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Proc. nº 327/2002
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, em que figura como recorrente o Ministério Público e como recorridas A e B, é submetida à apreciação do Tribunal Constitucional a questão da conformidade à Constituição das normas dos artigos 42º e 43º do Regulamento da Tabela de Licenças e Taxas da Câmara Municipal de Sintra, aprovado em 20 de Outubro de 1989, cuja aplicação havia sido recusada pelo tribunal recorrido, com os seguintes fundamentos: Pretendem as impugnantes que seja anulado o acto tributário de liquidação da quantia de Esc. 634.310$00, o qual foi notificado para pagamento à 1ª, sendo referente a Taxas relativas a Instalações Abastecedoras de Carburantes, em conformidade com o estipulado no, art°. 42, nº 5, da Tabela de Taxas, em vigor no Município de Sintra, e tendo como fundamentô 'o facto de a 1ª. impugnante ter um posto de abastecimento de combustíveis situado no Concelho de Sintra, cuja instalação funciona na via pública, pelo que, em seu entender, a taxa agora exigida constitui um verdadeiro imposto, uma vez que teve um aumento de 900%, o qual reputa de desproporcionado, sendo ainda que tais taxas não foram determinadas pelo critério da área ocupada de domínio público mas, antes, pelo número de bombas de combustíveis ali instaladas. Deve, portanto, analisar-se a questão de saber se a denominada taxa relativa a instalação abastecedora de carburantes líquidos, ar e água, enquanto receita da C.M.Sintra, deve qualificar-se juridicamente como taxa ou imposto.
(...) Em conclusão: Quer os impostos, quer as taxas, possuem a característica da coactividade ou da imposição coactiva; o que nuclearmente os diferencia é a unilateralidade do imposto, face à bilateralidade ou carácter sinalagmático da taxa. No caso 'sub judice', será que nos encontramos perante uma verdadeira taxa ou antes perante um imposto?
(...) Uma vez que está a ser utilizado um bem do domínio público parece ser de aceitar que estamos perante uma taxa de ocupação, como parece resultar do que alega a Câmara Municipal de Sintra, remetendo para o art°. 11 , da Lei 1/87, de 6/1. De facto, existe a prestação específica por parte daquela autarquia, que é a cedência do espaço público, para os fins da impugnante. E, não se diga que o facto gerador dessa taxa estaria na licença de funcionamento do posto de abastecimento de combustíveis. Sendo certo que, para que um posto de abastecimento, com as características dos autos, pudesse funcionar, necessitou previamente de uma licença de funcionamento, para a qual e para ser concedida, foram necessários exames, vistorias aos equipamentos, instalações, plantas, etc., a remoção de limitações legais não consubstancia a existência de qualquer sinalagma que é próprio das taxas. No caso dos autos, o que está em causa não é a atribuição de uma licença a qual teria cabimento, à primeira vista no art°. 11, al. o), da Lei n° 1/87 de
6/1 - mas antes uma taxa sobre instalações abastecedoras de carburantes, que prosseguem um determinado objectivo, o qual é totalmente realizado em espaço público - sendo certo que a impugnante não provou que a autorização de instalação no espaço público afastou expressamente a possibilidade de liquidação de taxas por tal ocupação. Concluindo, parece-nos, perante o que ficou dito, existir fundamento genérico para a taxa lançada pelo Município de Sintra e resta-nos apreciar se o seu lançamento, em concreto, está eivado de ilegalidades que comprometam a sua validade. Tais ilegalidades podem ser, ou a alegada desproporcionalidade que transformaria a taxa em imposto ou, por outro lado, a sua liquidação por atenção a critérios que objectivamente deformem o próprio conceito de taxa ou estabeleçam uma invasão da esfera da actividade das impugnantes em clara afronta ao princípio da liberdade individual e empresarial. Quanto à apontada desproporcionalidade do aumento da taxa, em face do probatório, faltam elementos que nos conduzam a julgá-la verificada. Desde logo, nem sequer se provou nos autos que no ano anterior à entrada em vigor da tabela de taxas de 02/12/1989, as impugnantes apenas pagavam de taxa por cada bomba de combustíveis, a quantia de Esc. 30.000$00. E, além disso, sempre seria necessário verificar há quanto tempo não eram actualizadas as taxas, antes de
02/12/1989, para aferir se o alegado aumento de Esc. 30.000$00 para Esc.
