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Processo n.º 139/03
2ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam em conferência na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I- Relatório
1. A., identificado nos autos, reclama, ao abrigo do art. 76.º, n.º 4, da Lei de Organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro - sucessivamente alterada pela Lei n.º 143/85, de 26 de Novembro, pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, pela Lei n.º 88/95, de 1 de Setembro, e pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro -, doravante designada, abreviadamente de LTC), do despacho proferido pela Juíza Desembargadora do Tribunal da Relação de Lisboa que não admitiu o recurso interposto para este Tribunal Constitucional.
2. O reclamante foi acusado, em 30 de Setembro de 1995, pelo Ministério Público da prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido nos termos dos arts. 11.º, n.º1, al. a) do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, e art. 313.º do Código Penal, conjugados com os arts. 28.º e 29.º da Lei Uniforme sobre Cheques.
3. O arguido, ora reclamante, requereu, de seguida, o 'arquivamento dos autos ou, quando assim não se entenda, abertura de instrução' - fls. 20 a 36 -, alegando, nomeadamente, que:
'(...)
4.º - E não se defenda que incumbe ao arguido fazer a prova, em sede de audiência de julgamento, que o cheque foi pré-datado ou ali vigorar o princípio
'in dubio pro reo'.
5.º - Isto porque a acontecer, estar-se-ia a violar o art. 32.º da Lei Fundamental; nomeadamente a presunção de inocência do arguido, bem como a estrutura acusatória do Processo Penal.
6.º - A acusação é omissa quanto à data de entrega do cheque, e é sabido que o thema decidendum restringe-se à matéria da acusação, não podendo os poderes de cognição do tribunal estender-se a factos não relatados naquela peça processual, excepto aqueles que interessam à defesa do arguido o que não é o caso (...).
7.º - Também não será de considerar-se a possibilidade desse elemento - não constante da acusação - ser investigado pelo juiz ao abrigo do art. 358.º do CPP já que,
8.º - este normativo tem em vista situações em que os factos constantes na acusação constituem crime.
(...)
16.º - O pai da lei, Professor Germano Marques da Silva, defendeu (...), que só seriam de arquivar os processos cuja pré-datação ocorresse da própria redacção da acusação, ou se fosse caso disso na pronúncia, não resultando assim deveria o processo prosseguir para julgamento onde se apurariam todos os elementos do crime, inclusive esse elemento do tipo negativo. De qualquer modo defendeu ainda aquele ilustre professor que em caso de dúvida prevaleceria a regra probatória
'in dubio pro reo'.
17.º - Ora, o arguido entende, como felizmente têm entendido, na maioria dos casos, os tribunais, que tal comportamento é de repudiar já que permite práticas impróprias das regras fundamentais do direito, nomeadamente; violação da presunção de inocência do arguido; violação da estrutura acusatória do processo penal; impõe ao arguido um ónus que por lei não lhe é exigido, antes pelo contrário esta garante-lhe que os elementos de prova têm que ser trazidos pela acusação, além de que é um comportamento desleal de quem acusa em relação ao arguido.
18.º - A investigação em julgamento de factos não constantes na acusação impede que o arguido contra aquela possa, convenientemente, defender-se, nomeadamente, pela recolha de elementos externos ao processo, indicação de testemunhas; ao invés, o acusador aguarda, no conforto da sua infundada acusação, que o arguido prove a sua inocência.
(...)
21.º - Isto para dizer que, nesta fase, o lesado, procurando receber a quantia do cheque, irá dizer, naturalmente, que o cheque lhe foi entregue na data nele aposta.
22.º - Será o testemunho (cuja parcialidade é por demais notória e evidente) suficiente para se aplicar ao arguido uma pena?
23.º - A resposta só pode ser uma: não!
24.º - Não se pode, de modo algum, tolerar esta situação pois permitir-se a mesma estar-se-ia a violar princípios de um Estado de Direito que as Democracias instituídas, como a nossa, vêm procurando aperfeiçoar no sentido de elevar e proteger a dignidade dos seus cidadãos, postergando práticas que ponham em causa a estabilidade e a GARANTIA ESSENCIAL da estrutura acusatória do processo penal
(...)
24.º [bis] - O legislador, ciente desta 'perigosa' situação, impõe ao lesado o
ónus de oferecer desde logo, ou no prazo de quinze dias a contar da notificação para tal, os elementos probatórios (...).
25.º - Então que fazer? Perguntar-se-á, e a resposta, salvo melhor opinião, é:
26.º - uma vez arquivado o processo, poderá o Ministério Público, no exercício das funções de investigação que só a ele cabem, a requerimento do lesado, deduzir nova acusação, desde que esta contenha todos os elementos de prova que a lei exige.
27.º - Além do mais, equacionar-se outra solução estar-se-ia a colocar em causa um outro valor fundamental do direito que é a segurança (...).
28.º - O comum dos mortais necessita de saber, ou melhor confiar, que os seus tribunais repudiam, desde logo, acusações infundadas, levianas ou desprovidas de todos os elementos probatórios que a lei exige, sejam estas situações derivadas, ou não, de alterações supervenientes dela.
29.º - Trata-se de uma 'Garantia Essencial' que a Lei Fundamental consagra e protege.
4. Aberta a instrução - cf. despacho de fls. 37 - e realizado o correspondente debate instrutório, o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa decidiu que:
'Basta olhar para o cheque apresentado com a queixa - datado de 30/06/93 e devolvido a 6/07/93 para se ter como inequívoca conclusão que o cheque é pré-datado. De acordo com o art. 2.º, n.º 2 do CP, quando se verifiquem situações de sucessão de Leis no tempo, aplicar-se-á aquela que favorece o arguido. Ao abrigo do disposto no art. 11.º, n.º 3 do DL 316/97 de 19/11, a conduta imputada ao arguido está despenalizada, pelo que em conformidade julgo extinto o procedimento criminal e determino o arquivamento dos autos'.
5. Inconformado com tal decisão, o assistente B. interpôs, nos termos previstos nos arts. 399.º, 401.º, n.º 1, alínea b) e 407.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
6. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa pronunciou-se pela procedência do recurso e, cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do C.P.P., o arguido manteve a sua argumentação, sustentando que ao decidir-se no sentido da procedência do recurso 'estar-se-ia a aplicar uma norma violadora do art. 32.º, n.º 2, da Constituição'.
7. O Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 13 de Março de 2002 - fls.
78 a 84 -, proferiu juízo decisório no sentido de 'conceder provimento ao recurso, revogando o Despacho de Não Pronúncia recorrido, o qual deverá ser substituído por outro no qual se pronuncie o Arguido pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão', porquanto, 'é sabido que, nesta fase processual, a valoração a fazer da prova sustentará tão somente um juízo de forte probabilidade da prática pelo Arguido dos ilícitos criminais imputados. E não um juízo de absoluta certeza. (...) Analisando a prova recolhida nos Autos à luz destes ensinamentos surge como evidente a conclusão de que tais elementos constituem suficiente prova indiciária da prática pelo Arguido do ilícito criminal que lhe é imputado. E tal prova indiciária é idónea e bastante para sustentar a pronúncia do Arguido'.
8. Notificado desse Acórdão, o arguido A., interpôs, ao abrigo do disposto no art. 72.º, n.º 1, alínea b) e art. 70.º, n.º1, al. b) da LTC, recurso para o Tribunal Constitucional 'para fiscalização concreta das normas constantes nos artigos 286.º, n.º1, 289.º, n.º1, 290.º, n.º1, 292.º, 308.º, n.º1, 309.º, 358.º,
359.º, 412.º, 425.º todas do Código de Processo Penal, normas estas aplicadas pelo Tribunal ora recorrido e tidas por inconstitucionais, por violarem os princípios consignados nos artigos 29.º, n.º1 e 32.º, n.º 2, 4 e 5 e ainda infringir os preceitos constitucionais constantes nos artigos 204.º e 205.º, n.º1 da Constituição, e cuja inconstitucionalidade, o recorrente suscitou no processo através do requerimento de abertura de instrução (artigos 4.º, 5.º,
6.º, 7.º, 17.º, 18.º, 21.º, 22.º, 23.º, 24.º a 29.º, 63.º, 64.º) e ainda através da resposta do recorrente ao Procurador Adjunto junta aos autos a 02 de Maio de
2001' - cf. fls. 86.
9. E, 'sem prejuízo do recurso para o alto Tribunal Constitucional e ao abrigo do disposto no artigo 379.º, n.º 1 alíneas a) e c) do CPP ex vi artigo 425.º, n.º 4, do mesmo código', o arguido reclamou a nulidade do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa – cf. fls. 88 a 97.
10. Por despacho exarado em 3 de Dezembro de 2002 pela Desembargadora Relatora do Tribunal da Relação de Lisboa, o recurso para este Tribunal Constitucional não foi admitido 'por carecer de fundamento' - cf. fls. 101.
11. Decidindo em conferência sobre a reclamação, o Tribunal da Relação de Lisboa indeferiu, por Acórdão de 11 de Dezembro de 2002, as nulidades arguidas - cf. fls. 102 e 103.
12. Notificado de tal decisão, o arguido interpôs dela recurso para este Tribunal Constitucional - ao abrigo dos artigos 72.º, n.º 1, alínea b) e
70.º, n.º 1, alínea b) da LTC - afirmando que tal decisão aplicou 'as normas inconstitucionais constantes dos artigos 425.º, n.º 4 e 379.º, alíneas a) e c), ambas do CPP, cuja inconstitucionalidade foi suscitada na reclamação' - cf. fls.
104.
13. O Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido de que 'a presente reclamação apenas pode considerar-se reportada à rejeição (pelo despacho de fls. 101) do recurso interposto pelo reclamante (a fls. 86 dos autos): na verdade, não consta dos autos qualquer despacho a admitir ou rejeitar o (novo) recurso interposto a fls. 104, pelo que naturalmente não pode tal requerimento ser objecto de apreciação no âmbito de um procedimento que pressupõe a rejeição ou retenção de um recurso de fiscalização concreta.
Os recursos para o Tribunal Constitucional têm necessariamente como objecto normas que hajam sido efectivamente aplicadas à dirimição do caso pela decisão impugnada - cumprindo ao recorrente suscitar, em termos adequados e inteligíveis, a respectiva inconstitucionalidade, fundamentando-a minimamente. Ora - perante este quadro - é evidente a inidoneidade do requerimento de fls.
86, já que nele se não mostra delineada, em termos inteligíveis, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, limitando-se o recorrente a
'arrolar' uma série de preceitos legais, dispersos e heterogéneos, do CPP e a afirmar, em termos verdadeiramente ininteligíveis, a sua inconstitucionalidade, sem curar de especificar minimamente em que sentido ou dimensão foram tomados e aplicados pela decisão recorrida. Aliás, tendo-se esta limitado a valorar os indícios existentes e a concluir pela sua suficiência para submeter o arguido a julgamento - na sequência de um recurso, interposto pelo assistente da inicial decisão de não pronúncia - e no qual gozou naturalmente de todas as garantias de defesa e contraditoriedade - é manifesto que aqueles preceitos legais não foram sequer aplicados à dirimição do caso.
Deste modo, é manifesto terá de improceder, já que o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, a fls. 86, sempre teria de ser rejeitado'.
II. Fundamentação
Antes de mais, cumpre referir que a presente reclamação versa unicamente sobre o despacho - de fls. 101 - que não admitiu o recurso interposto - a fls. 86 dos autos - pelo ora reclamante para este Tribunal. É certo que o reclamante, após ter sido notificado da decisão da conferência que indeferiu as nulidades arguidas, apresentou, perante o Tribunal da Relação de Lisboa, um - outro - requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, todavia não consta dos autos qualquer despacho de admissão ou rejeição de tal recurso, e, nessa medida, o Tribunal Constitucional não pode, nesta sede e como salientou o Ministério Público junto deste Tribunal, apreciar tal requerimento e pronunciar-se sobre tal recurso, posto que nos encontramos no âmbito de um procedimento que pressupõe impreterivelmente a rejeição do recurso de fiscalização concreta ou a retenção da sua subida.
Já no que concerne especificamente com a reclamação sub judicio, importa indagar sobre a (in)admissibilidade do recurso interposto para este Tribunal, verificando o preenchimento dos requisitos legalmente pressupostos relativamente aos recursos interpostos ao abrigo do art. 70.º, n.º 1, al. b) da LTC, apurando especificamente se o recorrente suscitou, durante o processo, a inconstitucionalidade de uma norma que tenha sido aplicada como ratio decidendi da decisão recorrida e que tenham sido esgotados os recursos ordinários. Ora, no caso em consideração e contrariamente ao alegado pelo reclamante, não foi adequadamente suscitada qualquer problema de constitucionalidade normativa em termos de o tribunal recorrido estar obrigado a dele conhecer. De facto e atentando desde logo no requerimento de abertura de instrução - supra transcrito, nos artigos indicados pelo reclamante na interposição de recurso para este Tribunal -, nunca a impugnação de constitucionalidade foi imputada, de forma específica, a normas, limitando-se o ora reclamante a tecer uma série de considerações relativas à 'decisão', sem questionar qualquer incompatibilidade das normas que pretende que o Tribunal Constitucional aprecie - os artigos
286.º, n.º1, 289.º, n.º1, 290.º, n.º1, 292.º, 308.º, n.º1, 309.º, 358.º, 359.º,
412.º, 425.º do Código de Processo Penal - com a Lei Fundamental.
Para que este Tribunal possa pronunciar-se sobre uma questão de constitucionalidade importa, desde logo, que se deixe claro qual o preceito legal cuja legitimidade se questiona, fazendo-o de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é suscitada saiba que tem um determinado problema de constitucionalidade para decidir. Isto reclama - como se menciona no Acórdão n.º
269/94 (publicado no DR, II série, de 18 de Junho de 1994) - que 'tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição (...) [impondo] que se aponte o porquê dessa imcompatibilidade com a lei fundamental (...)'. E, no caso sub judicio, onde tais normas nem sequer são referidas, não se vê como poderia o tribunal a quo pronunciar-se sobre o problema da sua constitucionalidade, não sendo, consequentemente, de considerar que a questão da inconstitucionalidade das normas referidas foi suscitada, pelo reclamante, de forma adequada. No presente caso, não pode afirmar-se, com efeito, ter o reclamante suscitado qualquer questão de inconstitucionalidade. Muito pelo contrário. Os termos em que o reclamante 'equacionou' o 'problema' da constitucionalidade prefiguram-se manifestamente inintelegíveis, não sendo possível destrinçar qual o sentido normativo de tais preceitos tido por inconstitucional, nem vislumbrar, consequentemente, como o tribunal recorrido poderia ter proferido um qualquer juízo de constitucionalidade sobre as normas (não explicitadas) que o reclamante pretende agora, e em primeira mão, apresentar à consideração deste Tribunal. Além do exposto, não pode afirmar-se, em bom rigor, que igualmente proceda o requisito específico dos recursos interpostos ao abrigo do art. 70º, nº 1, al. b) da LTC, segundo o qual as normas cuja constitucionalidade se questiona hão-de ter sido aplicadas como ratio decidendi da decisão recorrida, porquanto o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13 de Março de 2002 limitou-se a valorar os indícios existentes e a concluir pela suficiência destes para submeter o arguido a julgamento, razão pela qual poderá afirmar-se que as normas cuja inconstitucionalidade é suscitada - no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal - não foram efectivamente aplicadas pelo Tribunal recorrido no sentido de poderem configurar-se como a ratio decidendi do juízo decisório proferido.
III - A decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação. Custas pelo reclamante, com taxa de justiça de 15 UC.
Lisboa, 29 de Abril de 2003 Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos