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Proc. nº 60/2003 Plenário Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional
I O pedido
1. O Provedor de Justiça requer, ao abrigo do artigo 281º, nº 2, alínea a), da Constituição, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante do artigo 107º, nº 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro.
À data do pedido, e apesar de a isso não fazer expressamente referência o requerente, a norma havia já sofrido uma alteração de redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 329-B/2000, de 22 de Dezembro, sendo o seu conteúdo actual o seguinte: Artigo 107.º Limitações
[...]
1 – O direito de denúncia do contrato de arrendamento, facultado ao senhorio pelas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 69.º, não pode ser exercido quando no momento em que deva produzir efeitos ocorra alguma das seguintes circunstâncias: a) Ter o arrendatário 65 ou mais anos de idade ou, independentemente desta, se encontre na situação de reforma por invalidez absoluta, ou, não beneficiando de pensão de invalidez, sofra de incapacidade total para o trabalho, ou seja portador de deficiência a que corresponda incapacidade superior a dois terços.
(o sublinhado corresponde à alteração de redacção)
[...]
2. O requerente pede a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 107º, nº 1, alínea a), do RAU, quando aplicada à denúncia de contrato de arrendamento por senhorio que careça do local para sua habitação permanente e que preencha também algum dos requisitos enunciados na mesma norma, por violação do princípio da igualdade. Para sustentar a sua pretensão, alega, em síntese, o seguinte:
9. Mas se se compreende esta restrição à possibilidade de denúncia, quando se verifique determinada idade, situação de invalidez absoluta ou de incapacidade total para o trabalho do inquilino, tem identicamente que se tutelar situações homólogas que afectem os senhorios que, pretendendo denunciar o contrato para usarem a coisa como sua própria habitação, preenchendo os requisitos de necessidade geral exigidos pelo RAU, também sejam maiores de 65 anos, estejam em situação de invalidez absoluta ou sejam totalmente incapazes para o trabalho.
10. É que encontrando-se arrendatário e senhorio em situação substantivamente idêntica, face aos parâmetros constitucionais mencionados no nº 4, isto é, no caso de ambos preencherem algum dos requisitos previstos na norma em apreço, não se vislumbra, face ao princípio da igualdade, motivos para privilegiar em termos absolutos, sem mais, a posição do arrendatário face à do senhorio, salvaguardando totalmente o direito à habitação do primeiro e extinguindo de todo a possibilidade de satisfação da mesma posição jurídica fundamental quanto ao segundo.
11. Coeteris paribus, a única diferença valorada pela norma legal em apreço é a circunstância de um ser proprietário e o outro não, o que, em si mesmo, não permite considerar como mais capaz economicamente aquele de prover às suas necessidades de subsistência, designadamente em termos de abrigo, do que este.
12. Repare-se que não há, na norma em causa, qualquer ponderação da situação económica global de uma e de outra parte, nem tão pouco se exigindo que a renda da habitação em causa seja suficiente para, a valores de mercado, encontrar local que ofereça comodidades semelhantes ou, sequer, as mínimas para satisfazer as necessidades habitacionais do senhorio.
13. Nestas circunstâncias, não está a norma legal em apreço a prosseguir os valores constitucionais acima mencionados, sacrificando o direito à habitação de um idoso face a outro idoso, ou de um portador de deficiência face a outro, com o exclusivo fundamento na situação de proprietário de um deles, sem que essa qualidade jurídica tenha, no plano dos factos, tradução prática na efectivação das possibilidades de satisfação daquele direito à habitação.
14. Julgo, assim, que se está perante uma violação do princípio da igualdade, vertido no art. 13º da Constituição, na sua vertente de proibição de discriminação ilegítima.
15. A este respeito referem os autores acima mencionados na mesma obra, a respeito das diferenciações legítimas, que “o que se exige é que as medidas de diferenciação sejam materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade e não se baseiem em qualquer motivo constitucionalmente impróprio”, concluindo que assim será
“quando: a) se baseiem numa distinção objectiva de situações; b) não se fundamentem em qualquer dos motivos indicados no nº 2; c) tenham um fim legítimo segundo o ordenamento constitucional positivo; d) se revelem necessárias, adequadas e proporcionadas à satisfação do seu objectivo” (loc. cit, pg. 128).
16. Ora no caso que tenho vindo a expor, de preenchimento idêntico das circunstâncias de facto previstas no art. 107º, 1, a), do RAU, por parte do senhorio e do arrendatário, estará quando muito provido o primeiro dos requisitos enunciados no parágrafo antecedente, sendo certo que a essa distinção objectiva de situações não corresponde, em termos finalísticos, nenhuma base constitucionalmente adequada para a aplicação de solução jurídica que tutele exclusivamente a posição de uma das partes.
17. Não se pode sequer alegar com a existência de uma prévia satisfação da posição jurídica de uma das partes.
18. O que está em causa é a satisfação prioritária do direito à habitação de quem se encontra em situação de desfavorecimento, não podendo considerar-se como adequada a tal desiderato uma norma que, de modo cego, acolhe apenas as necessidades de uma das partes em determinado contrato, olvidando a verificação de idêntico ou mais grave quadro de condicionalismos na contraparte.
19. A protecção do direito à habitação do idoso ou inválido arrendatário, à custa do sacrifício total do mesmo direito de idoso ou inválido senhorio nunca se poderá revelar como uma medida necessária, adequada e proporcionada à satisfação do quadro constitucional enunciado no nº 3 do presente requerimento, antes impondo cegamente uma desvantagem ilegítima ao senhorio, apenas por o ser.
20. Não se verifica, tão pouco, qualquer “obrigação de diferenciação” para se compensar a desigualdade de oportunidades, já que, na hipótese que aqui levanto, encontram-se arrendatário e senhorio em situação semelhante.
3. O Primeiro-Ministro foi notificado, para os efeitos do disposto nos artigos
54º e 55º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional. Em resposta, pronunciou-se no sentido da não inconstitucionalidade da norma, concluindo:
A) No presente “caso” está em causa o “conteúdo essencial mínimo” do “direito à habitação”, garantido nos termos do disposto no artigo 65º da Constituição. Esse direito conjuga-se com a necessidade de uma especial protecção à terceira idade (artigo 72º da Constituição), bem como a necessidade de salvaguarda das posições jurídicas de quem está em especial situação de desamparo, motivada por patologia relevante (artigo 71º da Constituição).
B) Como muito bem sublinhou esse Venerando Tribunal, o direito à habitação funda-se na “dignidade da pessoa humana”, ou seja, “naquilo que a pessoa realmente é”: “um ser livre com direito a viver dignamente”. Existe aí “um mínimo que o Estado sempre deve satisfazer”.
“E para isso pode, até, se tal for necessário, impor restrições aos direitos do proprietário privado”. Um “domínio onde a hipoteca social que recai sobre a propriedade é (…) mais forte”.
C) Se no regime geral da denúncia do contrato de arrendamento para habitação do senhorio, este tem “melhor direito”, mal se compreenderia que viesse também a gozar de “melhor direito” numa situação que o legislador legitimamente configurou como de “limitação”.
D) Os direitos não se excluem um ao outro. No juízo de constitucionalidade não se contrapesam interesses individuais, mas interesses colectivos ou sociais.
E) A solução legal tem, assim, suficiente credencial constitucional.
F) Não viola o “princípio geral de igualdade (artigo 13º da Constituição). Pelo contrário, baseia-se numa leitura substancial do princípio geral de igualdade, o que pressupõe não apenas uma “igualdade de oportunidade”, mas ainda uma “igualdade de resultados”. Concretiza o “princípio de favorabilidade” (Günstigkeitprinzip) numa leitura assente no postulado da “solidariedade social” como bem constitucionalmente protegido.
G) A medida encontra-se materialmente fundada sob o ponto de vista da solidariedade, da proporcionalidade, da justiça e da paz social. Não se baseia em nenhum motivo “constitucionalmente impróprio”, designadamente as categorias enunciadas no nº 2 do artigo 13º da Constituição. Baseia-se, antes, numa distinção objectiva de situações ostentando-se um fim legítimo segundo o ordenamento jurídico-constitucional. Revela-se, por último, necessária, adequada e proporcionada à satisfação do seu objectivo.
II A) Questão prévia
4. O pedido do Provedor de Justiça, dirigido ao Tribunal no ano de 2003, visa a fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade da norma do artigo 107º, nº 1, alínea a), do RAU.
Apesar de a norma não ter sido transcrita no texto do requerimento, considerando a data do pedido, a redacção a ter em conta só pode ser a resultante da modificação que entretanto lhe fora introduzida pelo Decreto-Lei nº 329-B/2000. Esta alteração não modificou a regulação anteriormente plasmada no preceito em causa, limitando-se a acrescentar um novo fundamento de restrição ao direito de denúncia do senhorio, constituído pela situação de se ser «portador de deficiência a que corresponda incapacidade superior a dois terços». Isto, para além de, por força da remissão para a alínea b) do nº 1 do artigo 69º, se ter previsto o direito de denúncia quando o senhorio necessita do prédio para nele construir a residência dos descendentes em primeiro grau. Assim sendo, deve apreciar-se a norma do artigo 107º, nº 1, alínea a), do RAU, na dimensão questionada, na redacção já vigente à data do pedido.
B) A questão de constitucionalidade
5. A questão de constitucionalidade que o pedido suscita consiste em determinar se o artigo 107º, nº 1, alínea a), do RAU, viola o princípio da igualdade e, desse modo, o preceituado no artigo 13º da Constituição da República, o qual determina:
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social.
A norma cuja constitucionalidade se aprecia estabelece uma derrogação ao direito de denúncia do contrato de arrendamento facultado ao senhorio pela alínea a) do nº 1 do artigo 69º do RAU (que constitui, já ele, uma excepção à regra da renovação obrigatória e automática do contrato de arrendamento). Com efeito, esta última norma, na redacção emergente do Decreto-Lei nº
329-B/2000, garante ao senhorio o direito de denunciar o contrato de arrendamento quando necessite do prédio para sua habitação ou dos seus descendentes em 1.º grau (a)]; ou quando necessite do prédio para nele construir a sua residência ou dos seus descendentes em 1.º grau (b)]. O artigo 107º, nº 1, alínea a), aqui em análise, prevê, contudo, a derrogação deste direito quando o arrendatário tenha mais de 65 anos de idade ou, independentemente da idade, se encontre em situação de reforma por invalidez absoluta, ou, não beneficiando de pensão de invalidez, sofra de incapacidade total para o trabalho, ou seja portador de deficiência de que resulte incapacidade superior a dois terços. Assim, a norma sub judicio refere-se ao arrendamento que tem por fim a habitação e, em especial, a habitação permanente.
6. Não está em causa nos presentes autos a constitucionalidade das normas que permitem ao senhorio denunciar o contrato de arrendamento quando necessite da casa arrendada para sua habitação (artigo 68º), nem a constitucionalidade da norma que considera a idade do inquilino, ou outras circunstâncias legalmente definidas, como factos impeditivos da denúncia do contrato (artigo 107º). O Tribunal já decidiu, a propósito do direito de denúncia – e uma vez que o direito à habitação do senhorio e do inquilino se concretizam no mesmo imóvel, excluindo-se mutuamente, só podendo cada um deles satisfazer-se em detrimento do outro - que o senhorio tem «melhor direito» do que o inquilino quando pretenda exercer o seu direito à habitação em imóvel de que é proprietário (Acórdão nº
151/92, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., págs. 647 e segs.); e, relativamente às normas que conferem características vinculísticas ao contrato de arrendamento para a habitação, designadamente no que se reporta à limitação do exercício do direito de denúncia pelo senhorio, o Acórdão nº 263/00
(publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47º vol., págs. 363 e segs.), considerou que estas «se não configuram como ultrapassando um modo adequado e proporcionado de resolução do conflito que, à partida, se postaria entre um e outro daqueles direitos».
7. No seu pedido, o que o requerente requer ao Tribunal é que aprecie a constitucionalidade da norma do artigo 107º, nº 1, alínea a), do RAU, quando entendida no sentido de a limitação que introduz ser oponível a um senhorio que invoque o direito de denúncia do contrato de arrendamento – necessitando da casa para sua habitação própria –, encontrando-se, também ele, em circunstâncias idênticas às enumeradas na norma impugnada. Importa, pois, no caso da norma em análise, decidir se esta estabelece uma distinção arbitrária, ou seja, uma diferenciação injustificada a favor do arrendatário, ou se esta distinção tem suficiente justificação racional ou material, quando o senhorio tenha, também ele, mais de 65 anos de idade ou, independentemente da idade, se encontre em situação de reforma por invalidez absoluta, ou, não beneficiando de pensão de invalidez, sofra de incapacidade total para o trabalho, ou seja portador de deficiência de que resulte incapacidade superior a dois terços. Muito concretamente, a questão que se nos coloca é a de saber se tem razão o requerente quando sustenta que a norma em causa, «quando aplicada à denúncia de contrato de arrendamento por senhorio que careça do local para sua habitação permanente e que preencha também algum dos requisitos enunciados na mesma norma», é materialmente inconstitucional, por violação do artigo 13º da Constituição.
8. O Tribunal Constitucional teve já ocasião de apreciar a norma objecto da presente decisão, interpretada no sentido de que o senhorio, mesmo que tenha mais de 65 anos de idade, não pode denunciar o contrato de arrendamento para satisfazer a sua necessidade de habitação, se, no momento em que a denúncia deva produzir efeitos, o arrendatário tiver 65 ou mais anos de idade, em sede de fiscalização concreta, tendo então decidido não a julgar inconstitucional, por considerar não ser violado o princípio da igualdade (Acórdão nº 420/00, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 48º vol., págs. 221 e segs.). Entendeu, então, o Tribunal que a manutenção da regra da renovação obrigatória e automática do contrato de arrendamento – consequência da norma do artigo 107º, nº1, alínea a), do RAU, que limita o direito de denúncia do senhorio previsto no artigo 69º, alíneas a) e b), do RAU – encontrava justificação na necessidade de proteger a estabilidade habitacional do inquilino. Esta assumiria maior relevo quando o inquilino tivesse já 65 anos ou mais, por se tornar, então, naturalmente mais difícil arranjar outra casa, e serem maiores as dificuldades de ambientação a outro local. Apesar de o senhorio, que pretende denunciar o contrato por ter necessidade da casa para sua habitação, se encontrar em situação – no que respeita à necessidade da casa e à idade – idêntica à do inquilino, o Tribunal considerou que a mudança de vida que, nessa idade, importa uma mudança de casa, é algo que o senhorio poderá, em geral, suportar sem dificuldades de maior, por ser ele próprio a tomar a iniciativa da mudança. Escreveu-se então: Esta é também a opinião [no sentido da inconstitucionalidade] de J. R. C. PINTO FURTADO, que, no seu Manual do Arrendamento Urbano (Coimbra, 1996), escreve a este propósito, na página 770:
Outro ponto parece ainda digno de reflexão: é o das idades comparativas de denunciantes e inquilinos. Sendo esta limitação fundada num justo motivo de humanidade, parece que não poderá ser oposto a denunciante que tenha a mesma ou mais avançada idade. Doutro modo, violar-se-á o princípio constitucional da igualdade dos cidadãos perante a lei (artigo 13º-1 CRP): a senectude do senhorio
é tão digna de consideração quanto a do inquilino.
Será assim ?
Para responder à pergunta, convém recordar que a regra da renovação obrigatória e automática do contrato de arrendamento (e, assim, a proscrição da denúncia do contrato ad nutum) encontra a sua justificação na necessidade de proteger a estabilidade habitacional do inquilino. Ora, essa necessidade assume particular relevo quando o inquilino já tem certa idade (no caso, 65 anos ou mais), pois que se lhe torna então mais difícil arranjar outra casa; e, mesmo quando o consiga, ver-se-á, em regra, obrigado a romper com o passado, pois tem que deixar o meio em que viveu muitos anos e onde, por isso, criou raízes e fez amigos, para ir refazer a vida noutro local – num local, onde pode nem sequer conhecer ninguém e ao qual, por isso, pode sentir as maiores dificuldades a ambientar-se.
Compreende-se assim que o legislador considere a idade do inquilino facto impeditivo da denúncia do contrato - que o mesmo é dizer que a considere causa de exclusão do direito de denúncia.
Ora, o princípio da igualdade – que, como é sabido, impõe se dê tratamento igual
às situações essencialmente iguais e tratamento diferente às situações que forem essencialmente diferentes - o que recusa é o arbítrio legislativo, as soluções irracionais ou irrazoáveis, por serem carecidas de fundamento material ou racional capaz de as sustentar.
Enfrentando a questão da constitucionalidade da norma, que dispõe que a idade do inquilino constitui obstáculo ao exercício do direito de denúncia do senhorio, sustenta JORGE ARAGÃO SEIA que ela não viola o princípio da igualdade. Escreve, a propósito:
Porquê esse limite ?
Porque se entende que, quando o inquilino tem certa idade ou invalidez absoluta ou incapacidade total para o trabalho, permitir a denúncia do contrato seria colocá-lo numa situação de desenraizamento, pois foi naquela casa que criou raízes, arranjou os amigos, etc., e de dificuldade de arranjar nova habitação e de se adaptar a novo ambiente. (cf. Arrendamento Urbano, Coimbra, 2000, 5ª edição, página 548).
E, depois de referir que “a única igualdade” entre a situação do senhorio que pretenda denunciar o contrato e a do inquilino “será a idade ou a invalidez ou a incapacidade”, o mesmo comentarista acrescenta que “o inquilino quando arrenda casa está confiante na renovação do arrendamento, não está nos seus planos de vida arranjar outra residência”, ao passo que o senhorio, “quando concedeu o gozo da casa, já sabia de antemão que não a poderia ir habitar, por ter criado com o inquilino uma relação duradoura, conforme estipula o artigo 1054º do Código Civil”.
É certo que o senhorio, que pretende denunciar o contrato, por ter necessidade da casa para sua habitação, se tiver 65 anos de idade ou mais, encontra-se, no que concerne à idade e à necessidade da casa, em situação idêntica à do inquilino que já tenha atingido aquela idade. Simplesmente, a mudança de vida que, nessa idade, importa uma mudança de casa é algo que ele pode suportar sem dificuldades de maior, pois é ele próprio a tomar a iniciativa da mudança. Já o inquilino, esse, vê-se forçado a mudar os hábitos e rotinas de vida, que foi criando pelo facto de viver muitos anos no mesmo sítio, e, bem assim, a afastar-se dos amigos que aí fez. Por isso, a mudança de vida, sendo-lhe imposta, pode levá-lo a sentir-se completamente perdido e desenraizado, representando, assim, uma violência atentatória do respeito que lhe é devido enquanto pessoa.
Há-de convir-se que estas razões justificam que o legislador – colocado perante um conflito de direitos: de um lado, o direito à habitação do senhorio, e do outro, o direito à habitação do inquilino, pretendendo ambos concretizar-se sobre o mesmo imóvel – resolva esse conflito a favor do inquilino, pois que ele se apresenta em situação mais carecida do amparo da lei.
9. O Tribunal Constitucional mantém o entendimento – sustentado no Acórdão nº
420/00 anteriormente mencionado – de que a norma questionada não é inconstitucional. O princípio da igualdade constitucionalmente consagrado tem como fundamento a igual dignidade social de todos os cidadãos. Em três dimensões se analisa tal princípio: a proibição do arbítrio, que torna inadmissível a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, apreciada esta de acordo com critérios objectivos de relevo constitucional, afastando também o tratamento idêntico de situações manifestamente desiguais; a proibição de discriminação, impedindo quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos que se baseiem em categorias meramente subjectivas ou em razão dessas categorias; e a obrigação de diferenciação, como mecanismo para compensar as desigualdades de oportunidades, que pressupõe a eliminação, pelos poderes públicos, de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural (neste sentido, os Acórdãos nº 68/97, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36º vol., págs. 259 e segs.; nº 77/01, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 49º vol., págs. 277 e segs.; nº 402/01, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 51º vol., págs. 165 e segs.; nº 202/02, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 53º vol., págs. 223 e segs.; ver ainda, por exemplo, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1993, págs. 126 e segs.). O Tribunal Constitucional considerou, repetidamente, que o princípio da igualdade só é violado quando o legislador trate diferentemente situações que são essencialmente iguais, muito embora não proíba diferenciações de tratamento quando estas sejam materialmente fundadas (v.g., os Acórdãos nºs 68/97 e 202/02, já mencionados e o Acórdão nº 177/99, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 43º vol., págs. 109 e segs.).
10. É esta dimensão de proibição do arbítrio do princípio da igualdade que se torna particularmente relevante para o juízo deste Tribunal acerca da norma em causa. Será materialmente igual a situação do inquilino e do senhorio quando ambos preencham um dos requisitos da alínea a) do nº 1 do artigo 107.º do RAU, não se justificando, assim, a diferenciação de protecção garantida pela norma, devendo, por isso, prevalecer neste tipo de casos o direito à habitação do senhorio? A primeira constatação de que o Tribunal Constitucional parte é a de que a Constituição, em qualquer das suas normas, não estabelece critérios concretos que permitam concluir que seja imposta uma prevalência do direito à habitação do senhorio relativamente ao do inquilino.
Por outro lado, se o direito à habitação pode ser uma faculdade inerente ao direito de propriedade sobre prédios urbanos, merecendo, nessa medida, tutela, não é menos verdade que o direito à habitação derivado do arrendamento (para certos sectores da doutrina o arrendamento adquire até natureza de direito real
– assim, por exemplo, Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, 5ª ed., 2000, pp. 536-538, Menezes Cordeiro, “Da natureza do direito do locatário”, Revista da Ordem dos Advogados, ano 40º, 1980, tomo II, pp. 402-403, e, em análise da legislação mas de um ponto de vista histórico, Manuel Henriques Mesquita, Obrigações reais e ónus reais, 1990, pp. 17 a 177, nota 87) merece também a protecção que, constitucional-mente, as necessidades humanas satisfeitas com a habitação justificam. Assim, admite-se até que a satisfação do direito à habitação possa implicar
“restrições à propriedade privada com base na função social desta e com vista à tutela e segurança da posição jurídica do arrendatário habitacional” (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 311/93, de 28 de Abril – D.R., II Série, de 22 de Julho de 1993). Há pois que concluir que a Constituição não assegura, em toda e qualquer situação, uma prevalência do direito à habitação do senhorio sobre o do locatário, admitindo que, em certas circunstâncias, o legislador dê prevalência ao direito do inquilino.
11. Por outro lado, apesar de inquilino e senhorio se poderem encontrar em idêntica situação de preenchimento dos requisitos da norma em apreço, ainda assim estão numa situação materialmente distinta que justificará a diferenciação de tratamento. Assim, vale para todas as situações da alínea a) do nº 1 do artigo 107.º o argumento invocado no Acórdão nº 420/00, a propósito da semelhança no requisito da idade: quando o inquilino já tem certa idade (ou, agora, se encontre numa das outras situações de especial fragilidade apontadas na norma) torna-se-lhe, em geral, mais difícil arranjar casa. E «mesmo quando o consiga, ver-se-á, em regra, obrigado a romper com o passado, pois tem que deixar o meio em que viveu muitos anos e onde, por isso, criou raízes e fez amigos, para ir refazer a vida noutro local – num local onde pode nem sequer conhecer ninguém e ao qual, por isso, pode sentir as maiores dificuldades em ambientar-se». Nestas situações especialmente sensíveis - em que também a impossibilidade de angariar meios económicos para enfrentar a mudança é, muitas vezes, uma realidade (Acórdão nº 202/02) – a teia de solidariedades várias construída em torno do inquilino, que, certamente, demorou tempo a criar e a consolidar, justifica que se proteja a sua estabilidade habitacional.
É certo que, também o senhorio se poderá encontrar numa destas situações de fragilidade previstas na norma. Mas no seu caso – o de alguém que quer ou tem de mudar de casa – o desenraizamento é já uma inevitabilidade, desejada ou imposta pelas circunstâncias. Daqui decorre uma diferença material: a que perpassa pelo diferente significado da afectação de uma situação de gozo de direitos adquirida e da não criação de uma nova situação de gozo de direitos.
12. Criar um desenraizamento previamente não existente ou apenas não prover a uma necessidade não têm exactamente o mesmo significado. Com efeito, no primeiro caso, ao admitir-se o despejo do inquilino com certas debilidades derivadas da idade e da condição física estar-se-ia a admitir a criação de um dano; no segundo caso, ao admitir-se não se satisfazer a necessidade de habitação do senhorio nas mesmas condições, apenas se omitirá uma providência. Não sendo inadmissível que o conflito de interesses com que o Direito é confrontado se possa resolver por critérios diversos dos consagrados na presente lei, nomeadamente através de critérios adequados à avaliação das concretas situações e relacionados com a capacidade económica dos visados, como acontece noutros sistemas jurídicos (cf. a solução em vários sistemas europeus em Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 3ª ed., 2001, p. 893 e ss.), há, todavia, nesta forma de resolver o conflito de interesses um critério assente numa diferença material das situações conflituantes que não torna arbitrária a solução legal. Por outro lado, e ainda que se invoque que situações haverá em que a mudança não foi resultado de uma mera opção do senhorio, não parece que deva considerar-se irrelevante o facto de este, ao dar de arrendamento o seu imóvel, estar consciente dos condicionalismos de tal opção. Por seu turno, o inquilino, havendo reunido as condições do artigo 107.º, nº 1, alínea a), viu aumentadas as suas expectativas de estabilidade habitacional. Ora, também estes últimos aspectos revelam uma perspectiva que torna justificável a solução legal.
III Decisão
13. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não declarar a inconstitucionalidade da norma do artigo 107º, nº 1, alínea a) do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 329-B/2000, de 22 de Dezembro, enquanto aplicável aos casos de denúncia de contrato de arrendamento por senhorio que careça do local para sua habitação permanente e que preencha também algum dos requisitos enunciados na mesma norma.
Lisboa, 2 de Março de 2004 Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Maria Helena Brito Benjamim Rodrigues Vítor Gomes Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Gil Galvão Carlos Pamplona de Oliveira (Vencido. Entendo que a norma é materialmente inconstitucional por violação do disposto nos artigos 9º alínea d), 18º n.º 2,
63º, n.ºs 2 e 3, 65º 71º e 72º n.º2 da Constituição, pois visa deslocar para o senhorio um ónus que corresponde a um dever que incumbe exclusivamente ao Estado suportar.) Bravo Serra (vencido, de harmonia com a declaração de voto junta) Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, nos termos da declaração junta) Luís Nunes de Almeida
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto à decisão tomada por este Tribunal.
Assim, propugnei pela declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, e por violação do artigo 13º da Lei Fundamental, da norma contida no alínea a) do nº 1 do artº 107º do Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro
(na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 329-B/2000, de 22 de Dezembro), na medida em que não permite o exercício do direito de denúncia do contrato de arrendamento, desde que o arrendatário tenha sessenta e cinco ou mais anos de idade ou se encontre em alguma das demais situações previstas naquele preceito, a um senhorio que, igualmente, tenha sessenta e cinco ou mais anos de idade ou se encontre em alguma das aludidas situações e necessite, absolutamente, para sua habitação permanente, da casa dada de arrendamento
Na verdade, não descortino qualquer motivo válido e justificado que permita, postergando o princípio da igualdade, sustentar que à Constituição é, perante tal princípio, indiferente que o legislador ordinário venha a adoptar uma solução normativa como a em apreço e da qual decorre a dação de um privilégio à situação do inquilino em detrimento da do senhorio, quando, afinal, ambos se encontram nas mesmíssimas condições, estando em causa, nos dois casos, o direito à habitação, sendo que para além desse direito, ainda, relativamente ao senhorio, concorre um outro, qual seja o direito de propriedade.
Neste particular, acompanho as considerações aduzidas pela Ex.ma Conselheira Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza, quer na declaração de voto que apôs ao Acórdão deste Tribunal nº 420/2000, publicado na II Série do Diário da República de 22 de Novembro de 2000, quer as que são carreadas à declaração de voto que a mesma Ex.ma Conselheira produz neste aresto.
Bravo Serra
Declaração de voto
1. Vencida, pelas razões constantes da declaração que juntei ao Acórdão n.º
420/2000, e que transcrevo:
«Votei vencida porque considero que a norma que constitui o objecto do presente recurso, contida na al. a) do nº 1 do artigo 107º do Regime do Arrendamento Urbano, interpretada no sentido de que “a limitação ao direito de denúncia para habitação do senhorio aí contemplada pode ser oposta mesmo ao senhorio de idade igual ou superior à do inquilino”, é inconstitucional por ofensa do princípio da igualdade. Em meu entender, as considerações expendidas no acórdão sobre o princípio da igualdade – que, basicamente, reconduz à ideia de que se há-de dar “tratamento igual às situações essencialmente iguais e tratamento diferente às situações que forem essencialmente diferentes” , bem como a lógica que determinou o julgamento contido no Acórdão nº 151/92, nele citado [“(...) é inteiramente razoável que o legislador – colocado perante um conflito de direitos: de um lado, o direito à habitação do senhorio, fundado num direito real próprio (um direito de propriedade, de compropriedade ou de usufruto), e, por outro lado, o direito à habitação do inquilino (ou um seu direito similar), fundado num contrato de arrendamento, cujo objecto é, justamente, o imóvel que pertence ao senhorio –, não podendo dar satisfação a ambos os direitos, inteiramente razoável é – dizia-se – que sacrifique o direito do inquilino ao direito à habitação do senhorio”] deveriam ter conduzido a um juízo de inconstitucionalidade. Afigura-se-me irrelevante, no contexto dos direitos em jogo, a diferença considerada no acórdão como suficiente para legitimar, do ponto de vista do princípio da igualdade, a prevalência do interesse do inquilino: o facto de o senhorio ter tomado “a iniciativa da mudança”; e não é justificada a afirmação, feita a final, de que é o inquilino que “se apresenta em situação mais carecida do amparo da lei”. No confronto de situações iguais quanto ao ponto essencial em questão – ambos necessitam da casa para viver, ambos têm 65 anos ou mais –, não creio que a circunstância de o senhorio ter tomado a “iniciativa da mudança” deva levar a desconsiderar o seu direito de propriedade, que, pelas razões apontadas no referido Acórdão nº 151/92, devia prevalecer. Note-se, a terminar, que haverá seguramente situações em que o mesmo conflito se pode desenrolar sem que se possa afirmar, sequer, que o senhorio tomou a iniciativa de mudar. Pense-se, por exemplo, nas hipóteses de ele próprio ser arrendatário e cessar o correspondente arrendamento sem que se possa considerar que criou intencionalmente as condições para poder exercer o direito de denúncia
(o contrato foi resolvido ou denunciado, a casa ardeu, etc.).»
2. Acrescento, agora, o seguinte: Em primeiro lugar que, tendo em conta o pedido e a fundamentação adoptada pelo acórdão, a decisão deveria ter sido delimitada de forma a abranger, apenas, as hipóteses em que se verifica, no senhorio e no inquilino, a mesma situação, de entre as que estão previstas na al. a) do n.º 1 do artigo 107º do Regime do Arrendamento Urbano. Em segundo lugar, que não creio que seja adequado aceitar como justificação da posição que fez vencimento que “situações haverá em que a mudança não foi resultado de uma mera opção do senhorio”, ou que este, ao dar o imóvel de arrendamento, está “consciente dos condicionalismos de tal opção”. Quanto à primeira afirmação, não deve esquecer-se que o direito de denúncia só pode ser exercido judicialmente, numa acção em que é o tribunal que tem de declarar que o senhorio se encontra numa situação de necessidade da casa para sua habitação. Relativamente à segunda, não posso deixar de observar que tem sido prática a aplicação dos novos regimes definidos para o arrendamento urbano – e nomeadamente para as condições da denúncia para habitação do senhorio, objecto de inúmeras alterações que têm vindo a atingir arrendamentos em curso, como se sabe – aos contratos anteriormente celebrados, o que revela que, por razões sobejamente conhecidas, se não tem atendido às expectativas que os contraentes teriam à data da celebração do contrato.
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza