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Proc. n.º 355/02
2ª Secção Relator Conselheiro Benjamim Rodrigues
(Consª Fernanda Palma)
Acordam no plenário do Tribunal Constitucional:
A – O relatório
1 A., recorrente no processo acima identificado, em que figura como recorrida a FAZENDA PÚBLICA, dizendo-se inconformada com o acórdão do Tribunal Central Administrativo que, concedendo provimento no recurso interposto pela Fazenda Pública da decisão do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto, julgou improcedente a impugnação judicial que havia deduzido contra as liquidações de IRS dos anos de 1991 e 1992 e de IRC dos anos de 1990, 1991 e
1992, interpôs recurso para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.
2. Nas respectivas alegações, e na parte que releva para o julgamento do presente recurso de constitucionalidade, suscitou as seguintes questões:
a) A norma constante do artigo 6.º, n.º 1, alínea c), do CIRS, na versão anterior à redacção conferida pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 263/92, quando interpretada no sentido de abranger os denominados “juros decorridos”, enquanto ganhos resultantes da alienação de títulos em data anterior ao respectivo vencimento, é inconstitucional por violação dos princípios da legalidade e da tipicidade tributárias consagrados no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição;
b) A norma constante do artigo 1.º do Decreto-Lei nº 263/92, que aditou o n.º 3 ao artigo 6.º do CIRS, quando interpretada no sentido de ser aplicável retroactivamente a situações verificadas antes da sua entrada em vigor, é inconstitucional por violação da proibição de retroactividade fiscal estabelecida no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
3. Nas suas contra-alegações, a Fazenda Pública sustentou então que o recurso era infundado e que não se verificaria qualquer violação dos princípios e normas constitucionais citados, invocando para tanto a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo.
4. Por acórdão de 20 de Março de 2002, a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso jurisdicional e confirmou o acórdão impugnado. No que respeita às inconstitucionalidades alegadas, o aresto remeteu para o acórdão de 14 de Fevereiro de 2002 tirado no processo n.º 26.303, aderindo à argumentação aí aduzida para negar a violação dos princípios da tipicidade e da não retroactividade das leis fiscais.
5. Inconformada, a recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição e 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. A recorrente identificou como normas cuja inconstitucionalidade arguiu os artigos 6.º, n.º 1, alínea c), do CIRS, na redacção anterior à conferida pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º
263/92, quando interpretado no sentido de abranger os denominados “juros decorridos”, enquanto ganhos resultantes da alienação de títulos em data anterior ao respectivo vencimento, por violação dos princípios da legalidade e da tipicidade tributária consagrados no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição e o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 263/92, que aditou o n.º 3 ao artigo 6.º do CIRS, quando interpretado no sentido de ser aplicável retroactivamente a situações verificadas antes da sua entrada em vigor, por violação da proibição de retroactividade fiscal estabelecida no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição. A recorrente indicou que tais questões foram por si suscitadas no âmbito das alegações de recurso jurisdicional para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.
6. No Tribunal Constitucional, a recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo: I. O acórdão do TCA fundamentou a decisão de conceder provimento ao recurso da Fazenda Pública, com base na interpretação de que “o texto do artº 6.° n.° 1 c) CIRS é claro ao atribuir a natureza de rendimentos de capital a todo o aumento de valor dos títulos que derive de juros (..) daí que a norma do n.º 3 do art.º
6.° CIRS, introduzida pelo DL 263/92 de 25.11 tenha natureza interpretativa, pois, nos termos expostos, a nova fonte limita-se a explicitar o sentido normativo da situação jurídica preexistente na fonte anterior expressamente referida, sentido normativo esse que a alínea c) do n.º 1 do art.º 6.° tornava duvidoso”.
II. Os títulos de dívida, seja esta pública ou privada, são títulos de crédito que incorporam crédito de capital e crédito de juros.
III. A compra e venda dos títulos envolve uma cessão daqueles créditos.
IV. A relação de cessão de crédito (entre alienante e adquirente) não se confunde com a relação de crédito (entre emitente e proprietário do título), sendo esta relação de crédito, o objecto da relação de cessão de crédito.
V. Pela compra dos créditos incorporados, incluindo o crédito a juros não vencidos, paga-se um preço.
VI. Este preço não é remuneração de um crédito, mas sim o valor da própria alienação de uma titularidade de direitos.
VII. É financeiramente incorrecto e juridicamente absurdo (os títulos extinguir-se-iam!) afirmar que a compra de títulos representa um reembolso antecipado do capital de um mútuo.
VIII. Representa sim uma “troca de capital” no sentido de que, através da cessão, cedente e cessionário substituem nos seus respectivos patrimónios direitos (créditos e dinheiro) que neles preexistiam.
IX. A melhor prova de que o preço de cessão de direitos de crédito, na parte que excede o valor nominal, reveste a natureza de ganho de capital ou mais-valia
(e não de rendimento de capital) reside no facto de o próprio legislador ter qualificado como mais-valia os ganhos provenientes da alienação de obrigações e outros títulos da dívida (artigo 10°, n° 2 do CIRS), sem distinguir consoante tais obrigações tenham ou não, como acessórios, juros decorridos vincendos.
X. Também a lei considera como mais valia, os ganhos resultantes da “alienação onerosa de partes sociais” (artigo 10°, n° 1, alínea a) do CIRS), não obstante na fixação do valor da alienação possam ser considerados os lucros ou dividendos futuros a que dão direito.
XI. Assim, da mesma forma que, no caso atrás referido o preço de compra de acções não se confunde com o pagamento de dividendos, também no caso de títulos de dívida o preço de compra dos títulos não se pode confundir com o pagamento de juros.
XII. É tecnicamente insustentável definir como rendimento de um bem um negócio jurídico que encerre a alienação do próprio bem que o gerou.
XIII. Assim, essa valorização patrimonial não é susceptível de ser tributada na data em que se verifica a venda do bem, uma vez que esse negócio não gera, em sentido jurídico próprio, um rendimento de capital.
XIV. Daí que tal realidade se não contivesse no âmbito da previsão da norma de incidência tributária dos rendimentos de capital, dado tratar-se de uma pura operação de compra de títulos da dívida pública, antes da data do seu vencimento, logo, definitiva e irreversível.
XV. Os rendimentos resultantes de aplicação de um capital (actos de administração) pressupõem a existência de uma remuneração ou fluxo de riqueza, de carácter regular e de natureza periódica, que resulta da aplicação de um determinado activo que é gerador de uma determinado “fruto” (a remuneração), no sentido de que tal rendimento resulta da manutenção continuada da titularidade do respectivo activo, que é a sua fonte. De tal forma que o activo subsiste na titularidade do seu detentor para além do rendimento gerado.
XVI. Ao invés, os ganhos de mais-valias, não têm um carácter regular nem periódico, mas sim ocasional, não dependem de uma qualquer prévia e específica actividade dirigida à sua obtenção e resultam, não da detenção de um activo, mas da sua alienação (actos de disposição).
XVII. As mais-valias são um acréscimo patrimonial que entra na esfera do titular não como um fruto ou renda de um activo, mas antes como o valor obtido pela própria alienação (quando confrontado com o preço de aquisição) desse activo que, assim, não subsiste na titularidade do seu detentor, ao contrário do que se verifica com os rendimentos de capitais.
XVIII. Os ganhos resultantes das alienações intercalares de títulos de dívida, como valores mobiliários negociáveis, constituem mais-valias a que o Código do IRS fazia corresponder o regime jurídico-fiscal previsto no seu art.° 10°.
XIX. Mesmo que se aceitasse a tese absurda do reembolso antecipado de capital de mútuo, o pressuposto temporal de incidência só seria, nos termos do artigo
8.°, n.° 2, do CIRS, a data do reembolso se não houvesse data estipulada de vencimento da obrigação de juros.
XX. Nos termos dos artigos 6.°, n.° 1, alínea c) e 8.°, n.° 3, alínea a), I), do CIRS apenas eram tributados, a título de rendimento de aplicação de capitais, os juros (não o preço de alienação do respectivo crédito) e no momento do respectivo vencimento.
XXI. Pelo que não podiam ser tributados quaisquer juros auferidos (nomeadamente por transacções intercalares) antes do seu vencimento.
XXII. A interpretação feita pelo julgador do art. 6.° n.º 1 al. c) do CIRS, na medida em que considera compreendidos na sua previsão, a tributação dos juros vencidos ou decorridos, e ao atribuir-lhe este sentido normativo, ofende e viola o princípio da tipicidade tributária consignado no art. 103.º da CRP , logo é inconstitucional.
XXIII. Uma vez que, por força desse princípio, a actividade do intérprete não pode chegar a conclusões interpretativas que façam integrar na norma de incidência tributária realidades que objectiva e inequivocamente não são por elas abrangidas.
XXIV. Ora, defendendo o julgador que os juros vencidos ou decorridos se continham na previsão dessa norma, é conferir à sua interpretação uma dimensão normativa ostensivamente oposta àquela que resultaria da análise e interpretação do seu elemento literal, que consigna, de forma expressa, que o imposto só é devido no momento do vencimento dos juros.
XXV. Tal interpretação, não só ignora as razões que presidiram à dita alteração, patenteadas no seu relatório, como constitui a passagem de um autêntico atestado de ineficiência ao legislador, na medida em que, assim, teria consignado um conjunto de direitos e obrigações (alegadamente) já existentes no ordenamento jurídico-fiscal.
XXVI. A interpretação normativa da previsão do art.º 6.°, n.º 1), alínea c), não podia deixar de se conjugar com o disposto no artigo 8.°, em ordem a encontrar um sentido normativo compatível com o regime definidor do momento em que nasce a obrigação tributária.
XXVII. A este propósito, o acórdão recorrido limita-se a referir que “para a lei, é indiferente o momento em que a remuneração das obrigações é colocada à disposição do portador que transacciona os títulos, salvo para determinar o pressuposto temporal da incidência, ou seja o momento em que nasce a obrigação de imposto (art.º 8.º n.º 1 CIRS)”. Porém, o Tribunal recorrido não retira qualquer conclusão desta sua referência.
XXVIII. Se a lei estabelece que o facto gerador é o momento do vencimento dos juros e se os juros decorridos ocorrem antes do vencimento, não pode haver tributação em momento anterior. Não pode haver imposto antes do momento do seu facto gerador.
XXIX. O elemento temporal do facto tributário reveste verdadeira autonomia normativa, por meio de um preceito legal específico (no caso, o art.º 8.° do CIRS) que integra a estrutura do próprio facto tributário e da consequente incidência do imposto.
XXX. Não sendo constitucionalmente aceitável um resultado interpretativo que contrarie o quadro legal delimitador dos factos tributários, ao arrepio dos elementos de interpretação, pugnando por tributar uma realidade que se encontra claramente fora da previsão (material e temporal) da norma de incidência aplicada.
XXXI. A decisão recorrida procede a uma interpretação incompatível com o princípio da tipicidade tributária previsto no n.° 2 do artigo 103.° da Constituição que estabelece que os «impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os beneficios fiscais e as garantias dos contribuintes».
XXXII. E este quadro normativo só foi alterado com o aditamento ao n.° 3 deste artigo 8.°, pelo Decreto-Lei n° 263/92, de 24 de Novembro, de uma nova alínea, referente, precisamente ao n.° 3 do artigo 6.°, também aditado pelo mesmo diploma.
XXXIII. O ganho resultante da alienação de títulos de dívida, incluindo créditos de juro não vencidos, era tratado como ganho de capital ou mais-valia e encontrava-se excluído de tributação por força da alínea c) do n.° 2 do artigo
10.° do CIRS.
XXXIV. Da ausência de obrigação de imposto decorre inelutavelmente a ausência de obrigação de retenção na fonte.
XXXV. Ainda, todavia, que, por absurdo, se admitisse que se verificavam em geral os pressupostos de incidência, ainda a existência de obrigação de retenção exigiria que os rendimentos não se encontrassem isentos e que o alienante não estivesse isento ou dispensado de retenção na fonte.
XXXVI. Ora, se os títulos envolvidos e os alienantes não se encontram identificados nem nas liquidações nem nos autos, não se pode saber se se verificavam ou não todos os requisitos das pretensas obrigações de retenção na fonte, sendo a consequência jurídico-fiscal de tal facto (pelo menos) a que se encontra prevista no artigo 121.° do CPT .
XXXVII. Acresce que nas transacções em bolsa é impossível identificar alienantes, pelo que uma obrigação de retenção pressuporia disposição legal que a impusesse independentemente da situação subjectiva dos beneficiários dos rendimentos, a qual não existia.
XXXVIII. Contrariamente ao sustentado no acórdão em crise, o regime jurídico consignado no Decreto-Lei n° 263/92, de 24 de Novembro não constitui uma mera explicitação da previsão da norma de incidência dos rendimentos de capitais, porque ele comporta normas de enquadramento e modificativas de um determinado regime jurídico-fiscal, para além da pura e simples interpretação pelo que não consubstancia uma mera lei interpretativa.
XXXIX. Até porque a existência de uma natureza materialmente interpretativa deste diploma seria contrariada pela sua própria estrutura que veio, ex novo:
– aditar um novo n.° 3 ao artigo 8.° do CIRS, a fixar um novo pressuposto temporal de incidência (a data de transmissão dos títulos);
– alterar, no CIRS e no CIRC., os conceitos de mais-valia e valor de realização;
– criar legalmente uma conta-corrente, respeitante às retenções na fonte.
XL. O regime do Decreto-Lei n.° 263/92 ainda pressupõe assim, conforme ele próprio reconhece, um mecanismo de conta-corrente que elimine o efeito dessa multiplicação, o qual não existia legalmente antes da sua entrada em vigor.
XLI. Assim, o Decreto-Lei n.° 263/92 não pode ser interpretativo no que toca aos seus artigos 1.° e 2.° nem, muito menos, quanto ao seu artigo 3.°.
XLII. O que o Decreto-Lei n.° 263/92 fez foi, por fictio juris, transformar o que antes era tratado como mais-valia em rendimento de aplicação de capitais. Sem este diploma não seria possível conceber nem praticar o regime que ele veio verdadeiramente criar (e não apenas interpretar).
XLIII. Atribuir natureza interpretativa a diplomas, cujo sentido, alcance e efeitos não possam, compreensivelmente, ser expectados pelos contribuintes, significa acobertar, por esta via, a autorização de impostos retroactivos que colidem, irremediavelmente, com os mais elementares princípios de legalidade e com o primado da segurança jurídica, um dos valores mais imperativos no Sistema Fiscal de um Estado de Direito.
XLIV. Pelo que, a sua aplicação no acórdão recorrido, para fundamentar o sentido da decisão proferida, é manifestamente inconstitucional, por força dos princípios da legalidade e tipicidade tributárias, consagrados no n.° 2 do artigo 103.°, da Constituição da República Portuguesa.
XLV. Mas, mesmo que se tratasse de um diploma interpretativo, o que só por mera hipótese académica se admite, nunca poderia ele aplicar-se retroactivamente, porque não são admissíveis leis interpretativas que afectem legítimas expectativas dos cidadãos, maxime no domínio fiscal em que, como em matéria penal, a Constituição veda a aplicação retroactiva, conforme tem sido entendimento do Tribunal Constitucional e que já mereceu expresso acolhimento no n.° 3 do artigo 103.° da Lei Fundamental.
XLVI. Deverá, pois, o Tribunal concluir pela violação da proibição da retroactividade em matéria fiscal (artigo 103.°, n.° 3, da Constituição) pela norma contida no artigo 6.°, n.° 1, alínea c), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, na redacção do artigo 1.° do Decreto-Lei n.°
263/92, de 24 de Novembro, enquanto aplicável a situações ocorridas em momento anterior à sua entrada em vigor.
XLVII. Considerando, embora, tais normas como interpretativas, o STA escusa-se a aplicá-las (pelo menos expressa e directamente) a factos ocorridos antes da sua vigência, parecendo, porém, querer obter o mesmo resultado com recurso a uma fundamentação baseada na aplicação das normas dos artºs 1.º e 6.° do CIRS, na sua redacção originária, por forma a contornar, assim, a questão da retroactividade e a censura da sua inconstitucionalidade.
XLVIII. Isto é, embora considere a Lei nova (Dec-Lei n.° 263/92) como lei interpretativa, o julgador opta por aplicar a Lei antiga (art.os 1.º e 6.° do CIRS, na sua redacção originária) por considerar que “Não precisava o intérprete de se socorrer do DL n.º 263/92, de 24/11 para chegar à fixação do sentido que o tribunal elegeu”.
XLIX. Ora, se o intérprete já “não precisava” da Lei nova, questiona-se, então, sobre qual a necessidade do legislador produzir esta nova legislação? Ainda para mais tendo sido, expressamente para o efeito, solicitada (e bem) a respectiva autorização da Assembleia da República!
L. E como se pode afirmar que “Não precisava o intérprete de se socorrer do DL. n.º 263/92, de 24/11 para chegar à fixação do sentido que o tribunal elegeu” se nenhuma norma do CIRS, na lei vigente antes das redacções aditadas pelo Dec.-Lei n.° 263/92, de 24/11, contemplava, sequer, a previsão da alienação dos títulos de dívida como rendimentos de capitais mas sim como mais-valias excluídas de tributação?
LI. Não podem, pois, restar quaisquer dúvidas de que é ilegal e inconstitucional qualquer interpretação de normas de incidência tributária que decida no sentido da sua aplicação a factos que, além de não estarem expressamente tipificados em tais previsões normativas, não existe, sequer, qualquer outro preceito normativo que preveja as indispensáveis regras de apuramento do quantum sujeito a imposto (elemento quantitativo do facto tributário) ou as regras que determinem o momento a partir do qual tais rendimentos ficariam sujeitos a tributação (elemento temporal do facto tributário), nem tão-pouco regras de pagamento ou de retenção na fonte ou, ainda, as que determinam a exigência de uma conta-corrente.
LII. É que todas essas normas, hoje vigentes, só foram introduzidas no Código do IRS pelo Dec-Lei n.° 263/92, de 24/11!
LIII. Não poderia, pois, o douto acórdão do Supremo Tribunal Administrativo ter confirmado a recorrida decisão do Tribunal Central Administrativo. Ao invés, deveria ter concluído pela não aplicação da norma constante do artigo 6.°, n.°
1, alínea c), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, na versão anterior à redacção conferida pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.° 263/92, quando interpretada no sentido de abranger os denominados juros decorridos, enquanto ganhos resultantes da alienação de títulos em data anterior ao respectivo vencimento (inconstitucionalidade normativa), por violação dos princípios da legalidade e da tipicidade previstos no art.° 103.°, n.° 2, da CRP;
LIV. A recorrente suscita e alega a inconstitucionalidade do entendimento consagrado no douto acórdão recorrido, em concreto, quanto à: c) aplicação da norma constante do artigo 6.°, n.° 1, alínea c), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, na versão anterior à redacção conferida pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.° 263/92, interpretada no sentido de abranger os denominados juros decorridos, enquanto ganhos resultantes da alienação de títulos em data anterior ao respectivo vencimento
(inconstitucionalidade normativa), por violação dos princípios da legalidade e da tipicidade previstos no disposto no art.º 103.°, n.° 2, da CRP; d) interpretação da norma constante do artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 263/92, que aditou o n.° 3 àquele artigo 6.° do CIRS, no sentido da possibilidade da sua aplicação retroactiva a situações verificadas antes da sua entrada em vigor, por violação do princípio da não aplicação retroactiva dos impostos previsto no disposto no art.º 103.°, n.° 3, da CRP .
LV. Como se comprovou, o acórdão recorrido, na interpretação que fez das normas do artº 6°, n° 1, alínea c) e do artº 8° n° 1 do CIRS, incorreu em inconstitucionalidade material por violação do disposto no artº 103°, n.ºs 2 e 3 da CRP.
7. Em abono das suas alegações, juntou pareceres dos Doutores José Joaquim Gomes Canotilho e José Casalta Nabais.
8. Por seu turno, a recorrida Fazenda Pública apresentou contra-alegações contendo as conclusões seguintes: a) A questão da tributação como rendimentos de capital dos chamados juros decorridos, na redacção inicial do artigo 6.° do CIRS, foi objecto de entendimento no sentido de dever ser considerada como rendimento de capital.
b) Tal interpretação foi firmada pelas circulares da DGCI, n.os 16/89, de 9 de Novembro, e 17/90, de 27 de Maio.
c) A redacção inicial do preceito suportava o entendimento veiculado pelas circulares 16/89 e 17/90.
d) O conceito de rendimento acréscimo que preside à tributação em IRS perspectivava a tributação dos juros decorridos como possível e esperada.
e) A explicitação da tributação de outros títulos de crédito negociáveis enquanto usados como tais, é meramente interpretativa, como refere o próprio legislador no preâmbulo do DL n.° 263/92, de 24.11.
f) A lei interpretativa integra-se na lei interpretada, nos termos do artigo
13.° do Código Civil,
g) O parâmetro constitucional a ter em conta é o resultante do texto constitucional vigente à data da aplicação da norma questionada nesse sentido.
h) À data da aplicação da lei interpretativa em causa o conceito de irretroactividade a considerar é o consagrado em jurisprudência do Venerando Tribunal Constitucional no sentido “a retroactividade constitucional terá o beneplácito constitucional sempre que razões de interesse geral o reclamem e o encargo para o contribuinte se não mostrar desproporcionado e mais ainda o terá se tal encargo aparecia aos olhos do contribuinte como verosímil ou mesmo como provável”.
B – A fundamentação
As questões que aqui se colocam são as mesmas que foram objecto de tratamento no proc. n.º 399/02, deste Tribunal Constitucional, num caso em tudo paralelo, à excepção de uma questão de inconstitucionalidade relativa à multitributação do rendimento que aí foi também trazida para conhecimento do Tribunal. Não se verificam quaisquer razões para que este Tribunal não siga o mesmo entendimento que aí perfilhou. Por isso, se reproduzirá aqui, na medida do pertinente, a fundamentação ali expendida.
9. Da questão prévia dos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade
Face à estruturação lógica seguida pela recorrente nas suas alegações de recurso, a primeira questão a que importa responder é a de saber se este Tribunal poderá questionar, sob o prisma da constitucionalidade, a interpretação jurídica dos preceitos da lei ordinária que o acórdão recorrido levou a cabo (art.os 1º e 6.º, n.º 1, alínea c) e 91.º do CIRS e 75.º, n.º 1, alínea c) e 6.º do CIRC) que a recorrente defende que viola o princípio da tipicidade, “uma vez que, por força deste princípio, a actividade do intérprete não pode chegar a conclusões interpretativas que façam integrar na norma de incidência tributária realidades que objectiva e inequivocamente não são por ela abrangidas” (Conclusões XXII e XXIII).
A este propósito disse-se naquele processo n.º 399/02 deste Tribunal:
«Nos termos do artigo 280.º, n.º 1, alínea b) da Constituição, e do art.º 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua redacção actual
(doravante LTC), cabe recurso para este Tribunal «das decisões dos tribunais
[...] que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo». Vale isto por dizer que se há-de estar, no caso, perante uma decisão judicial na qual tenha sido resolvida uma questão de inconstitucionalidade, ainda que implicitamente: o recurso de constitucionalidade tem sempre como objecto uma norma ou normas jurídicas efectivamente aplicadas por essa decisão. Para se delimitar o âmbito de admissibilidade desse recurso, torna-se, deste modo, indispensável que se determine o conceito de norma. Como se compreende, dado respeitar a um pressuposto do recurso, a questão tem sido abordada com frequência por este Tribunal. Fê-lo, entre outros, no Acórdão n.º 26/85
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5.º volume, págs. 7 e ss.), no Acórdão n.º
150/86 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7.º volume, tomo I, págs. 287), no Acórdão n.º 80/86 (idem, págs. 79), no Acórdão 156/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º volume, págs. 1057 e no Acórdão n.º 172/93 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24.º volume, págs. 451). Sobre a matéria escreveu-se no referido Acórdão n.º 26/85:
“Assim, o que há-de procurar-se para o efeito do disposto nos artigos 277.º e seguintes da Constituição, é um conceito funcional de «norma», ou seja, um conceito funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização aí instituído e consonante com a sua justificação e sentido.
Pois bem: como a Comissão Constitucional já havia acentuado, o que se tem em vista com este sistema é o controlo dos actos do poder normativo do Estado (lato sensu) - e, em especial, do poder legislativo - ou seja, daqueles actos que contêm uma «regra de conduta» ou «critério de decisão» para os particulares, para a Administração e para os tribunais.
Não são, por conseguinte, todos os actos do poder público os abrangidos pelo sistema de fiscalização da constitucionalidade previsto na Constituição. A ele escapam, por um lado ( e como já a Comissão Constitucional salientara), as decisões judiciais e os actos da Administração sem carácter normativo, ou actos administrativos propriamente ditos; e, por outro lado, «os actos políticos» ou
«actos de governo», em sentido estrito [...]”.
Pois bem. A partir do exposto, pode, desde já, concluir-se que ao Tribunal Constitucional não cabe conhecer das inconstitucionalidades dos actos judiciais propriamente ditos ou, dito de outro modo, de inconstitucionalidades que atinjam directamente decisões judiciais. Mas esta asserção não resolve inteiramente o problema. É que, para usar os termos do Acórdão n.º 674/99 (publicado no DR, II Série, de 25 de Fevereiro de
2000; BMJ 492.º, págs. 62, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 45.º volume, págs. 559), - que constitui um momento marcante na abordagem da matéria, conquanto relativo à problemática paralela do direito penal, - e a propósito de dúvida, aí, colocada por outro recorrente nos termos que o Acórdão assim sintetizou: -“Nesta conformidade, o que o recorrente questiona é o processo interpretativo que permitiu ao tribunal recorrido abranger a reserva mental de incumprimento de astúcia. Tal processo interpretativo efectuado pelo tribunal a quo, por não ter respeitado os limites de interpretação da lei penal decorrentes do princípio da legalidade incriminatória, consignado no art.º 29.º, n.º 1, da Lei Fundamental, designadamente a proibição da analogia e da interpretação extensiva «que ultrapasse o campo semântico natural dos conceitos jurídicos», consequenciaria a inconstitucionalidade da própria norma penal incriminatória, quando objecto de uma tal interpretação, por violação do princípio constitucional” - “resta saber se essa questão se [não] reconduz a uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, isto é, a uma questão que caiba ao Tribunal Constitucional conhecer, no âmbito do recurso de constitucionalidade”. Após descrever exaustivamente o tratamento que foi sendo dado à referida matéria, ao longo do tempo – e donde se infere que o Tribunal enveredou, na maioria dos casos, por uma resposta negativa (Cfr. Acórdão n.º 353/86, publicado in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8.º volume, págs. 571 e ss.; Acórdão nº
634/94, publicado in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29.º volume, págs. 243 e ss.; Acórdão n.º 221/95, publicado in DR, II, Série, de 27 de Junho de 1995; Acórdão n.º 756/95, publicado in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32.º volume, págs. 775 e ss.; Acórdão n.º 682/95, inédito e Acórdão n.º 154/98, também inédito), mas em que também houve pronúncias no sentido positivo, como nos casos dos Acórdãos n.º 141/92, publicado in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21.º volume, págs. 599 e ss., n.º 205/99, publicado in DR, II Série, de 5 de Novembro de 1999, e n.º 285/99, publicado no mesmo jornal oficial, de 21 de Outubro de 1999 - escreveu-se em tal Acórdão n.º 674/99:
«Ora tal questão - por não respeitar a uma inconstitucionalidade normativa, mas antes a uma inconstitucionalidade da própria decisão judicial - excede os poderes de cognição do Tribunal Constitucional, uma vez que, entre nós, não se encontra consagrado o denominado recurso de amparo, designadamente na modalidade de amparo contra decisões jurisdicionais directamente violadoras da Constituição.
De todo o modo, mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente para conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se ter procedido a uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma
«operação equivalente», designadamente a uma interpretação «baseada em raciocínios analógicos» (cfr. declaração de voto do Cons.º Sousa e Brito ao citado Acórdão n.º 634/94, bem como o já mencionado Acórdão n.º 205/99), o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade.
Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar, em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal). E, em boa verdade, por identidade lógica de raciocínio, o Tribunal Constitucional, por um ínvio caminho, teria que se confrontar com a necessidade de sindicar toda a actividade interpretativa das leis a que necessariamente se dedicam os tribunais - designadamente os tribunais supremos de cada uma das respectivas ordens -, uma vez que seria sempre possível atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu «sentido natural» ( e qual é ele em cada caso concreto?), com base em violação do princípio da separação dos poderes, porque mero produto de criação judicial, em contradição com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que um tal interpretação atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República, ainda se poderia detectar cumulativamente, nessa mesma ordem de ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica.
Ora, um tal entendimento - alargando de tal forma o âmbito do Tribunal Constitucional - deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra desenhado na Lei Fundamental, dado que se esvaziaria praticamente de conteúdo a restrição dos recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de inconstitucionalidade normativa».
«10. Mas outros argumentos poderão ser congregados contra a tese que admite a sindicabilidade constitucional do processo de interpretação relativo às normas infra-constitucionais, nos casos em que as mesmas estão sujeitas aos princípios da legalidade penal e da tipicidade fiscal. Em primeiro lugar, trata-se de princípios constitucionais que, na perspectiva aqui analisada, são dirigidos essencialmente ao julgador, como limites da sua actividade de interpretação e aplicação da respectiva lei infra-constitucional. E diz-se essencialmente, e na perspectiva aqui analisada, apenas porque os mesmos princípios não podem deixar de apresentar-se enquanto, também, um indirizzo dirigido ao legislador ordinário pela Lei Fundamental no sentido de o proibir, no exercício da sua discricionariedade normativo-constitutiva, de usar conceitos de significação de tal modo ampla que faça perigar o princípio da segurança jurídica relativo à determinabilidade do conteúdo do seu comando jurídico, não podendo uma tal violação deixar de se reflectir numa inconstitucionalidade da lei infra-constitucional» que, todavia, não é aqui questionada numa tal dimensão. E continuando com o Acórdão que se vem transcrevendo: «O verdadeiro e relevante valor axiológico constitucional de tais princípios cinge-se, assim, em os mesmos constituírem verdadeiros limites à actividade do julgador, no que tange à interpretação e aplicação da lei infra-constitucional.
Finalmente, não é de descurar que a tarefa de interpretação de leis infra-constitucionais se apresenta como constituindo uma arte de aplicação da lei infra-constitucional que rege os seus termos e que é levada a cabo pelos tribunais. A ser assim, ela, enquanto processo, que não resultado, haverá de ser vista enquanto um acto relativo ao julgamento do caso, ainda que ferido ou atingido directamente de inconstitucionalidades e não enquanto uma questão normativa ou uma questão incluída no conceito funcional de norma, acima precisado, para efeitos de sujeição ao sistema constitucional de fiscalização da constitucionalidade do Tribunal Constitucional.
E mesmo se poderá sustentar relativamente à actividade de integração de lacunas».
11. Outra das questões que a recorrente suscita é a da inconstitucionalidade do art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 263/92, de 24 de Novembro, por violação do princípio da retroactividade fiscal, presentemente consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
Como decorre do acórdão recorrido, este não fez aplicação do Decreto-Lei n.º 263/92, de 24 de Novembro, tendo determinado o sentido legislativo aplicado apenas à face dos preceitos originários do CIRS e do CIRC. Assim sendo, verifica-se a falta do pressuposto do recurso interposto ao abrigo do art.º 70.º, n.º 1, alínea b), a que se referem os n.os 1 e 2 do art.º 75º-A, ambos os preceitos da LTC – o da efectiva aplicação das normas de tal diploma cuja inconstitucionalidade se pretende que este Tribunal aprecie.
Por isso não se conhece do objecto do recurso relativo a tal questão.
C – A decisão
12. Destarte, atento tudo o exposto, este Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do recurso.
Custas pela recorrente com taxa de justiça de 8 UC.
Lisboa, 10 de Abril de 2003 Benjamim Rodrigues Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Gil Galvão Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, em parte quanto à decisão de não conhecimento do recurso por não estar em causa uma questão de constitucionalidade normativa, nos termos da declaração junta ao acórdão proferido no processo nº 399/02, com as devidas adaptações). Paulo Mota Pinto (vencido, em parte, nos termos da declaração de voto que junto) José Manuel Cardoso da Costa
Declaração de voto I
Tendo sido a primitiva relatora, votei vencida por discordar da solução dada à questão prévia referente à qualificação como questão de constitucionalidade normativa da invocada violação do princípio da tipicidade fiscal. As razões que me levam a discordar da solução negativa são de três tipos. Em primeiro lugar, uma razão de coerência com a própria jurisprudência do Tribunal Constitucional, manifestada em vários Acórdãos de que fui relatora ou que subscrevi, relativos às causas de interrupção da prescrição em processo criminal após a entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1987 e até à revisão do Código Penal de 1995. Nesses Acórdãos, foi considerado o mesmíssimo problema que agora surge a propósito da violação da tipicidade fiscal, em sede de direito penal. Questionou-se, nos referidos casos, também, se a violação da proibição da analogia em direito penal pela interpretação levada a cabo pela decisão recorrida era uma questão de constitucionalidade normativa. A resposta que o Tribunal Constitucional deu a tal problema foi afirmativa por, naquelas situações, ter surgido uma interpretação de normas penais (com efeito incriminador em sentido amplo, isto é, não extintivo da responsabilidade penal) que se autoqualificava como interpretação actualista e que suscitava a dúvida sobre a violação da proibição de analogia – resultante do artigo 29º, nºs 1, 3 e
4, da Constituição. Assim, no Acórdão nº 205/99, o Tribunal Constitucional iniciou uma linha jurisprudencial segundo a qual, onde existisse com clareza um critério normativo na interpretação de “norma penal jurisprudencial” que, por si só, revelasse autonomia relativamente a uma mera subsunção, nos termos da qual a norma penal positiva pudesse atingir uma nova categoria de casos não compreendidos literalmente na formulação legislativa, estar-se-ia perante uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa relacionada com o princípio da legalidade. Não se confundia, nesse Acórdão, a questão de constitucionalidade normativa consistente na violação do princípio da legalidade com a simples interpretação incorrecta de uma norma legal em que, no entanto, não estivesse em causa uma potencial analogia. Admitia-se, isso sim, que o critério jurisprudencial generalizável seria uma norma para efeitos de controlo de constitucionalidade, mesmo quando apenas estivesse em causa a violação do princípio da legalidade. Acentuava-se que a norma seria o resultado interpretativo e não o próprio modo de interpretação do Direito, embora o confronto entre o resultado interpretativo e o princípio da legalidade tivesse, necessariamente, de averiguar se teria sido utilizada a analogia e, portanto, passar pela análise do processo interpretativo. Esta última verificação não era identificada com o directo controlo de decisão judicial, por apenas ser o meio – inequivocamente legítimo – de verificação de um processo de produção do Direito infraconstitucional, similar ao que ocorre no controlo da constitucionalidade orgânica.
2. A esta razão de coerência, que me levou a votar vencida, acresce uma razão de dogmática jurídica (ou de metodologia jurídica). Com efeito, sendo admitido o controlo da constitucionalidade de meras dimensões ou interpretações normativas desde que esteja em causa o confronto com normas e princípios constitucionais diversos da proibição de analogia, aceitando-se, deste modo, que o critério normativo de decisão de um caso concreto seja “norma” para efeitos do controlo de constitucionalidade, não se compreende por que passa a considerar-se decisão e deixa de ser norma um critério normativo referente a um processo interpretativo que culmina num certo resultado. Na verdade, se os próprios preceitos legais que estabelecem métodos interpretativos não deixam de ser normas (como acontecerá com os artigos 9º e
10º do Código Civil), não se descortina por que razão, num plano lógico-normativo, não serão normas os critérios (apreensíveis com alguma generalidade) que orientaram um concreto processo interpretativo subjacente à decisão judicial, cujo resultado possa ter culminado com uma analogia, numa matéria legal em que a Constituição veda a analogia. Do ponto de vista dos conceitos jurídicos de norma e de dimensão e interpretação normativa, utilizados abundantemente pela jurisprudência constitucional, não há, estruturalmente, qualquer diferença essencial que impeça que os critérios normativos relativos ao processo interpretativo que orientaram o intérprete para alcançar um certo resultado sejam normas e que possam, nessa medida, contrariar os critérios conformadores do processo interpretativo previstos na Constituição em certas matérias – tal como, precisamente, a proibição de analogia no direito penal ou no direito fiscal. Aliás, a distinção entre norma e decisão não é material mas lógica e depende, sobretudo, da perspectiva em que se entende e descreve uma concreta interpretação jurídica. A ideia de uma pura aplicação do Direito distinta da sua interpretação e de uma determinação de critérios normativos corresponde apenas a uma visão diferente do mesmo processo decisório e é duvidosamente aceitável como descrição correcta dos juízos jurídicos decisórios. De todo o modo, se um processo decisório for analisado à luz dos critérios e sub-critérios que levaram o julgador a comparar os abstractos casos legais com o caso concreto realçar-se-á, necessariamente, uma questão de constitucionalidade normativa. Assim, por exemplo, se uma certa norma proibisse que determinadas pessoas usassem chapéus azuis, seria uma questão normativa a que se referisse ao critério que levava a considerar como azul certa cor concreta, mas já não seria uma questão normativa a que invocasse que o juiz teria considerado, erradamente, como azul um chapéu verde – e que apenas pretendesse discutir a existência de um erro do juízo. A existência de uma norma reguladora no caso concreto do processo interpretativo que obrigue a um determinado resultado interpretativo e, portanto, uma norma violadora de proibição constitucional da analogia não é, assim, senão uma perspectiva sobre a decisão (não tem uma verdadeira substancialidade) e, sempre que tal perspectiva se suscite, consistentemente, qualquer tribunal constitucional está, irremediavelmente, confrontado com uma verdadeira norma.
3. Finalmente e de modo decisivo, há uma terceira razão, de natureza jurídico-constitucional, que me leva a entender que a possível violação por uma norma, quer no seu resultado quer no seu processo criativo, da proibição constitucional da analogia é uma questão susceptível de controlo pelo Tribunal Constitucional. Na verdade, a razão metodológica anterior ainda não seria decisiva, quanto a mim, se a Constituição vedasse, de modo claro, ao Tribunal Constitucional o controlo da constitucionalidade nas situações sob análise. E isto, nomeadamente, por se entender que ao Tribunal Constitucional apenas competiria um controlo das normas emitidas pelo legislador em qualquer dimensão interpretativa das mesmas e que o controlo das normas emanadas pelo juiz, ainda que sem autorização constitucional, nunca caberia nas funções do Tribunal Constitucional, mas apenas no controlo constitucional difuso que, em última instância, seria exercido pelo Supremo Tribunal de Justiça. Ora, um tal ponto de vista, a ser coerentemente aplicado, excluiria do controlo de constitucionalidade todas as normas meramente enunciadas pelo julgador, fossem elas analisadas como processo interpretativo ou como resultado interpretativo. Uma tal orientação não é a do Tribunal Constitucional que, em decisões unânimes, sempre entendeu que uma norma meramente jurisprudencial seria objecto de controlo pelo Tribunal. Aliás, o Acórdão nº 674/99 citado pelo presente Acórdão concede que um resultado interpretativo analógico ou de criação jurisprudencial seja uma questão de constitucionalidade normativa em face de normas e princípios constitucionais diversos do princípio de legalidade e da proibição da analogia. Mas, independentemente da coerência com que se desenvolva a perspectiva que se analisa, o certo é que ela é constitucionalmente inaceitável por várias razões: a) Desde logo, por, em conflito com o princípio da separação de poderes, levar a que seja mitigado o controlo de constitucionalidade relativamente a normas jurisprudenciais, privando-o de uma instância extrínseca de controlo – o Tribunal Constitucional, o qual não pertence à organização judicial comum. b) Por outro lado, na perspectiva do acesso à justiça, privar-se-á os recorrentes da possibilidade de aceder ao Tribunal Constitucional em situações de exercício abusivo da função jurisdicional em que estejam em causa um processo produtivo de uma norma e um resultado normativo constitucionalmente vedados. Na verdade, negar-se-á o acesso ao Tribunal Constitucional em situações idênticas
às de uma inconstitucionalidade orgânica, oriundas do poder judicial.
c) Por último, esta solução enfraquece, nitidamente, o princípio do Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição). É precisamente por razões de segurança jurídica e segurança democrática que se impõe tanto a reserva de lei como a proibição de analogia quanto às normas penais positivas e às normas fiscais geradoras da obrigação de imposto. A diferente possibilidade de controlar a constitucionalidade nos casos de violação da reserva de lei e de violação da proibição de analogia escamoteia que a segunda corresponde, no plano da vinculação do juiz, ao sentido da primeira enquanto injunção dirigida ao legislador. Mas tal diferenciação desvaloriza ainda o facto de que a violação da proibição de analogia corresponde, em última análise, também a uma violação da reserva de lei. Em suma, impedir o Tribunal Constitucional, sem qualquer explícita indicação da Constituição, de controlar as violações do princípio da legalidade, na vertente de proibição da analogia, é retirar ao Tribunal Constitucional a função angular da jurisdição constitucional relativamente à violação de princípios e normas conformadores da produção do Direito. Uma tal interpretação pelo Tribunal Constitucional das suas competências nem é imposta pela Constituição nem decorre da natureza das coisas ou da essência da separação dos poderes no Estado de direito democrático e reduz, significativamente, um direito pleno à justiça constitucional. Por todas estas razões, tomaria conhecimento da questão de constitucio-nalidade suscitada.
II
Propugnando o conhecimento do objecto do recurso, concluiria pela inconsti-tucionalidade da norma do artigo 6º, nº 1, alínea c), do C.I.R.S. pelas razões constantes de declaração de voto aposta ao Acórdão nº 244/2000, a qual retrata, quanto ao fundo, a forma como analiso o problema. É pois para essa outra declaração de voto que remeto.
Maria Fernanda Palma
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, por entender que o Tribunal Constitucional devia tomar conhecimento do objecto do recurso. Mais sustentei que, conhecendo do objecto do recurso, o mesmo merecia provimento. Cumpre agora indicar sinteticamente as razões desse entendimento.
1. Quanto à questão do conhecimento do objecto do recurso:
Constitui hoje entendimento pacífico que, sendo embora o sistema português de fiscalização da constitucionalidade a cargo do Tribunal Constitucional um sistema de fiscalização de constitucionalidade normativa, nele cabem, a par da aferição da conformidade constitucional da directa estatuição das disposições legais, também o controlo das interpretações normativas efectuadas pelos tribunais. Quando das disposições legais em causa se podem extrair diferentes proposições normativas ou diferentes interpretações, devem ser tomadas como objecto de verificação de constitucionalidade as normas aplicadas de acordo com o sentido normativo decisivamente aceite e aplicado pelo tribunal recorrido.
Não questionando a correcção deste entendimento, sustenta, porém, a posição que fez vencimento que a “interpretação normativa” já não é passível de constituir objecto do recurso de constitucionalidade quando o fundamento invocado para questionar a sua conformidade constitucional seja o princípio da legalidade ou da tipicidade penal ou fiscal, pois então estar-se-ia a questionar o próprio processo interpretativo seguido pela decisão judicial recorrida, e não o resultado desse processo, passando o Tribunal Constitucional a ter de controlar todas as interpretações normativas arguidas de
“erróneas”. A isto acresceria que aqueles princípios constitucionais são dirigidos ao julgador, que não ao legislador.
Salvo o devido respeito, nenhum desses argumentos procede, radicando a posição maioritária na confusão entre objecto passível de recurso de constitucionalidade e fundamento da inconstitucionalidade invocada.
No caso do presente recurso, o que se questiona é o critério normativo acolhido na decisão recorrida, com carácter de generalidade e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, e não a decisão judicial impugnada, em si mesma considerada, na estrita dimensão de aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto. Trata-se, obviamente, de um objecto idóneo à fiscalização da constitucionalidade de normas a cargo do Tribunal Constitucional.
Deste modo, o que cumpre apurar é se a norma assim judicialmente definida viola, ou não, os invocados princípios constitucionais, isto é, se a mesma ultrapassa o sentido possível das palavras da lei, criando situações imprevisíveis (em termos de razoabilidade) para os destinatários das normas penais ou tributárias em causa e privando estas normas da possibilidade de cumprir a sua função específica de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Não se trata, pois, de admitir recurso de constitucionalidade com base em qualquer pretensa interpretação errónea da lei acolhida na decisão judicial recorrida (posição que ninguém sustenta mas que a posição maioritária escolheu como alvo), mas tão-só de controlar o eventual extravasamento de limites à criação, por via interpretativa ou integrativa, de normas ao arrepio dos princípios constitucionais da legalidade ou da tipicidade penal ou fiscal. Não é realidade diversa da que ocorre, por exemplo, no controlo da inconstitucionalidade orgânica de normas incluídas em decretos-leis do Governo não parlamentarmente autorizados, versando matéria de reserva de competência legislativa da Assembleia da República, em que o juízo de inconstitucionalidade se funda, muitas vezes, no carácter inovatório das soluções acolhidas.
Não faz, assim, sentido distinguir entre processo interpretativo e resultado desse processo e pretender que inconstitucionalidade só ocorreria se o resultado da interpretação fosse, em si mesmo, constitucionalmente intolerável, isto é, que inconstitucionalidade só existiria se, supondo que o legislador houvesse definido directamente a solução jurisdicionalmente alcançada, tal solução se mostrasse, do ponto de vista material, constitucionalmente intolerável. No caso concreto, a violação da Constituição não decorre da pretensa inconstitucionalidade material da tributação dos “juros decorridos” se esta tivesse sido clara e directamente prevista na lei, mas antes da sujeição dos contribuintes a um tributo com base numa interpretação com a qual eles não podiam razoavelmente contar porque insusceptível de ser suportada na letra da lei.
Por último, também não procede o argumento de que os invocados princípios constitucionais são dirigidos ao julgador, que não ao legislador, e, por isso, não seriam idóneos a sustentar uma questão de inconstitucionalidade normativa. Os princípios da legalidade ou da tipicidade penal ou fiscal são dirigidos aos criadores de normas, que pretendam orientar a conduta dos respectivos destinatários, independentemente da sua origem ou fonte. As decisões dos tribunais, enquanto criadoras de normas por via interpretativa ou integrativa, estão sujeitas a esses princípios, cuja alegada violação integra manifestamente uma questão de constitucionalidade normativa, que ao Tribunal Constitucional incumbe apreciar.
2. Tendo votado no sentido do conhecimento do objecto do recurso, votaria igualmente no sentido do provimento do mesmo, pelas razões proficientemente desenvolvidas no parecer de José Casalta Nabais. Mário José de Araújo Torres
Declaração de voto
1.Votei vencido por entender que se deveria ter tomado conhecimento do presente recurso, já que estava em causa a apreciação da constitucionalidade, não de uma decisão judicial, mas de uma norma, tal como aplicada pelo tribunal recorrido. A questão cifra-se em saber se, nos termos dos artigos 280º, n.º 1, alínea b), da Constituição e do artigo 70º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, compete ao Tribunal Constitucional apreciar, no julgamento de recursos de decisões dos tribunais “que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”, a conformidade ao princípio da legalidade (criminal ou, como no presente caso, fiscal) de dimensões interpretativas de normas adoptadas como ratio decidendi pelo tribunal recorrido. Como se dá conta no acórdão, nem sempre a jurisprudência deste Tribunal tem sido uniforme quanto a tal questão. Se nos Acórdãos n.ºs 353/86, 634/94, 756/95,
221/95, (publicados respectivamente nos Acórdãos do Tribunal Constitucional
[ATC], vol. 8º, p. 571, vol. 29º, p. 243, e vol. 32, p. 775, e no Diário da República, II série, de 27 de Junho de 1995), 682/95 e 154/98, ainda inéditos, se recusou tomar conhecimento da questão, já nos Acórdãos n.ºs 141/92, 205/99,
285/99, 122/00 (publicados, respectivamente, em ATC, vol. 21º, p. 599, vol. 43º, pp. 225 e 477, e vol. 46º, p. 449), 317/00, 494/00, 557/00 e 585/00 (inéditos), foi apreciada e decidida a conformidade ao princípio da legalidade criminal de normas enquanto “resultado do processo de interpretação ou de criação normativa”. Entendo que este segundo entendimento é o que devia ter sido seguido pelo Tribunal, nada impondo, ou autorizando, a restrição dos poderes de controlo concentrado da constitucionalidade de forma a subtrair a este a aferição segundo um específico (e tão relevante) parâmetro constitucional.
2.Constitui, na verdade, jurisprudência constante deste Tribunal (vejam-se, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 238/94 e 336/94, o primeiro publicado no Diário da Repúbica, II série, de 28 de Julho de 1994) que a questão de inconstitucionalidade a apreciar no julgamento de recursos de constitucionalidade tanto se pode referir a uma norma, ou a um seu segmento normativo, considerados “em si mesmos”, como apenas a uma sua determinada interpretação. Esta dimensão normativa, correspondente a um sentido interpretativo, é susceptível de impugnação autónoma e de controlo pelo Tribunal Constitucional, enquanto norma aplicada pelo tribunal recorrido, devendo distinguir-se entre a fonte ou preceito (legal ou não) e a norma cuja apreciação
é objecto do recurso de constitucionalidade.
É, aliás, evidente que tem de ser assim, não só por as normas não existirem na prática, enquanto aplicadas em decisões dos tribunais – e é destas que se recorre para o Tribunal Constitucional –, a não ser na interpretação com que foram aplicadas, como porque a solução contrária conduziria, por conseguinte, ao esvaziamento da competência deste Tribunal para julgar recursos de constitucionalidade: a interpretação de uma norma é uma actividade sempre necessária, antes da sua aplicação, e o seu confronto com a Constituição também pressupõe sempre essa interpretação. Ora, a interpretação de uma norma é, no processo metodológico de obtenção da solução do caso – previamente à sua “aplicação” –, uma actividade que incumbe aos tribunais. A intervenção dos órgãos jurisdicionais na determinação da norma que o Tribunal Constitucional aprecia é, pois, iniludível em todos os recursos de constitucionalidade, não só no casos em que está em causa essa norma “em si mesma” – rectius, na sua interpretação declarativa, ou em todas as suas interpretações possíveis –, mas também, e sobretudo, quando apenas é impugnada uma sua específica dimensão interpretativa.
3.Também não é, portanto, correcta a afirmação de que o Tribunal Constitucional, mesmo quando julga recursos de constitucionalidade, apenas controla a actividade do legislador, e não dos tribunais. E isto, mesmo deixando de lado considerações especificamente metodológicas, ou seja, independentemente da posição que se adopte sobre a indispensável convocação de critérios normativos construídos pelo julgador (partindo deste para a determinação da norma, ou desta para o caso) em ligação com o caso concreto – a “norma do caso” da metodologia fikentscheriana
–, ou independentemente da questão da natureza “normativa” do “direito dos juízes” (“Richterrecht”) – sobre estas questões, cfr. António Castanheira Neves, Metodologia jurídica. Problemas fundamentais, Coimbra, 1993, pp. 142 e ss. e Karl Larenz/Claus-Wilhelm Canaris, Methodenlehre der Rechtswissenschaft, 3ª ed., Berlim, 1995, pp. 133 e ss. e 252 e ss.. Este Tribunal tem, na verdade, considerado que lhe compete apreciar também a conformidade constitucional de normas criadas pelo julgador como critério para integração de lacunas, nos termos do artigo 10º, n.º 3, do Código Civil (assim, no acórdão n.º 150/86, in ATC, 7º vol., tomo I, p. 287), deixando claro que a
“autoria” da norma pelo tribunal recorrido ou pelo legislador não é decisiva para o objecto do recurso de constitucionalidade. A ideia de que o Tribunal Constitucional apenas controla a actividade do legislador – subjacente, em última instância, ao afastamento do parâmetro do princípio da legalidade, que se dirigiria ao tribunal e não àquele legislador – será procedente em sistemas que apenas conhecem um controlo abstracto da constitucionalidade de normas, mas não corresponde, seguramente, ao figurino constitucional e legal das competências do Tribunal Constitucional português, que inclui o julgamento de recursos de decisões dos tribunais. Não deve, na verdade, confundir-se a fiscalização da constitucionalidade da actividade do legislador com o controlo da constitucionalidade de normas, pois este não se reduz àquele. Antes pelo contrário, pode mesmo dizer-se que o controlo da conformidade constitucional de normas, tal como aplicadas pelos tribunais, é o correlato necessário do controlo da actividade de produção normativa do legislador, pois apenas os órgãos jurisdicionais podem conferir às normas pleno conteúdo, determinando o seu sentido e criando, portanto, law in action, em contraposição à law in the books. É pois, perfeitamente coerente que o nosso sistema de controlo da constitucionalidade, ao prever recursos de decisões dos tribunais que apliquem normas, atribua ao Tribunal Constitucional o controlo concentrado da constitucionalidade de normas tal como são aplicadas na prática pelos tribunais, nos casos concretos, e não apenas “nos livros”, desligado desses casos. Aliás, se não fosse assim, a repartição da competência para fiscalização da constitucionalidade entre o Tribunal Constitucional e os restantes tribunais ficaria dependente dos acasos da técnica legislativa – da existência, ou não, de uma norma aprovada pelo legislador que fosse de “aplicar” no caso concreto, ou da sua criação ou convocação por analogia, para preenchimento de uma lacuna.
4.Pode, pois, assentar-se em que o Tribunal Constitucional é em geral competente para apreciar a constitucionalidade de interpretações normativas – ou normas em determinada interpretação –, e em que, no julgamento de recursos de constitucionalidade, com essa apreciação não controla apenas a actividade do legislador, mas também dos tribunais. O acórdão de que discordei, tal como vários outros que perfilham a posição de que ao Tribunal Constitucional não compete conhecer do respeito da norma pelo princípio da legalidade, baseia-se, porém, na consideração de que, neste controlo, estariam em causa apenas
“inconstitucionalidades dos actos judiciais propriamente ditos ou, dito de outro modo, de inconstitucionalidades que atinjam directamente decisões judiciais.” Efectivamente, ao Tribunal Constitucional não compete controlar a conformidade à Constituição das decisões jurisdicionais – aqui sim – “em si mesmas”, mas apenas das normas que constituíram sua ratio decidendi. E é evidente que, por várias razões – entre as quais avulta o reconhecimento metodológico de que a interpretação e a determinação da “norma aplicável” são momentos indissociáveis da realização do direito concreta e problemático-decisória –, nem sempre é fácil apurar como deve traçar-se a fronteira entre norma e decisão, tendo a consciência dessas dificuldades ficado definitivamente adquirida, no plano metodológico, com a superação do esquema subsuntivo característico do clássico
“método jurídico”. Não pode assim, o Tribunal Constitucional sindicar o acto de julgamento, na singularidade do caso concreto, ou a decisão judicial. A qualificação dos factos e a conjugação entre o facto e o(s) critério(s) normativo(s) mobilizado(s) para a decisão escapam ao controlo de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional. E também o processo de concretização de certas cláusulas gerais na decisão judicial se afigura
“destituído do sentido normativo com independência da sua decisão concretizadora necessário a poder constituir objecto de sindicância por parte deste Tribunal” – assim, para o “juízo aplicativo do critério sindicante do abuso do direito concretizado numa decisão judicial em face de um particular conjunto concreto de circunstâncias (e para a concepção dominante segundo um determinado critério valorativo)”, o Acórdão n.º 655/99, publicado in ATC, vol. 45º, p. 559. Em todos estes casos, está em questão apenas a decisão judicial, e não o critério normativo por ela convocado para resolver o caso concreto.
5.Diversamente, porém, um determinado sentido de uma norma, obtido por interpretação – isto é, uma norma, numa certa interpretação – pode e deve ter um tratamento autónomo da decisão judicial, como objecto de fiscalização de constitucionalidade à luz do princípio da legalidade. Com efeito, não se vê, desde logo, como pode qualificar-se diversamente o objecto a apreciar pelo Tribunal Constitucional em recurso de constitucionalidade – como “norma” ou como “decisão” (ou “processo de interpretação” ou equivalente) –, ou, sequer, o tipo de questão de constitucionalidade em causa (como “normativa” ou não), consoante o parâmetro constitucional à luz do qual ele é controlado. Ou aquele objecto é a apreciação de uma norma, ou não é – mas não pode não o ser à luz do princípio da legalidade e já o ser para efeitos de aferição segundo um qualquer outro princípio ou norma constitucional. Ora, a posição seguida no acórdão não pretende, aliás, excluir do domínio da fiscalização concentrada de constitucionalidade efectuada pelo Tribunal Constitucional o controlo de resultados normativos de interpretação por razões atinentes ao objecto a apreciar, mas, antes, por motivos relativos ao fundamento constitucional invocado: o princípio da legalidade. No entanto, diversamente do que acontece noutros sistemas, o nosso sistema de controlo de constitucionalidade não conhece limitações segundo o parâmetro constitucional, mas, apenas, relativas ao seu objecto. Desde que se trate efectivamente de normas, ainda que apenas numa certa interpretação aplicada pelo tribunal recorrido, não pode excluir-se a sua apreciação por estar em causa o seu confronto com um específico fundamento dessa inconstitucionalidade. Por outro lado, ainda que o princípio da legalidade incida também sobre o processo de obtenção do critério normativo, o resultado interpretativo pode, e deve, ser considerado autonomamente, e também em relação a ele se põe o problema do respeito pelo princípio da legalidade. Faz, com efeito, todo o sentido perguntar também se a norma – e não a decisão –, numa sua interpretação, vista enquanto resultado da actividade judicial interpretativa, respeita esse princípio, e logo esta circunstância deixa ver que se não está perante um mero controlo da decisão judicial (ou do processo de obtenção da decisão), mas antes perante um controlo de normas, no sentido com que estas são (e, como se disse, têm de ser) consideradas como objecto de apreciação no recurso de constitucionalidade. Está em causa determinado resultado interpretativo que é uma norma, por vezes formulada, aliás, como elevada abstracção do caso concreto e discutida, aceite ou rejeitada em controvérsias doutrinais e jurisprudenciais. Como se salienta na declaração de voto aposta pelo Cons. Sousa e Brito no citado Acórdão n.º 674/99, para o efeito do controlo de constitucionalidade da dimensão normativa em causa, é “irrelevante se esse resultado interpretativo foi obtido por interpretação extensiva ou por integração por meio de analogia ou havendo integração de lacuna por qualquer outro meio de preenchimento desta”, pois essa
é “questão de mera construção jurídica no sentido de que não tem consequências práticas” (a autonomização do resultado interpretativo em relação ao processo de interpretação foi, aliás, também salientada, por exemplo, nos citados Acórdãos n.ºs 205/99, 285/99 e 122/00). Não procede, por outro lado, o argumento de que, se o legislador formulasse directamente uma norma com o conteúdo interpretativamente atribuído pelo tribunal a quo, tal norma não violaria a Constituição. Tal objecção parte do princípio de que o controlo de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional se dirige, não aos tribunais, e antes apenas ao legislador, e esquece que o controlo do resultado interpretativo à luz do princípio da legalidade se pode fazer com independência do controlo do processo de obtenção da decisão judicial, pelo mero confronto entre a norma impugnada e o círculo dos “sentidos possíveis” da lei, para apurar se aquela ultrapassa o limite da letra (a “Wortsinngrenze”). Nem pode, por último, considerar-se decisivo o argumento de que a possibilidade de controlo de normas à luz do princípio da legalidade levaria, no limite, a que o Tribunal Constitucional controlasse, sempre, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), ou mesmo de todas as normas, já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal) ou do princípio da separação de poderes. Nem tal posição é defendida com esta largueza por ninguém, nem pode dizer-se que todas as interpretações erradas da lei violam aqueles princípios. E, seja como for, bem mais grave é, a meu ver, que, com base em tal argumento verdadeiramente ad terrorem, o Tribunal Constitucional abdique de controlar normas, no sentido com que estas têm sido consideradas na sua jurisprudência constante, sempre que – e porque – é invocado um específico, e tão fundamental, parâmetro constitucional, quando é claro que lhe compete apreciar a sua conformidade constitucional tal como, e no sentido com que, são aplicadas pelos tribunais.
6.Diversamente da posição que fez vencimento, teria, pois, tomado conhecimento do presente recurso, passando a indagar se a norma em causa – o artigo 6°, n.°
1, alínea c), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, na versão anterior ao Decreto-Lei n.° 263/92, de 25 de Novembro, interpretado no sentido de abranger os chamados “juros decorridos”, enquanto ganhos resultantes da alienação de títulos em data anterior ao respectivo vencimento – era inconstitucional, por violação do princípio da legalidade tributária.
Paulo Mota Pinto