Imprimir acórdão
Proc. nº 665/02
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Estremoz, de 17 de Maio de
2001, foi o ora recorrente, B, condenado na pena de 4 anos de prisão, por haver cometido um crime continuado de 'Abuso sexual de criança', previsto e punido pelo artigo 172º, nº 1, do Código Penal, bem como ao pagamento de uma indemnização aos assistentes (ora recorridos) no valor de 892.000$00.
2. Inconformado com esta decisão o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão de 28 de Maio de 2002, julgou o recurso totalmente improcedente.
3. Desta decisão foi interposto, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do art. 70º da LTC, o presente recurso de constitucionalidade. Pretende o recorrente ver apreciada, nos termos do respectivo requerimento de interposição do recurso, a 'inconstitucionalidade da norma do artigo 71º, nº 2, do Código Penal, com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida, atendendo
às circunstâncias do caso concreto e aos fins das penas, de prevenção geral e especial', por alegada violação do disposto nos artigos 29º, nº 6 e 3º, nº 3 da Constituição.
4. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso (fls. 320 a 323). É o seguinte, na parte decisória, o seu teor:
'4. Cumpre, pois, decidir se pode conhecer-se do objecto do recurso, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cf. artigo 76º, nº 3 da LTC). O recurso previsto na al. b), do nº 1, do artigo 70º, da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe, além do mais, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica - ou de uma sua interpretação normativa - e que, não obstante, a decisão recorrida a tenha aplicado no julgamento do caso. Ora, constitui desde há muito jurisprudência assente neste Tribunal (veja-se, entre muitos nesse sentido, os acórdãos nºs 62/85, 90/85 e 450/87, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., p. 497 e 663 e 10º vol., pp. 573, respectivamente) que a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo quando tal se faz em tempo de o tribunal recorrido a poder decidir e em termos de ficar a saber que tem essa questão para resolver - o que exige que a questão seja suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma inconstitucionalidade respeita (ou seja: em regra, antes da prolação da decisão recorrida). Em consequência, tem este Tribunal entendido de forma reiterada que, em princípio, não constitui meio idóneo para suscitar a questão de inconstitucionalidade o requerimento de arguição de nulidades, o pedido de aclaração ou reforma da decisão recorrida, ou, como aconteceu no caso, o próprio requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional. Esta jurisprudência, que mantém inteira validade, conduz a que não possa agora conhecer-se do objecto do recurso, uma vez que, como o próprio recorrente reconhece, só teria suscitado a questão de constitucionalidade que agora pretende ver apreciada já depois de proferida a decisão recorrida, concretamente no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional.
5. Sustenta, porém, o recorrente, que não teve oportunidade processual de o fazer antes, porquanto 'não lhe era exigível que antevisse a possibilidade de aplicação da norma no caso concreto, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da decisão' (ponto 4. Do requerimento de interposição do recurso). Porém, como vai ver-se, não lhe assiste razão. Na verdade, sobre o artigo 71º do Código Penal o Tribunal da Relação de Évora limita-se a concluir que: 'O acórdão recorrido ponderou especificamente aqueles ditames [os referidos nos nºs 1 e 2] e concluiu por uma pena de 4 anos de prisão. Pena que entendemos ser adequada e equitativa face ao que se deixou dito'. Ou seja, limita-se a confirmar, também nesta parte, a interpretação normativa desse preceito que já havia sido feita pela 1ª Instância, pelo que é totalmente improcedente a alegação de que essa aplicação constitui, para o recorrente, uma 'decisão surpresa'. Assim, sendo previsível - e, era-o efectivamente - que a decisão recorrida pudesse vir a aplicar, nos termos em que o fez, o artigo 71º, nº 2 do Código Penal, era efectivamente exigível ao recorrente que tivesse, antes de a mesma ser proferida, suscitado a questão de inconstitucionalidade que agora pretende ver apreciada. Não o tendo feito, não pode agora, de acordo com a jurisprudência antes expressa, que mantém inteira validade, conhecer-se do objecto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, por falta dos seus pressupostos legais de admissibilidade'.
5. Inconformado com esta decisão o recorrente apresentou a presente reclamação para a Conferência (fls. 325 a 327), que fundamenta nos seguintes termos:
'
(...)
3 – Reitera que o recurso é interposto ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b) da LTC, e de que o requerimento de interposição constitui meio idóneo para suscitar a questão de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, uma vez que o recurso é interposto e insere-se numa excepção à regra de ter sido suscitada a inconstitucionalidade «durante o processo».
4 – Ao recorrente não lhe era exigível que antevisse a possibilidade de aplicação da norma no caso concreto de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da decisão. Não colhendo por isso as razões aduzidas na decisão sumária de que se reclama. Nem se encontram demonstradas essas razões com a alegação de que a norma e a sua aplicação, além de terem sido já aplicadas, era previsível a sua aplicação, previamente.
5 – O recorrente espera que o Tribunal Constitucional não seja monolítico, e que a sua recente alteração na sua constituição, pelos novos Juízes Conselheiros, lhes permita, para além das normas legais a que estão obrigados, apliquem as mesmas normas com o mais elementar sentido de justiça e bom senso, respeitando o princípio da equidade, que aqui tem inteira aplicação.
6 – Remeter para a jurisprudência do T.C., que possui longos anos, e nem sempre se adequa ao caso sub judice é sem dúvida o caminho mais fácil e menos equitativo.
7 – Espera o recorrente, aqui reclamante, que o T.C., em conferência, possa ter um Ilustre Conselheiro que não afine pelo mesmo diapasão dos restantes, obrigando assim a que o T.C. venha a conhecer do objecto do recurso, fazendo-se jus ao art. 78º-A, nº 4, a contrario. A unanimidade não é boa conselheira para casos complexos e discutíveis.
8 – Apela o recorrente/reclamante ao sentido não monolítico dos Ilustres Conselheiros, que compõem a Conferência deste T.C., para que submetam, o objecto do recurso, ao conhecimento e apreciação desse Tribunal. Ao conhecerem do mérito e do objecto do recurso, far-se-á a justiça material. As razões instrumentais não podem sobrepor-se ao fim múltimo do Direito, a realização da Justiça'.
6. O Representante do Ministério Público, notificado da presente reclamação, veio responder-lhe no seguintes termos:
'1 - A presente reclamação é manifestamente infundada.
2 – Na verdade – e para alem do recorrente não ter suscitado, em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de constituir objecto idóneo do recurso interposto – é evidente que não ocorreu, no caso, a prolação de qualquer «decisão-surpresa» por parte da Relação, que se limitou a confirmar a decisão proferida em 1ª instância'.
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir. II – Fundamentação
7. Contesta o reclamante, fundamentalmente, que tivesse de suscitar a questão de inconstitucionalidade que agora pretende ver apreciada antes de proferida a decisão recorrida. Invoca, designadamente, que 'não lhe era exigível que antevisse a possibilidade de aplicação da norma no caso concreto de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da decisão'. A verdade, porém, é que - como se demonstra na decisão reclamada, que se pronunciou expressamente sobre esta questão - não lhe assiste razão, sendo efectivamente previsível a aplicação pela decisão recorrida da norma cuja inconstitucionalidade agora pretende ver apreciada e, por isso, sendo-lhe também exigível que, antecipando essa aplicação, suscitasse a questão da sua inconstitucionalidade em termos de o Tribunal Recorrido estar obrigado a sobre ela se pronunciar. Nestes termos, e não avançando o reclamante com qualquer novo argumento capaz de justificar a alteração do então decidido, apenas resta, reafirmando os fundamentos constantes da decisão reclamada, que em nada são abalados pela presente reclamação, concluir pela impossibilidade de conhecer do objecto do recurso e, em consequência, pelo indeferimento da presente reclamação. III - Decisão Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta. Lisboa, 16 de Janeiro de 2003 Gil Galvão Bravo Serra Luís Nunes de Almeida