as coisas. Inclusive a todos os imóveis (pense-se nos privilégios creditórios). Depois, e esta é uma ideia relevante: o direito de retenção envolve por si publicidade de facto. Os credores hipotecários só têm que averiguar quem na realidade habita ou tem a posse do prédio... Não se diga que estão em causa direitos fundamentais, que não é o caso. Nem se pode falar de direitos análogos a direitos, liberdades e garantias. Está em causa apenas a organização económica dos bens. Não se vê que a concessão do direito de retenção ao promitente-comprador viole qualquer desses direitos dos credores hipotecários. Tão pouco os DL em apreço fazem parte da competência exclusiva da Assembleia da República – art.º 164º e 165º da CR (na época art.º 168º-1-b). Não necessitava o Governo de autorização legislativa para legislar sobre esta matéria. Este Tribunal pronunciou-se noutras ocasiões pela conformidade à CR dos DL
236/80 [...] e 379/86 [...]. Improcedendo as razões dos recorrentes, negam-se as revistas.
[...].”
3. É deste acórdão que a D. vem recorrer para o Tribunal Constitucional
(requerimento de fls. 462 e seguinte), ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º
1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo que se aprecie:
– a inconstitucionalidade material “dos diplomas legais D.L. 236/80, de 18/07, e D.L. 379/86, de 11/11, que concedem o direito de retenção ao promitente-comprador de prédio urbano ou sua fracção autónoma, por tal direito ofender os interesses patrimoniais legitimamente constituídos, no caso dos autos, de hipoteca constituída e registada em data anterior à invocação do direito de retenção”;
– a inconstitucionalidade das normas contidas no n.º 2 do artigo
442º e na alínea f) [do n.º 1] do artigo 755º, ambas do Código Civil, “por violação do artigo 2º da Constituição da República Portuguesa, ofendendo o princípio geral de Direito aí consagrado, a confiança do comércio jurídico”;
– a inconstitucionalidade orgânica “dos diplomas acima referidos que introduziram alterações ao artigo 442º do Código Civil, tendo sido a alínea f)
[do n.º 1] do artigo 755º do mesmo diploma legal introduzida pelo D.L. n.º
379/86, de 11/11, que criaram um direito na esfera jurídico-patrimonial do promitente comprador”, “com ofensa do princípio constitucionalmente consagrado da reserva de lei”, por força do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 168º da C.R.P. [actual artigo 165º, n.º 1, alínea b)].
O recurso foi admitido por despacho de fls. 467.
4. Nas alegações que apresentou neste Tribunal (fls. 469 a 479), a recorrente formulou as seguintes conclusões:
“I - As normas contidas no n.º 2 do artigo 442º do Código Civil, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho, e a alínea f) do n.º 1 do artigo 755º do mesmo diploma legal, ao abrigo das quais foi concedido o direito de retenção à Recorrida promitente-compradora, quando invocadas perante o credor hipotecário, que tem a seu favor um direito de hipoteca, devidamente registado em data anterior à constituição daquele direito, criou uma situação injustificada e de privilégio, com o consequente prejuízo da ora Recorrente credora hipotecária, são materialmente inconstitucionais por violarem os princípios da proporcionalidade, protecção da confiança e segurança do comércio jurídico imobiliário, ínsitos no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa; II - Os Decretos-Lei n.ºs 236/80, de 18 de Julho, e 379/86, de 11 de Novembro, criados por acto legislativo do Governo, sem que tivesse sido precedido da competente autorização legislativa da Assembleia da República, por ser da exclusiva competência desta legislar sobre tal matéria, pois que estava em causa a criação de direitos análogos aos direitos de propriedade, são inconstitucionais (inconstitucionalidade orgânica), por violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 165º da CRP; III - Face à inconstitucionalidade de tais normas, que deveria ter sido decretada no acórdão recorrido, não podia declarar-se a preterição do direito de hipoteca de que goza a ora Recorrente, em favor da Recorrida; IV - Donde resulta que, estando as aludidas normas feridas de inconstitucionalidade por violação do princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º da CRP, não podiam as mesmas ter sido invocadas e aplicadas no acórdão recorrido; V - Encontram-se, pois, violados os preceitos constitucionais contidos nos artigos 2º, 20º e 165º, n.º 1, alínea b), da CRP.”
Também a recorrida alegou (fls. 490 a 492 v.º), afastando as acusações de inconstitucionalidade invocadas pela recorrente.
Cumpre agora apreciar e decidir.
II
5. Tendo em conta a delimitação do objecto do recurso constante das alegações apresentadas perante este Tribunal, a recorrente D. pretende que o Tribunal Constitucional aprecie as seguintes questões de inconstitucionalidade:
A) a inconstitucionalidade dos Decretos-Leis n.ºs 236/80, de 18 de Julho, e 379/86, de 11 de Novembro – diplomas que introduziram alterações ao regime do contrato-promessa constante do Código Civil –, por disporem, sem autorização da Assembleia da República, sobre direitos e garantias patrimoniais, em violação do artigo 168º, n.º 1, alínea b), da Constituição (actual artigo
165º, n.º 1, alínea b));
B) a inconstitucionalidade dos artigos 442º, n.º 2, e 755º, n.º 1, alínea f), ambos do Código Civil, se interpretados como concedendo ao promitente-comprador de imóvel ou fracção autónoma, com tradição da coisa objecto do contrato, o direito de retenção, com preterição do titular de hipoteca constituída e registada em data anterior à invocação do direito de retenção, por violação dos princípios da proporcionalidade e da protecção da confiança e segurança do comércio jurídico imobiliário, ínsitos no artigo 2º da Constituição.
Tendo o recurso sido interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o julgamento deste Tribunal só pode obviamente incidir sobre normas que tenham sido aplicadas na decisão recorrida e cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada pelos recorrentes, de modo processualmente adequado, perante o tribunal a quo.
6. Os preceitos do Código Civil cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada têm o seguinte teor, na versão em vigor ao tempo da decisão proferida nos autos, e cuja redacção resulta das alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.ºs 236/80, de 18 de Julho, e 379/86, de 11 de Novembro:
Artigo 442º
(Sinal)
[..]
2. Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou, ou, se houver tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o seu valor, ou o do direito a transmitir ou constituir sobre ela, determinado objectivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago.
[...]
Artigo 755º
(Casos especiais)
1. Gozam ainda do direito de retenção:
[...] f) O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º.
[...]
7. O Tribunal Constitucional teve já oportunidade de se pronunciar sobre as questões suscitadas nos presentes autos. Fê-lo no Acórdão n.º 594/03, de 3 de Dezembro, ainda inédito, em que era recorrente a ora recorrente, tendo concluído no sentido da não inconstitucionalidade das normas impugnadas.
É a seguinte a fundamentação do Acórdão n.º 594/03, na parte que agora interessa considerar:
“A. A questão da inconstitucionalidade dos Decretos-Leis n.ºs 236/80 e
379/86, por violação da reserva de competência legislativa da Assembleia da República
7. Comecemos por indagar se os Decretos-Leis n.ºs 236/80, de 18 de Julho, e
379/86, de 11 de Novembro, que foram editados pelo Governo, no uso da sua competência própria, invadiram a reserva legislativa da Assembleia da República. A recorrente considera que tais diplomas estão afectados de inconstitucionalidade orgânica, na medida em que vieram permitir ao promitente-comprador de prédio urbano ou de uma sua fracção autónoma, desde que tenha havido tradição da coisa objecto do contrato prometido, invocar o direito de retenção, mesmo perante o credor hipotecário, com direito anteriormente inscrito no registo. No entender da recorrente, as alterações legislativas introduzidas pelos diplomas questionados foram completamente inovadoras e respeitam a direitos e garantias patrimoniais incluídas na reserva de competência legislativa do Parlamento, pelo que, tendo tais diplomas sido editados pelo Governo, sem autorização parlamentar, violariam o artigo 168º, n.º
1, alínea b), da Constituição [hoje, o artigo 165º, n.º 1, alínea b)]. Torna-se necessário analisar sucintamente o conteúdo dos diplomas e das alterações introduzidas no regime jurídico do contrato-promessa.
7.1. O Decreto-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho, alterou os artigos 410º, 442º e
830º do Código Civil, relativos ao contrato-promessa. Relativamente ao artigo 410º do Código Civil, o diploma em apreço acrescentou um n.º 3 respeitante às exigências formais do contrato-promessa de compra e venda de prédio urbano, ou de sua fracção autónoma, já construído, em construção ou a construir (reconhecimento presencial das assinaturas dos outorgantes e certificação notarial da existência de licença de utilização ou de construção). A alteração do artigo 442º do Código Civil consistiu no aditamento de dois números (n.ºs 2 e 3): quanto ao n.º 2, a inovação consistiu em estabelecer a favor de quem constitui o sinal e contra aquele que o recebeu uma dupla sanção como alternativa à restituição em dobro, se tiver havido entrega antecipada do objecto do contrato prometido: o pagamento do valor da coisa ao tempo do incumprimento ou a execução especifica do contrato; quanto ao n.º 3, dispôs-se então que, em caso de incumprimento, e tendo havido tradição da coisa objecto do contrato prometido, o promitente-comprador goza do direito de retenção sobre ela pelo crédito resultante do incumprimento pelo promitente-vendedor. Foram ainda introduzidas diversas alterações no artigo 830º do Código Civil, que regula a execução específica, sem directo relevo para a questão agora em apreço.
7.2. O Decreto-Lei n.º 379/86, de 11 de Novembro, por sua vez, veio alterar a redacção dos artigos 410º, 412º, 413º, 421º, 442º, 755º e 830º, todos do Código Civil. Nos pontos 2 e 3 do preâmbulo do diploma dá-se conta das alterações introduzidas no regime do contrato-promessa, quer no seu contexto geral, quer quanto à execução específica. No ponto 4 do mesmo preâmbulo, justificam-se as modificações introduzidas relativamente ao direito de retenção atribuído ao promitente-comprador. É este o aspecto que aqui interessa sobretudo considerar, pelo que se transcreve a parte relevante:
«O legislador de 1980, para o caso de tradição antecipada da coisa objecto do contrato definitivo, concedeu ao beneficiário da promessa o direito de retenção sobre a mesma, pelo crédito resultante do não cumprimento (artigo 442º, n.º 3). Pensou-se directamente no contrato-promessa de compra e venda de edifícios ou de fracções autónomas deles. Nenhum motivo justifica, todavia, que o instituto se confine a tão estreitos limites. A existência do direito de retenção nesse quadro não repugna à sua índole. Repare-se que, em diversas previsões do artigo 755º, n.º 1, do Código Civil, desaparece ou dilui-se a conexão objectiva que o precedente artigo 754º pressupõe, em termos gerais, entre a coisa e o crédito. Mas será uma garantia oportuna no contrato-promessa e, por isso, de conservar? A análise da questão conduziu a uma resposta afirmativa. Tem de reconhecer-se que, na maioria dos casos, a entrega da coisa ao adquirente apenas se verifica com o contrato definitivo. E, quando se produza antes, não há dúvida que se cria legitimamente, ao beneficiário da promessa, uma confiança mais forte na estabilidade ou concretização do negócio. A boa fé sugere, portanto, que lhe corresponda um acréscimo de segurança. O problema só levanta particulares motivos de reflexão precisamente em face da realidade que levou a conceder essa garantia: a da promessa de venda de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, maxime tomados de instituições de crédito. Ora, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada (artigo 759º, n. º 2, do Código Civil). Logo, não faltarão situações em que a preferência dos beneficiários de promessas de venda prejudique o reembolso de tais empréstimos. Neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam ou esqueçam a protecção devida aos legítimos direitos das instituições de crédito e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da actividade económico-financeira. Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de selectividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras. Persiste, em suma, o direito de retenção que funciona desde 1980. No entanto, corrigem-se inadvertências terminológicas e desloca-se essa norma para lugar mais adequado, incluindo-a entre os restantes casos de direito de retenção
[artigo 755º, n.º 1, alínea f)]». A alteração essencial decorrente deste diploma, para o que aqui releva, foi a inclusão do direito de retenção, criado pelo Decreto-Lei n.º 236/80, como nova alínea f), no elenco constante do artigo 755º, n.º 1, do Código Civil.
8. No que diz respeito à questão de constitucionalidade suscitada no processo a propósito dos diplomas mencionados, sublinhe-se que apenas podem ser apreciadas no âmbito do presente recurso as normas neles contidas que alteraram o regime do Código Civil, consagrando o direito de retenção em favor do beneficiário da promessa que tenha obtido a tradição do imóvel objecto do contrato a realizar, pois só essas normas foram aplicadas na decisão recorrida e só quanto a elas pode ser entendida a censura de desconformidade constitucional formulada pela recorrente. A inconstitucionalidade apontada pela recorrente resultaria de em tais diplomas se dispor, sem credencial parlamentar, sobre direitos e garantias patrimoniais, matéria incluída na reserva legislativa da Assembleia da República [artigo 168º, n.º 1, alínea b), da Constituição; actualmente, artigo 165º, n.º 1, alínea b)]. Para fundamentar a inclusão da matéria em análise no âmbito dos direitos, liberdades e garantias e, por isso, no domínio da reserva legislativa da Assembleia da República, a recorrente alega que os diplomas em questão procederam à criação de «um direito de crédito» que é «análogo ao direito de propriedade» (cfr. texto das alegações, a fls. 530). Cumpre, portanto, analisar se o direito instituído pelos diplomas questionados se inscreve no âmbito dos direitos, liberdades e garantias a que se reporta a alínea b) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição, na versão anterior à actual.
«O direito de retenção consiste na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir uma obrigação a que está adstrito para com aquele» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., Coimbra, 1987, anotação ao artigo 754º, p. 772). O direito de retenção a favor do promitente-comprador não constava do Código Civil de 1966. Tal direito foi introduzido pelo Decreto-Lei n.º 236/80, com vista a estabelecer um «verdadeiro equilíbrio entre os outorgantes (o que passa pela mais eficiente tutela do promitente-comprador)» (cfr. preâmbulo do Decreto-Lei n.º 236/80, ponto 1). O direito de retenção foi reconhecido no caso de ter havido tradição da coisa, e respeitando ao crédito resultante do incumprimento pelo promitente-vendedor
(artigo 442º, n.º 3, do Código Civil, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 236/80). Com o Decreto-Lei n.º 379/86, manteve-se o direito de retenção conferido ao promitente-comprador, tendo o mesmo sido inserido no local próprio – o artigo
755º do Código Civil – através do aditamento ao n.º 1 de uma nova alínea, a alínea f), que veio acrescentar a hipótese em questão aos outros casos, já ali elencados, de titulares do direito de retenção. O Código não utilizou, nas diversas situações em que reconhece a existência de um direito de retenção, o mesmo critério: com efeito, ao reconhecer o direito de retenção, com carácter genérico, no artigo 754º do Código Civil, a lei liga o crédito do detentor da coisa a despesas feitas por causa dela ou em resultado de danos por ela causados. Nos casos especiais do artigo 755º do Código Civil
(versão primitiva), não pode afirmar-se inteiramente tal conexão, embora existam outros tipos de conexão, como decorre das diferentes alíneas incluídas no artigo
755º. Segundo Antunes Varela («Emendas ao regime do contrato-promessa», Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 119º, n.ºs 3749 ss, p. 226 ss; Ano 120º, n.ºs 3755 ss, p. 35 ss), «o direito de retenção deixou declaradamente de ser, com o Código Civil de 1966, um puro meio de coerção (ou uma simples causa de preferência especial indirecta, para usar a terminologia expressiva de Paulo Cunha) e passou abertamente a revestir a natureza jurídica de um perfeito direito real de garantia, dotado até de eficácia excepcional, mercê das especiais raízes em que mergulha a sua origem» (loc. cit., n.º 3763, p. 290 s). O direito de retenção, tal como está configurado na nossa lei, reveste uma forma especial de auto-tutela dos interesses da pessoa a favor de quem é conferido, permitindo ao seu titular não abrir mão da coisa retida enquanto não obtiver satisfação do seu direito. Coloca-se então a questão de saber se, tendo o direito de retenção a natureza de direito real de garantia, deve o mesmo inscrever-se dentro do âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, por se tratar de um direito que se inclui no direito de propriedade, e, por conseguinte, susceptível de ser tratado como direito análogo ao direito de propriedade e abrangido pelo regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias. O artigo 62º da Constituição garante a todos o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida e por morte, «nos termos da Constituição», isto é, dentro dos limites e nos termos definidos noutras normas da Lei Fundamental, competindo ao legislador infra-constitucional definir o conteúdo e limites do direito de propriedade privada. Como se escreveu no Acórdão n.º 329/99 deste Tribunal (publicado no Diário da República, II Série, n.º 167, de 20 de Julho de 1999, p. 6 ss):
«[...] apesar de o direito de propriedade privada ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, nem toda a legislação que lhe diga respeito se inscreve na reserva parlamentar atinente a esse direitos, liberdades e garantias. Desta reserva fazem apenas parte as normas relativas à dimensão do direito de propriedade que tiver essa natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias». Pode, assim, afirmar-se que cabem na reserva legislativa parlamentar relativa as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos direitos análogos, por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias. Ora, no que diz respeito ao direito de propriedade, dessa dimensão essencial que tem natureza análoga aos direitos liberdades e garantias, faz, indubitavelmente, parte o direito de cada um a não ser arbitrariamente privado da sua propriedade, e, na hipótese de expropriação por utilidade pública, a receber uma justa indemnização (cfr. artigo 62º, n.ºs 1 e 2, da Constituição). Já quanto ao direito de retenção, entendido como direito real de garantia das obrigações (tal como a hipoteca – artigo 686º do Código Civil), isto é, como
«direito sobre um direito», ele não integra o núcleo essencial do direito de propriedade. Com efeito, tal direito – ainda que esteja em causa a transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele e, portanto, estreitamente relacionado com o direito de propriedade privada – apenas confere ao seu titular, por um lado, a faculdade de não cumprir enquanto não vir satisfeito o seu crédito, e, por outro lado, a garantia de realização preferencial do seu crédito. Assim sendo, não pode dizer-se que estejam em causa faculdades inerentes ao direito de propriedade, isto é, faculdades que façam sempre parte da essência do direito de propriedade, tal como ele é garantido pela Constituição. Não integrando o direito de retenção o âmbito da reserva legislativa parlamentar dos direitos, liberdades e garantias, podia o Governo legislar sobre a matéria sem necessidade de autorização parlamentar, pelo que as normas que estabelecem tal direito, constantes dos Decretos-Leis n.ºs 236/80, de 18 de Julho, e 379/86, de 11 de Novembro, não estão afectadas de inconstitucionalidade orgânica. Neste sentido decidiu entretanto o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 374/03
(publicado no Diário da República, II Série, n.º 254, de 3 de Novembro de 2003, p. 16552 ss), em que era igualmente recorrente a ora recorrente.
[...] C. A questão da inconstitucionalidade dos artigos 442º, n.º 2, e 755º, n.º 1, alínea f), do Código Civil, por violação dos princípios da proporcionalidade e da protecção da confiança
10. Segundo a recorrente, são inconstitucionais, por violação dos princípios da proporcionalidade e da protecção da confiança e segurança jurídica, consagrados na Constituição, as normas constantes do n.º 2 do artigo 442º do Código Civil e da alínea f) do n.º 1 do artigo 755º também do Código Civil, ao abrigo das quais
é concedido ao promitente-comprador de um edifício ou de uma sua fracção autónoma, em construção, construído ou a construir, e que obteve a tradição da coisa, o direito de retenção sobre a mesma coisa.
10.1. Importa sublinhar, em primeiro lugar, que a recorrente questiona unicamente as normas que ficam indicadas e que concedem ao promitente-comprador, caso tenha havido tradição da coisa, o direito de retenção sobre a mesma, pelo crédito resultante do incumprimento. Na verdade, embora a recorrente, nas suas alegações se refira à situação jurídica que para o promitente-comprador resulta da concessão do direito de retenção, o certo é que ela não pede ao Tribunal a apreciação da conformidade constitucional das normas que definem essa situação jurídica. Ora, são as normas contidas no artigo 759º do Código Civil que estabelecem que o titular do direito de retenção sobre coisa imóvel, enquanto a não entregar, «tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor» (n.º 1) e que, neste caso,
«o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente» (n.º 2). Assim, no âmbito do presente processo apenas pode ser apreciada a conformidade constitucional da norma que outorga ao promitente-comprador o direito de retenção sobre a coisa, se tiver havido tradição, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte e já não a conformidade constitucional das normas que estabelecem a preferência no pagamento do titular do direito de retenção sobre coisas imóveis em relação aos demais credores do devedor e a prevalência do direito de retenção sobre coisas imóveis relativamente à hipoteca, mesmo que esta tenha sido registada anteriormente. As apontadas consequências de «preferência no pagamento do titular do direito de retenção sobre coisas imóveis em relação aos demais credores do devedor» e de
«prevalência do direito de retenção sobre coisas imóveis relativamente à hipoteca, mesmo que esta tenha sido registada anteriormente» não poderiam em caso algum ser reportadas às normas questionadas pela recorrente – as normas constantes do artigo 442º, n.º 2, e do artigo 755º, n.º 1, alínea f), do Código Civil, em si mesmas consideradas, sem serem conjugadas com a estatuição fixada noutros preceitos, concretamente, com o artigo 759º do mesmo Código. Por outras palavras, não constituem objecto deste recurso as normas que estabelecem a preferência no pagamento do titular do direito de retenção sobre coisas imóveis em relação aos demais credores do devedor e a prevalência do direito de retenção sobre coisas imóveis relativamente à hipoteca, mesmo que esta tenha sido registada anteriormente, uma vez que tais normas não foram identificadas pela recorrente no pedido de apreciação pelo Tribunal Constitucional.
10.2. Em segundo lugar, há que esclarecer que o n.º 2 do artigo 442º do Código Civil não confere o direito de retenção ao promitente-comprador, nem na sua versão actual, nem na versão que resultou da alteração operada pelo Decreto-Lei n.º 236/80. Como resulta da análise precedente (supra, 7.), a alteração legislativa que introduziu o direito de retenção na legislação civil em favor do promitente-comprador, no caso de haver tradição da coisa, ocorreu em 1980, através do aditamento, pelo Decreto-Lei n.º 236/80, de um n.º 3 ao artigo 442º do Código Civil, e foi reafirmada pela colocação do preceito em lugar considerado mais adequado, em 1986, através da inclusão, pelo Decreto-Lei n.º
379/86, de uma alínea f) no n.º 1 do artigo 755º do mesmo Código. Tendo em conta as datas em que ocorreram os factos que deram origem ao processo em que se insere o presente recurso de constitucionalidade, na decisão recorrida apenas foi aplicada a norma contida na alínea f) do n.º 1 do artigo 755º do Código Civil, na sua versão actual (introduzida pelo Decreto-Lei n.º 379/86), e não a norma correspondente na versão anterior (que, de todo o modo, não seria a do n.º 2 do artigo 442º do Código Civil, mas sim a do n.º 3 do mesmo artigo, aditada pelo Decreto-Lei n.º 236/80). Consequentemente, só a constitucionalidade da norma contida na alínea f) do n.º
1 do artigo 755º do Código Civil, na sua versão actual (introduzida pelo Decreto-Lei n.º 379/86), pode ser apreciada no âmbito do presente recurso.
11. São conhecidas as circunstâncias que justificaram as alterações legislativas no domínio do contrato-promessa e as opiniões doutrinais não inteiramente convergentes que surgiram a propósito das modificações introduzidas no regime constante da versão inicial do Código Civil. Como já antes se referiu, o legislador de 1980, face à situação económica e social então vigente – caracterizada pela forte inflação e pelo peso da construção clandestina –, com a preocupação de proteger os interesses das pessoas que procuravam adquirir habitação própria, entendeu dever intervir em auxílio de inúmeras pessoas que se viam constrangidas a recorrer ao contrato-promessa e que, por falta de preparação, vieram a ser vítimas de abusos. O legislador veio, assim, em 1980 e depois em 1986, invocando a «lógica da defesa do consumidor», atribuir ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real, que obteve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o direito de retenção sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte. Será esta uma norma desproporcionada e violadora do princípio da confiança e segurança jurídica ?
11.1. Analisemos antes de mais a questão da eventual violação do princípio da proporcionalidade. Sobre a actuação do princípio da proporcionalidade no domínio das relações jurídico-privadas e sobre o papel que este princípio pode assumir como inspirador de soluções adoptadas pela lei no âmbito do direito privado, disse o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 302/01 (publicado no Diário da República, II Série, n.º 257, de 6 de Novembro de 2001, p. 18309 ss):
«[...] Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 153), ‘o princípio da proporcionalidade
(também chamado princípio da proibição do excesso) desdobra-se em três subprincípios: (a) princípio da adequação, isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); (b) princípio da exigibilidade, ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias (tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias); (c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa «justa medida», impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos’. Entre nós, a consagração constitucional do princípio da proporcionalidade não merece contestação, pelo menos desde 1982. Com efeito, a Constituição da República Portuguesa, desde a primeira revisão constitucional, consagra no seu artigo 2º o Estado de direito democrático, sendo certo que o princípio da proporcionalidade se encontra ínsito nesse conceito político-jurídico, do qual constitui uma necessária decorrência. O mesmo princípio da proporcionalidade aflora, aliás, em várias disposições constitucionais relevantes: no artigo 18º, n.º 2, relativo às restrições aos direitos, liberdades e garantias; no artigo 19º, n.º 4, impondo expressamente o respeito pelo princípio da proporcionalidade na opção pelo estado de sítio ou pelo estado de emergência, bem como nas respectivas declaração e execução; no artigo 19º, n.º 8, no que concerne às providências a tomar pelas autoridades com vista ao restabelecimento da normalidade constitucional; no artigo 28º, n.º 2, relativo à prisão preventiva; no artigo 30º, n.º 5, prevendo as limitações a direitos fundamentais que decorram das exigências próprias da execução de penas ou medidas de segurança ou inerentes ao sentido da condenação; no artigo 266º, n.º 2, que consagra expressamente a subordinação dos órgãos e agentes administrativos ao princípio da proporcionalidade; no artigo 270º, relativo às restrições ao exercício de direitos dos militares e agentes militarizados, bem como dos agentes dos serviços e forças de segurança; no artigo 272º, n.º 2, referente às medidas de polícia. De resto, o Tribunal Constitucional tem sucessivamente reconhecido o valor constitucional do princípio da proporcionalidade (cfr., entre muitos outros: Acórdão n.º 25/84, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2º vol., p. 7; Acórdão n.º 85/85, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., p. 245: Acórdão n.º
64/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., p. 319; Acórdão n.º
349/91, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º vol., p. 507; Acórdão n.º
363/91, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º vol., p. 79; Acórdão n.º
152/93, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º vol., p. 323; Acórdão n.º
634/93, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 26º vol., p. 205; Acórdão n.º
370/94, Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1994; Acórdão n.º
494/94, Diário da República, II Série, de 17 de Dezembro de 1994; Acórdão n.º
59/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p. 79; Acórdão n.º 572/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32º vol., p. 381; Acórdão n.º 758/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32º vol., p. 803; Acórdão n.º 958/96, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 34º vol., p. 397; Acórdão n.º 1182/96, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 35º vol., p. 447).
É assim possível encarar o princípio da proporcionalidade como um princípio objectivo da ordem jurídica. E, se é certo que a aplicação do princípio da proporcionalidade se viu inicialmente restrita à conformação dos actos dos poderes públicos e à protecção dos direitos fundamentais, há que reconhecer que foi admitido o posterior e progressivo alargamento da relevância de tal princípio a outras realidades jurídicas, não se detectando verdadeiros obstáculos à sua actuação no domínio das relações jurídico-privadas. Não se contesta portanto que o princípio da proporcionalidade seja princípio geral de direito, conformador não apenas dos actos do poder público mas também, pelo menos em certa medida, dos actos de entidades privadas e inspirador de soluções adoptadas pela própria lei no domínio do direito privado.
[...]». A ideia geral unificadora do princípio da proporcionalidade é a de que o meio utilizado para atingir certo objectivo deve estar numa determinada relação com esse objectivo. A avaliação a que há que proceder para aferir da proporcionalidade incide sobre um meio, que é dirigido a um certo fim, e implica a apreciação da respectiva idoneidade, necessidade e racionalidade à prossecução do fim em vista. No caso dos autos, trata-se de saber se é desproporcionada ou excessiva a norma que consagra o direito de retenção em favor do promitente-comprador, que obtém a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, pelo crédito do incumprimento imputável à outra parte. A resposta não pode deixar de ser negativa. Como antes se referiu, o reconhecimento do direito de retenção surgiu como uma medida de defesa do promitente-comprador considerado na circunstância como parte mais débil do contrato e como parte que geralmente ficava prejudicada, uma vez que não dispunha de meio eficaz para fazer cumprir a promessa. A atribuição do direito de retenção, sempre que exista tradição da coisa objecto do contrato prometido, permitiu um reequilíbrio da situação desigual, ainda que
– não pode deixar de se reconhecer – a lei tenha sido generosa na sua concessão. Assim, existindo uma situação de desigualdade de tratamento que se pretendeu equilibrar através deste regime, não pode considerar-se que tal medida legislativa dê origem a uma desproporção intolerável ou arbitrária dos direitos ou interesses em jogo – e só a este tipo de desproporção o Tribunal tem reconhecido relevância para concluir no sentido da inconstitucionalidade.
11.2. Vejamos agora se a norma questionada, enquanto concede o direito de retenção ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real, que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, viola o princípio da confiança e segurança jurídica, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, constante do artigo 2º da Constituição. Na sua vertente de Estado de direito, o princípio do Estado de direito democrático – nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., p. 63) – «mais do que constitutivo de preceitos jurídicos, é sobretudo englobador e integrador de um amplo conjunto de regras e princípios dispersos pelo texto constitucional, que densificam a ideia da sujeição do poder a princípios e regras jurídicas, garantindo aos cidadãos liberdade, igualdade e segurança». De acordo com a jurisprudência da Comissão Constitucional, o princípio do Estado de direito democrático «garante seguramente um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas suas expectativas juridicamente criadas e, consequentemente, a confiança dos cidadãos e da comunidade na tutela jurídica» (Parecer n.º 14/82, Pareceres da Comissão Constitucional, 19º vol., p. 183 ss). Por sua vez, o princípio da segurança jurídica, implicado no princípio do Estado de direito democrático, abrange duas ideias nucleares (Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., Coimbra, 1993, p. 380): a de estabilidade, no sentido de que as decisões estaduais, incluindo as leis, «não devem poder ser arbitrariamente modificadas, sendo apenas razoável a alteração das mesmas quando ocorram pressupostos materiais particularmente relevantes»; e a de previsibilidade, «que, fundamentalmente, se reconduz à exigência de certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos dos actos normativos». A realização do princípio do Estado de direito, no quadro da Constituição, exige portanto que seja assegurado um certo grau de calculabilidade e previsibilidade dos cidadãos sobre as suas situações jurídicas, ou seja, exige a garantia da confiança na actuação dos entes públicos. Assim, o princípio da protecção da confiança e segurança jurídica pressupõe um mínimo de previsibilidade em relação aos actos do poder, de modo que cada pessoa possa ver garantida a continuidade das relações em que intervém e dos efeitos jurídicos dos actos que pratica. Nestes termos, e em regra, as pessoas têm o direito de poder confiar que as decisões sobre os seus direitos ou relações jurídicas tenham os efeitos previstos nas normas que os regulam. No caso em apreço, a norma questionada não contende com tais princípios. A solução adoptada na alínea f) do n.º 1 do artigo 755º do Código Civil não pode surpreender, na medida em que corresponde apenas a uma mais correcta localização da matéria na orgânica da sistematização legislativa. A atribuição do direito de retenção ao promitente-comprador que tivesse obtido a tradição da coisa objecto do contrato prometido foi aprovada e estava em vigor há muito tempo: como se viu, o regime legal em questão existia desde 1980, tendo sido reafirmado em
1986, através de mera alteração na inserção sistemática da norma (que passou do artigo 442º, n.º 3, do Código Civil para o artigo 755º, n.º 1, alínea f), do mesmo Código). De todo o modo, a norma que define, em abstracto, um novo caso de direito de retenção não pode ser vista, em si mesma, como ofensiva dos direitos de outros credores do devedor. Uma eventual ofensa de tais direitos – a existir – decorreria da norma que estabelece a hierarquia entre os direitos dos diversos credores.
12. Conclui-se, assim, que não existe qualquer violação, quer do princípio da proporcionalidade explicitado no artigo 18º, n.º 2, da Constituição, quer do princípio da confiança e segurança jurídica, decorrente do princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º da Constituição.”
8. É esta jurisprudência que aqui se reitera, por não existirem razões para a alterar.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que se refere às questões de constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 14 de Janeiro de 2004
Maria Helena Brito Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Carlos Pamplona de Oliveira
Luís Nunes de Almeida