300.000$00, implica a falada desproporcionalidade transformadora daquilo que devia ser uma taxa num imposto. Por isso, e por aqui, também não pode proceder a impugnação. Resta analisar em que medida o critério utilizado para a liquidação impugnada, implica ou não a ilegalidade da mesma. Dito de outro modo: o facto de a edilidade taxar cada bomba de carburantes em Esc. 300.000$00 a partir da mencionada data (valor este actualizável segundo o índice anual de preços no consumidor publicado pelo Instituto Nacional de Estatística) pode gerar a ilegalidade da liquidação impugnada? A nossa resposta é afirmativa. Com efeito, ao utilizar este critério (já apelidado de critério da mangueira), a entidade liquidadora esquece e despreza totalmente o carácter sinalagmático da taxa não se importando com a medida da sua contraprestação que é a do fornecimento de um espaço público para exercício da actividade das impugnantes e que objectivamente tem um determinado número de metros quadrados (sendo a cedência deste número de metros quadrados a sua contraprestação na relação e face à qual tem direito à exigência de uma taxa). Assim, quando enveredou pelo critério de taxar cada bomba de carburantes instalada em espaço público invadiu uma esfera privada de actividade empresarial, o que não é admissível, pois às impugnantes compete explorar o melhor possível e como entender o espaço que lhe foi cedido, estando os seus direitos de livre iniciativa privada salvaguardados pelas normas constitucionais e comunitárias (vide art°. 61, nº.1, da C.R.P.). Que saibamos, a actividade das empresas é taxada, designadamente em IRC, e por isso o critério seguido não pode ser aceite porque incompatível com a natureza da taxa, o que determina a existência de vícios na liquidação que vem impugnada, a qual classificamos de verdadeiro imposto, existindo assim ilegalidade por desrespeito das regras de reserva de lei formal em matéria de criação de impostos e por atenção ao teor dos art°s. 103, nºs. 2 e 3, e 165, nº.1, al. i), da C.R.P. Concluindo, o Município de Sintra não respeitou a velha máxima do direito fiscal 'nullum tributum sine lege', ao utilizar a autorização legislativa prevista no art°. 39, nº. 2, do dec.lei. 100/84, de 29/3, com um sentido e extensão diferentes dos permitidos pela lei. Não se verificando a caracterização como taxa do encargo sob apreciação, o mesmo constituirá um imposto, ou contribuição especial a merecer o mesmo tratamento, pelo que o regulamento que o criou padece de inconstitucionalidade por violação do art°. 168, nº. 1, al. i), da C.R.P., na versão da Lei 1/89, de 8/7, sendo ilegal a liquidação que assentou na norma dada como inconstitucional (cfr. Ac. do T. Constitucional, 29.11.º0, D.R., II série, 23/1/2001, pág.1462 e seg.; ac. S.T.A. 2ª Secção, 3/10/2001, rec. 26018; ac.T.C.A. –2ª Secção, 21/11/2000, proc.
972/98). Atento o referido, sem necessidade de mais amplas considerações, é
óbvia a conclusão de que se deve considerar procedente a presente impugnação, com base no fundamento acabado de apreciar, decisão a que se procederá na parte dispositiva da presente sentença.
O Ministério Público, junto do Tribunal Constitucional, apresentou alegações que concluiu nos seguintes termos:
1° - A concepção constitucional de 'taxa' pressupõe - face ao entendimento da jurisprudência constitucional - a necessidade de existência de uma relação sinalagmática, a desnecessidade de uma exacta equivalência económica, a aferição do respectivo montante em função não só do custo, mas também do grau de utilidade prestada, e a exigência de uma não manifesta desproporcional idade na sua fixação.
2° - A taxa devida pela utilização do espaço público municipal, através da instalação, na via pública, de uma estação de abastecimento de combustíveis tem natureza sinalagmática, já que é devida em função de uma utilização individualizável de um bem do domínio público.
3° - A circunstância de na fixação do montante de tal taxa se ponderar grau de utilidade económica que, para o utente, decorre do consentimento na utilização de tal espaço público, inferido do número de bombas efectivamente instaladas, não traduz o apelo a um critério ilegítimo de fixação da taxa, envolvendo apenas a ponderação da utilidade económica alcançada com a utilização de um bem público.
4° - Termos em que deverá proceder o presente recurso.
Por seu turno, as recorridas contra-alegaram, concluindo o seguinte:
1. O tributo dos autos foi alterado, de um ano para o outro, e sem qualquer justificação em mais de 900%!
2. Tratou-se de um aumento de tal modo escandaloso e infundado que suscitou da parte de um vereador da Câmara Municipal de Sintra o seguinte comentário constante de acta da CMS da sessão de câmara em que foi aprovado o aumento... : Não consegui encontrar critério justificativo dos aumentos, penso que foi um pouco a olho por cento. . .
3. Por esse motivo e não só, as ora Recorridas entendem desde logo que as taxas em causa violam o princípio da proporcionalidade, da boa fé e da justiça, tal como começou por referir no início do processo, e mais do que isso, as Recorridas consideram que a desproporção entre o que pagam e aquilo que recebem
é de tal ordem, que se deve considerar que não existe qualquer sinalagma no caso, devendo, por esse motivo o tributo impugnado ser considerado um verdadeiro imposto inconstitucional por lhe faltar credencial parlamentar (cfr. disposto no artigo 168.º n.º 1 al. i) da Constituição da República Portuguesa (versão da Lei
1/89, de 8 de Julho).
4. Por isso mesmo se pede a final que se declarem inconstitucionais e por isso inaplicáveis às Recorridas as normas constantes do capítulo IX da Tabela de Taxas e Licenças da CMS que vigoraram nos anos de 1989 a 1998, mais concretamente as normas constantes dos artigos 42.º n.ºs 1 a 4 e 43.º n.ºs 1 a 4 da Tabela de Licenças e de Taxas da CMS, aprovada em 20 de Outubro de 1989 e em vigor desde 2 de Dezembro desse ano, por violação do artigo 165.º n.º 1 al. i) da Constituição da República Portuguesa (168.º na versão da lei 1/89, de 8 de Julho), ou quando assim não se entenda por violação dos artigos 18.º n.º 2 e
266.º n.º 2 da CRP .
5. O Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Lisboa, uma vez analisada a posição das então impugantes recusou, e bem, aplicar as normas constantes dos artigos
42.º e 43.º do Regulamento da Tabela de Licenças e Taxas da Câmara Municipal de Sintra, por entender que os critérios de liquidação das taxas - atendendo ao n.º de bombas de abastecimento esquecem e desprezam totalmente o carácter sinalagmático das taxas não se importando com a medida da sua contraprestação que é a de um espaço público para exercício da actividade das impugnantes e que objectivamente tem um determinado n.º de metros quadrados.
6. Assim, e ainda de acordo com a douta sentença recorrida, quando a CMS enveredou pelo critério de taxar cada bomba de carburantes instalada em espaço público - o que já sucedia antes de 1989 - invadiu uma esfera privada de actividade empresarial, o que não é admissível por violar o disposto no artigo
61.º n.º 1 da CRP .
7. Ora, perante a ausência de sinalagma - falta de correspondência entre a prestação e a contraprestação, entendeu o M.º Juiz a quo que os tributos em questão ofendiam o disposto nos artigos 103.º, n.º 2 e 3 e 165, n.º 1 al. i) da CRP .
8. Relativamente aos aumentos desmesurados e desproporção manifesta alegada pelas Recorridas o M.º Juiz a quo deu como provado, e bem, que as impugantes ocupavam em 1996 a mesma àrea que ocupavam em 1988 com o posto de abastecimento de combustíveis que originou a liquidação, não tendo havido qualquer aumento de contrapartidas da CMS.
9. Porém, e salvo o devido respeito, não fazendo distinção entre o que seja matéria de direito e matéria de facto, julgou não provado que até 1988 as recorridas pagassem apenas Esc. 30.000$00 por cada bomba de combustível.
10. Ora, salvo o devido respeito, aferir o quanto se pagava em 1988 por forma a ajuizar da desproporção de um aumento de taxas passa por comparar as tabelas e regulamentos camarários que as aprovam. Trata-se de uma constatação e de um juízo de direito e não de facto.
11. Os regulamentos - incluindo o de 1988 - além de publicados em sede própria, encontram-se juntos aos autos.
12. Decorre do exposto que mantendo-se a prestação da Câmara Municipal de Sintra inalterada desde antes de 1989, nunca faltaram elementos para aferir se há ou não desproporção.
13. A mais relevante característica distintiva das taxas em face do imposto não está na utilidade para o particular, nem na voluntariedade, nem na solicitação dos serviços pelos particulares, mas apenas no carácter bilateral
(sinalagmático) da prestacão devida.
14. Do ponto de vista económico, só casualmente se verificará uma equivalência precisa entre prestação e contra prestação, entre o quantitativo da taxa e o custo da actividade pública, ou o benefício auferido pelo particular .
15. Não obstante o referido, a respeito de equivalência - económica ou jurídica
- importa realçar que o elemento comparativo económico serve hoje como indicador de segurança dos particulares contra eventuais abusos nos valores cobrados pelas taxas.
16. Com efeito, quer a doutrina quer sobretudo a jurisprudência têm considerado que não há taxa mas sim imposto, quando os montantes cobrados a título de taxas sejam exageradamente elevados, isto é, quando não haja um mínimo de proporcionalidade.
17. Nesses casos já não se pode dizer que haja qualquer espécie de equivalência jurídica mas sim fiscal idade oculta.
18. Deve pois aceitar-se sem reservas que o tributo em questão nos autos é um imposto e não uma taxa e, nessa medida, inconstitucional.
19. No caso dos autos verifica-se um aumento assaz superior ao da inflação sem que se vislumbre como contra partida de tal aumento qualquer prestação pública, ou, pelo mesmo de qualquer prestação pública distinta da que vinha sendo prestada já.
20. Ainda que do ponto de vista dogmático não se entenda que um aumento intolerável descaracteriza a taxa enquanto tal, transmutando-a em imposto, o que apenas por dever de patrocínio se admite, o que não se pode aceitar é que, se assim for, não se afira nos presentes autos se o tributo cuja inconstitucionalidade vem suscitada é pelo menos violador do princípio da proporcionalidade constitucionalmente consagrado nos artigos 18.º n.º 2 e 266.º n.º 2 da CRP alegando-se que não resultam dos autos elementos que o permitam fazer, bastando para o efeito comparar as tabelas de taxas para constatar que, de 1988 para 1994, pela ocupação da mesma exacta área de domínio público, as recorridas viram aumentar a taxa a pagar em mais de 900%, sem que tenha havido qualquer justificação para tal aumento.
21. Assim, e caso não se entenda que o tributo é de considerar um verdadeiro imposto pelos motivos supra expostos, há pelo menos que concluir com base no que adiante se dirá, que o mesmo viola frontalmente o princípio da proporcionalidade e, além deste, os princípios da igualdade, da justiça, e da boa fé.
22. No caso dos autos é dado incontroverso que a taxa em questão, prevista no artigo 42.º da tabela de taxas da CMS tem por objecto posto de abastecimento de combustíveis integralmente instalado na via pública.
23. Ora, a licença de uso privativo do domínio público constitui um título de fruição de propriedade pública, constitutivo de mera faculdade de ocupação.
24. Através do licenciamento em causa a Administração potencia a extracção de potencialidades acessórias nos bens da sua dominialidade beneficiando por esta via a prossecução do interesse público do abastecimento de carburantes às populações dando assim satisfação concreta às necessidades colectivas destas.
25. O exercício dos poderes de uso privativo que derivam do direito subjectivo público de utilização do domínio público tem normalmente como contrapartida o pagamento de uma taxa pelo particular autorizado.
26. Ora, aceite que os bens de domínio público são meios de acção administrativa submetidos à disciplina do direito público, as decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar (cfr. artigo 5.º do CPA).
27.Como corolários deste princípio, e no confronto com a esfera jurídica do particular, a actuação administrativa deve apresentar-se: Adequada, ou seja, apta à prossecução do interesse público visado; Necessária, ou seja necessária ou exigível por qualquer outro meio não satisfazer o interesse público visado; e Proporcional (em sentido estrito, ou seja proporcional e justa em relação ao beneficio alcançado para o interesse público: proporcionaliqade custo-benefício;
28. Este princípio da proporcionalidade tem assento constitucional, como se disse já nos artigos 18.º n.º 2 e 266.º n.º 2 da CRP, sendo por este último normativo erigido em princípio materialmente constitutivo e conformativo de toda a Administração Pública.
29. As características das taxas actuam, pois, como limites internos ao poder tributário dos municípios.
30. No caso dos autos, está em causa um posto que para funcionar em pleno ocupa a via pública, pelo que poderia aceitar-se que a taxa em causa configuraria uma taxa de ocupação face à circunstância de ocorrer a essa prestação específica por parte da CMS, ou seja, por ocorrer uma cedência de espaço público para os fins prosseguidos pelas Recorridas.
31. Ora, em termos do citado princípio da proporcionalidade para além de resultar claro nos autos que no ano anterior ao da entrada em vigor da tabela de taxas as Recorridas apenas tinham que pagar 30.000 escudos por bomba a título de taxa e passaram, nos termos da tabela, a pagar 300.000 escudos, o que por si só implica uma desproporção manifesta é a mera circunstância de a edilidade taxar cada bomba de carburante em 300.000$00 a partir de 89, valor actualizável segundo o índice anual de preços no consumidor publicado pelo INE, que gera ilegalidade da norma impugnada pois que ao utilizar este critério, a norma onde se prevê a taxa esquece e despreza em absoluto o caracter sinalagmático da taxa, pois, na verdade, ignora a respectiva contraprestação consistente no fornecimento de um espaço público para exercício da actividade das Recorrentes e que objectivamente tem um determinado número de metros quadrados (sendo a cedência deste número de metros quadrados a sua contraprestação na relação pela qual tem direito à exigência da taxa).
32. Este critério, assente numa pura manifestação de capacidade contributiva, ofende claramente o princípio da proporcionalidade e evidencia a ausência de sinalagma no tributo previsto na norma impugnada.
33. Mais: o critério de aplicação da taxa consoante o número de bombas de carburante colide mesmo com o próprio direito de livre iniciativa salvaguardado no artigo 61.º n.º da CRP.
34. Acresce ainda referir que, no exercício da sua actividade, em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se seguindo as regras da boa fé (artigo 6.º A do CPA), devendo a Administração abster-se de comportamentos em contradição com o comportamento anterior quando este seja apto a criar a convicção no destinatário dos actos da administração de que não se lhe seguirá uma actuação contraditória, gerando também por esse motivo a confiança de que a Administração irá prosseguir na mesma linha de actuação.
35. Confia-se a digna tutela e protecção legal pela proibição de venire contra factum proprium, de contradição directa entre a situação jurídica originada pelo factum proprium praticado e o comportamento subsequente, em negação da actuação anterior, como ocorreu no caso dos autos, pelo facto de a CMS se ter abstido de exigir o pagamento das taxas dos anos de 1989 a 1994, como resulta dos autos, e
é do conhecimento desse Tribunal Constitucional, criando por isso a expectativa jurídica de que os valores em causa iriam ser revistos, tanto mais que até se constituiu uma comissão para estudar e apresentar um relatório sobre a matéria com proposta de novas tabelas.
36. Por fim, o caso dos autos configura ainda uma violação do princípio da igualdade pois que nos demais casos de taxas devidas por ocupação do domínio público camarário não se utilizam critérios que apelam a manifestações de capacidade contributiva, como é o número de bombas de abastecimento, mas sim, como é mais adequado, a metros quadrados, ou seja, à contrapartida efectivamente prestada pelas autoridades locais. É o que sucede, designadamente, com as taxas pagas pela obtenção das licenças de ocupação da via pública para apoio a obras.
37. Tributar a utilização de áreas do domínio público com base no n.º de bombas e não com base no n.º de metros quadrados ocupados é tão absurdo como tributar a ocupação da via pública para apoio a obras com base no número de homens e/ou máquinas a trabalhar em obra, ou com base na volumetria da obra em particular.
38. Nas suas doutas alegações, o EMMP reconhece que a resolução do caso em apreço passa pela destrinça juridico-constitucional entre taxa e imposto, o que desde logo merece uma crítica pois que, salvo melhor opinião, se bem que as recorridas entendam igualmente que tal destrinça é importante não é a única operação jurídica a fazer.
39. Com efeito, ainda que o tributo em causa seja de qualificar como taxa e não como imposto, sempre se terá que aferir se sendo taxa a mesma viola ou não os supra referidos princípios constitucionais da proporcionalidade, da igualdade, da justiça, e da boa fé.
40. Sem prejuízo do referido, e circunscrevendo-nos, à posição do EMMP, que como se disse assenta pura e simplesmente na distinção entre imposto e taxa, entende o mesmo que para se estar perante uma taxa tem que haver uma relação sinalagmática, que a mesma deve ter um carácter substancial ou material, de modo a envolver uma contraprestação proporcionada, e que essa proporcionalidade não radica em qualquer equivalência económica rigorosa entre o valor do serviço e o montante a pagar pelo mesmo sendo que para que se considere imposto é necessário haver uma desproporção manifesta a ponto de comprometer de modo inequívoco a correspectividade pressuposta na relação sinalagmatica.
41. Conclui referindo que a desporporcionalidade não pode apenas relacionar-se com o carácter fortemente excessivo da quantia a pagar relativamente ao custo do serviço; ela há-de igualmente ser aferida em função da utilidade do serviço para quem deve pagar o tributo.
42. Ora, salvo o devido respeito, o que sucede nos autos é que ficou provado que não houve qualquer aumento ou redução da utilidade da prestação da CMS pois que o 'serviço' ou a 'utilidade' se manteve exactamente a mesma desde antes de 1989. Como se disse o espaço era o mesmo, as bombas eram as mesmas. Só o montante a pagar aumentou e muito: 900%.
43. Acresce que nunca as recorridas se estribaram apenas na comparação dos montantes a pagar a título de taxa com o custo supostamente incorrido para permitir a ocupação do domínio público pelo que tal alegação é deliberadamente redutora do quanto está em causa nos presentes autos.
44. Assim, e mesmo tendo em conta o novo critério da 'utilidade' só tem que ser dada razão às recorridas que pela mesma utilidade passam a pagar sem qualquer justificação e de um momento para o outro um montante muitíssimo mais elevado.
45. A não se entender assim, então o critério da utilidade poderá sempre justificar todo e qualquer aumento de taxas com o limite apenas da impossibilidade económica absoluta de as pagar o que não faz qualquer sentido e equipara taxa eventualmente a preço.
46. A ser outra ainda a noção de utilidade que da actividade pública se extrai, sempre se dirá que a decisão de aumentar as taxas teria que ter assentado num estudo cuidado sobre os custos e proveitos dos revendedores de combustível do município de Sintra, o que nunca sucedeu.
47. O EMMP optou na suas doutas alegações por procurar inviabilizar qualquer análise sobre a proporcionalidade como a que acaba de ser feita cingindo-se apenas a rebater a posição vertida na douta sentença recorrida que tinha que ver apenas com o critério de apuramento da taxa por bomba apelando claramente a manifestações de capacidade contributiva.
48. Sem prejuízo de se concordar com a douta sentença recorrida, o facto de o quantum se aferir por bomba é o que menor transtorno causa às recorridas, pois que o verdadeiro problema resultou do aumento desmesurado e injustificado do quantum efectivo a pagar por cada bomba, facto que colocou até alguns postos de abastecimento, incluindo o das ora recorridas em risco de ter que cessar actividade por inviabilidade económica superveniente decorrente do aumento das taxas. Termos em que, não se devendo acolher os argumentos do EMMP, e pelas razões supra expostas, devem ser declaradas inconstitucionais e por isso inaplicáveis
às Recorridas as normas normas constantes do capítulo IX da Tabela de Taxas e Licenças da CMS que vigoraram nos anos de 1989 a 1998, e por isso nos períodos a que respeitam as taxas, concretamente as normas constantes dos artigos 42.º n.ºs
1 a 4 e 43.º n.ºs 1 a 4 da Tabela de Licenças e de Taxas da CMS, aprovada em 20 de Outubro de 1989 e em vigor desde 2 de Dezembro desse ano, por violação do artigo 165.º n.º 1 al. i) da Constituição da República Portuguesa (168.º na versão da lei 1/89, de 8 de Julho), ou quando assim não se entenda por violação dos artigos 18.º n.º 2 e 2 ° n.º 2 da CRP, pois só assim se fará a COSTUMADA JUSTIÇA.
Cumpre apreciar e decidir.
II Fundamentação
2. No presente processo é submetida à apreciação do Tribunal Constitucional a norma que estabelece a obrigação de pagamento de um montante por cada bomba de carburantes devido pela utilização do espaço público. A decisão recorrida considerou tal norma inconstitucional, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea i), da Constituição, uma vez que consagra um imposto. Enfermará, porém, essa norma do alegado vício de inconstitucionalidade orgânica? A resposta à questão formulada pressupõe a delimitação dos conceitos de taxa e de imposto relevante no plano constitucional. A jurisprudência constitucional tem afirmado reiteradamente que o critério fundamental de diferenciação entre os conceitos de imposto e de taxa consiste na unilateralidade ou bilateralidade dos tributos em causa: a taxa possui um carácter bilateral ou sinalagmático, envolvendo uma correspectividade entre a prestação pecuniária a propor e a prestação de um serviço pelo Estado ou outras entidades públicas, o que não se verifica no imposto, em que a prestação devida apenas é unilateral, tendo como um dos seus critérios básicos a capacidade contributiva (cf., entre outros, os Acórdãos nºs 115/2002 – D.R., II Série, de 28 de Maio de 2002; 1108/96 – D.R., II Série, de 20 de Dezembro de 1996; e 336/2002 – D.R., II Série, de 14 de Outubro de 2002). Têm sido, fundamentalmente de três tipos as situações em que a contrapartida inerente à taxa se verifica: utilização individual de um serviço público em benefício do tributado; utilização por este de um bem público ou semipúblico; e remoção de um obstáculo jurídico ao exercício de uma certa e determinada actividade por parte de particulares, susceptível de possibilitar a utilização de um bem semipúblico. Por outro lado, a relação sinalagmática inerente à taxa tem de apresentar um carácter substancial ou material, de modo a envolver uma contraprestação. Porém, esta exigência não implica a verificação de uma estrita equivalência económica entre o valor do serviço e o montante a pagar pelo utente desse serviço. Não basta, pela negativa, uma desproporção meramente económica entre a quantia a pagar e o valor do serviço prestado para que ao tributo falte o carácter sinalagmático. Será necessário que essa desproporção comprometa de modo inequívoco a correspectividade pressuposta na relação sinalagmática. Deste modo, a clara desproporção que afecta o carácter sinalagmático de um tributo não pode relacionar-se apenas com o carácter excessivo da quantia a pagar relativamente ao custo do serviço; ela há-de, igualmente, poder ser aferida em função de outros factores tais como o da utilidade do serviço para quem tem de pagar o tributo.
3. No presente recurso, o tributo devido resulta da utilização individualizável do domínio público viário, estando, nessa medida, preenchido o núcleo essencial do conceito de taxa. A decisão recorrida considerou, porém, que seria constitucionalmente ilegítimo o critério que fixa o montante a pagar em função do número de bombas de carburante existentes no posto de abastecimento construído no domínio público. Contudo, e como se sublinhou, a jurisprudência do Tribunal Constitucional, exigindo a existência de uma relação sinalagmática entre o montante a pagar a título de taxa e o serviço prestado pela entidade pública, não exige uma exacta correspondência económica entre essas duas prestações. Com efeito, o montante devido pode ser aferido em função não só do custo mas também do grau de utilidade prestada, apenas não sendo legítima a fixação do valor de um modo desproporcional tal que indicie ausência de correspectividade das prestações
(cf. os citados Acórdãos nºs 336/2002 e 1108/96). Deste modo, é legítimo ponderar, na fixação do valor da taxa pela utilização do domínio público, a vantagem patrimonial que decorre para o utente da utilização do espaço público municipal. No caso dos autos, o grau de utilidade (e, por isso, o valor da taxa) resulta precisamente da intensidade da exploração económica daquele local público, inferido do número de bombas de carburante nele instaladas pela empresa. Assim, tal critério traduz uma certa repercussão, no montante da taxa devida, do grau de utilidade económica efectivamente alcançado através da permissão de utilização de um bem público, referindo-se, ainda, que a essa maior intensidade da exploração económica corresponde uma igualmente mais intensa utilização do domínio público. Existe, portanto, no caso dos autos, uma correspectividade relevante entre o tributo devido e a autorização concedida, pelo que esse tributo é ainda uma taxa. Também não é procedente afirmar que existe uma ilegítima invasão da autonomia individual das recorridas no âmbito da sua actividade económica. Na verdade, o tributo devido explica-se, como se demonstrou, pela existência de uma causa que
é o benefício económico decorrente de uma mais intensa (e, por isso, mais desgastante) utilização do domínio público.
4. As recorridas invocam a desproporcionalidade do tributo, uma vez que, alegam, o seu valor subiu 900%, o que ainda poderia ser autonomizado como questão de constitucionalidade material. Porém, a decisão recorrida considerou que, 'em face do probatório, faltam elementos que conduzam a considerá-la [a desproporcionalidade] verificada' (fls. 327 e 324), nomeadamente a prova de quanto as recorridas pagavam em anos anteriores e há quanto tempo não eram actualizadas as taxas. Em face desta insuficiência, não se afigura manifesto que exista uma desproporcionalidade que afecte critérios de justiça tributária.
III Decisão
5. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 42º e 43º do Regulamento da Tabela de Licenças e Taxas da Câmara Municipal de Sintra, aprovado em 20 de Outubro de
1989, revogando, consequentemente, a decisão recorrida que deverá ser reformulada de acordo com o presente juízo de constitucionalidade. Lisboa, 15 de Janeiro de 2003 Maria Fernanda Palma Mário Torres Paulo Mota Pinto Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa