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Proc. nº 639/2002
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que figura como recorrente A e como recorridos B e C, a Relatora proferiu Decisão Sumária ao abrigo do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, com o seguinte teor:
(...) A, casado, comerciante, morador na Guarda, ao ..., recorrido nos autos em referência, não se conformando com o douto acórdão de 19 de Janeiro de 2002, que decidiu a apelação, e com o proferido a fls. 332/339, que julgou improcedente o requerimento de arguição de nulidade e reforma do primeiro acórdão, mantendo-o sem alteração, por já dele não haver recurso ordinário (art. 70º, nº 2) vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, por violação das normas jurídicas que regulam os contratos, nomeadamente art°. 5°, n° 2 e) do RAU e art°s. 406°., 1022°. a 1063°. do Cód. Civil, com ofensa dos princípios e garantias constitucionais, nos arts. 18°, nº 2, 61°., n° 1 e 62° da Constituição da República Portuguesa. Aliás, a interposição deste recurso aponta para a discordância da interpretação com que foram tomadas as normas citadas e, também, só por isso, se considera admissível, como é Jurisprudência constitucional corrente. A Relatora proferiu despacho ao abrigo do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, ao qual foi dada a seguinte resposta: A, casado, comerciante, morador na Guarda, ao ..., nos autos com o número em referência, em que são recorridos B e mulher, notificado para dar cumprimento ao disposto no artigo 75°.-A da Lei do Tribunal Constitucional vem dizer que o recurso foi interposto ao abrigo das alíneas c) e f) do art°. 70 da Lei do Tribunal Constitucional, por violação das normas jurídicas que regu1am os contratos, nomeadamente ano. 5°., nº. 2 e) e 110°. do RAU e art°s. 405°. e 1022º a 1063° do Cód.Civil, com ofensa dos princípios e garantias constitucionais, nos art°s. 18°., nº 2, 61°. e 62º. da Constituição da República Portuguesa, como melhor se desenvolve na alegação que agora apresenta e cuja junção aos autos requer também – anotando que a inconstitucionalidade não foi levantada durante o processo por só ter surgido no douto acórdão recorrido, do qual já não havia recurso ordinário e sublinhando que a inconstitucionalidade diz respeito à interpretação e ao sentido com que as normas foram tomadas e aplicadas. Cumpre apreciar.
2. O recurso previsto nas alíneas c) e f) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional cabe das decisões que apliquem norma cuja ilegalidade por violação de lei com valor reforçado haja sido suscitada durante o processo. Nos termos do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, o respectivo requerimento de interposição deve conter a indicação da alínea ao abrigo da qual o recurso é interposto, da norma que o recorrente considera ilegal, da norma que considera violada e da peça processual onde a questão de ilegalidade foi suscitada. Ora, nos presentes autos, o recorrente não indica a norma ou dimensão normativa que considera ilegal, fazendo apenas uma referência genérica à violação de vários preceitos infraconstitucionais, sem identificar qualquer critério material de decisão que repute de ilegal. O recorrente refere ainda um conjunto de preceitos constitucionais, afirmando que a questão de constitucionalidade não foi suscitada anteriormente por falta de oportunidade processual. Contudo, tal referência à Constituição e a uma alegada questão de constitucionalidade (que não é, em momento algum, identificada) não tem qualquer pertinência no contexto de um recurso interposto ao abrigo da alínea f) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, uma vez que este recurso apenas tem por objecto questões de ilegalidade normativa e não questões de constitucionalidade. Assim, o requerimento de interposição do recurso será indeferido, nos termos do artigo 76º da Lei do Tribunal Constitucional.
3. Em face do exposto, decide-se indeferir o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade.
2. O recorrente vem agora reclamar para a Conferência, afirmando o seguinte:
1. O recurso foi interposto do douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido a fls..., que decidiu a apelação, por violação das normas jurídicas que regulam o arrendamento, designadamente o artº. 5º, nº 2, al. e) do RAU, com ofensa dos princípios e garantias constitucionais nos arts. 18°., nº 2, 61°., nº
1 e 62°. da Constituição da República Portuguesa, tendo-se salientado que a interposição do recurso era sobre a discordância da interpretação com que foram tomadas as normas referidas. Sobre o requerimento recaiu douto despacho do Exmo. Desembargador Relator, proferido a fls. 346, que admitiu o recurso nos eguintes precisos termos:
«Ao abrigo do disposto nos artigos 70º., nº 2, 75º. , nº. 1, 75º.-A, nºs 1 e 2 e
76°., nº. 1 da Lei Orgânica s/ Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, admito o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, subindo imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo».
2. Distribuido o processo neste Tribunal Constitucional, onde lhe coube o n°.
639/02 da 2ª. Secção, a Exma. Conselheira Relatora proferiu despacho ao abrigo do artº. 75º.-A da Lei do Tribunal Constitucional a que o recorrente respondeu, decalcando essa resposta nos termos da inicial interposição, com os seguintes três pontos de esclarecimento:
- a questão da inconconstitucionalidade não foi levantada durante o processo por só ter surgido com o douto acórdão recorrido;
- a questão da inconstitucionalidade diz respeito à interpretação e ao sentido com que as normas foram tomadas e aplicadas ...
- como melhor se pode ver da alegação junta. Após tecer algumas considerações sobre a tramitação processual e sem qualquer referência ao douto despacho que inicialmente o havia admitido, a Exma. Relatora proferiu o indeferimento. Com todo o respeito devido o recorrente e ora reclamante não se pode conformar com esta segunda decisão que aponta para a não admissão do recurso, até porque outra foi a opinião do Meritísimo Desembargador Relator que o admitiu e mandou subir nos próprios autos. Ora vejamos.
3. A nossa Jurisprudência Constitucional tem considerado admissível o recurso quando o recorrente imputa a inconstitucionalidade à interpretação ou à dimensão perfilhada, quanto a certa norma jurídica, na decisão impugnada ('Recursos em Processo Civil', pg. 327 - A.Ribeiro Mendes). Por outras palavras: a questão da constitucionalidade pode respeitar, não apenas
à norma, ou a uma sua dimenão parcelar, considerada 'em si', mas também e mais restritamente, à interpretação ou sentido com que ela foi tomada no caso concreto e aplicada na decisão recorrida (J .M. Cardoso da Costa – 'A Jurisprudência Constitucional', pg. 50). E no caso dos presentes autos o que se pretende demonstrar é que do acórdão recorrido resulta uma interpretação e aplicação inconstitucional da norma do artº. 5°., nº. 2-e) do RAU (e dos contratos em geral) por violação dos arts.
18°., nº 2, 61°.,nº 2 e 62°. da Constituição. Este é o objectivo do recurso e no que ficou expresso, salvo mellior opinião, se deve ter por contrariado o argumento constante do despacho ora reclamado onde se diz que o recorrente não indica a norma ou dimensão normativa que considera ilegal, fazendo apenas uma referência genérica à violação de vários preceitos infraconstitucionais, sem identificar qualquer critério material de decisão que repute de ilegal. Como questão prévia salientou-se: a questão da inconstitucionalidade não se colocou antes de ser proferido o Acórdão recorrido uma vez que só com a dita decisão se verificou e não era exigível ao recorreente antever essa possibilidade porque na 1ª. Instância a aplicação do direito foi correcta.
4. O A., como legítimo dono e possuidor do prédio urbano que identificou e no qual o R. ocupa uma loja para 'arrumações', intentou a presente acção contra B, pedindo a condenação do R. a reconhecer que o contrato de arrendamento que entre eles existia foi validamente denunciado por notificação judicial avulsa, devidamente documentada nos autos, por se tratar de um contrato de arrendamento civil (e não vinculístico) sujeito ao regime geral dos art ºs. 1.022° a 1.062°. do C.Civil, por virtude do disposto no artº. 5°., nº. 2 do RAU. O R. contestou alegando, essencialmente, que o arrendamento não é meramente civil mas sim comercial, subsumido ao regime legal do RAU porque o arrendado faz parte integrante e incindível (?) de um estabelecimento comercial, pese embora tratar-se de um arrendamento para arrumos. Invocou passos de uma outra acção e caso julgado. E o A. respondeu à invocada excepção afirmando que nesta acção e naquela outra são diferentes as razões de facto e de direito, não havendo identidade de pedido nem de causa de pedir - pontos estes que oportunamente demonstrou, como foi decidido no Saneador com trânsito em julgado. O que se provou foi que, até 1976 a casa do A. tinha 3 divisões no rés-do-chão destinadas à utilização dos donos da casa (Quesito 1°.); que não há memória de no prédio do A. ter funcionado qualquer estabelecimento comercial (Quesito 3°.); e que nunca ali se praticaram actos de comércio ou se fez indústria (Quesito
4°.) Provado ficou ainda, por documentos autênticos: a) que o estabelecimento do R. foi inicialmente de D, que o trespassou em 14 de Abril de 1967, a F - e nesse trespasse não entrou a loja; b) O R. adquiriu o mesmo estabelecimento, por escritura de trespasse que lhe fez F, em 8 de Maio de 1976 - e nesse trespasse não entrou a loja; c) O R. tomou a loja de arrendamento, por escrito particular, em 1 de Maio de
1976 (antes de ser proprietário do estabelecimento) e no título escrito do contrato não se disse que a loja fosse tomada de arrendamento para qualquer fim relacionado com o estabelecimento ou com a actividade comercial do R. e muito menos se acordou que a loja ficasse a fazer parte integrante da cervejaria - que o R. marido só mais tarde tomou de trespasse. Assim, sendo por demais evidente que o arrendamento da loja não foi para fins directamente relacionados com a dita actividade comercial do R. - que ainda a não exercia - não pode o seu enquadramento jurídico fazer-se no artº. 110º. do RAU, mas sim no artº. 5°., nº. 2 do mesmo diploma legal ...
- face ao que, ponderadas ainda outras invocações das partes, a Mma. Juiza decidiu julgar a acção procedente, quanto ao pedido principal, condenando os RR. a reconhecer que o contrato de arrendamento em questão foi validamente enunciado pelo Autor.
5. Reapreciando a causa, o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, embrenhou-se nos conceitos e nas teorias que tratam do 'estabelecimento comercial', passou depois a um boquejo histórico sobre a evolução e sistematização do 'arrendamento comercial' e, tomando por base os factos falsos invocados pelos RR - para com eles se aproximar da doutrina de eminentes juristas - decidiu que, 'in casu' se trata de um arrendamento comercial. O Tribunal da Relação fechou a porta aos RR, ao negar-lhes a procedência da conclusão A) da sua alegação, mas abriu-lhe a janela para receber e dar como bons os factos dessa mesma alínea ... que já tinham sido afastados no Saneador .
6. Em resumo e tirando CONCLUSÕES: O A. pediu e obteve em 1ª. Instância a condenação do R. a reconhecer que o contrato de arrendamento que entre eles existia, de uma loja, foi validamente denunciado por notificação judicial avulsa, por se tratar de arrendamento civil, sujeito ao regime geral dos arts. 1022° a 1062° do C.Civil, por força do art.
5°, nº. 2 e) do RAU. O Tribunal da Relação alterou aquela decisão, dando aos mesmos preceitos legais e aos mesmos factos uma interpretação violadora dos princípios que consagram a liberdade negocial, a autonomia da vontade e o direito de fruição e disposição da propriedade privada, entre os direitos fundamentais, pois estabeleceu-se na Cláusula 4ª. do contrato escrito do arrendamento que querendo o senhorio ou o inquilino fazer cessar este contrato, deverá avisar o outro com 30 dias antes do fim do prazo ... e esse documento tem força probatória plena, nos termos do art.
379º., nº. 1 do Código Civil. O arrendamento da loja ao R., para 'arrumações', não se relacionou com a actividade comercial do R., que ainda a não exercia, pelo que o seu enquadramento jurídico cai no âmbito do artº. 5°., nº. 2 do RAU, onde se refere a 'espaços não habitáveis', designadamente a 'armazenagem'. Não se pode qualificar de comercial um arrendamento que não foi feito ao mesmo tempo nem com a declaração expressa desse fim e no qual até ficou especificada a faculdade de poder ser livremente denunciado pelo senhorio. Consequentemente, A) O Acórdão recorrido ao considerar aplicável ao arrendamento em questão o regime vinculístico do contrato de arrendamento comercial interpretou de forma inconstitucional a norma do art. 5°., nº. 2 e) do RAU, com violação das normas dos artºs. 18°., 61°. e 62°. da Constituição da República Portuguesa que garantem o direito à propriedade privada na componente de usar e fruir em termos invioláveis; B) O recurso interposto para o Tribunal Constitucional tem fundamento sério, é legalmente admissível, não havendo razão para a Meritíssima Relatora o recusar; pelo que, C) Dando-se provimento à presente reclamação e substituindo-se o douto despacho reclamado por outro que admita o recurso interposto pelo A. para o Tribunal Constitucional, se fará JUSTIÇA .
Cumpre apreciar e decidir.
3. O reclamante interpôs o presente recurso ao abrigo das alíneas c) e f) do nº
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Nessa medida, como de resto se sublinhou na Decisão Sumária reclamada, não faz qualquer sentido a referência reiterada na presente reclamação a questões de inconstitucionalidade como se tivesse sido invocada uma outra alínea do artigo 70º [como, por exemplo, a alínea b)] Para além do mais, o recorrente só refere uma eventual questão de constitucionalidade normativa na presente reclamação, não o tendo feito, sequer, no requerimento de recurso ou na resposta ao despacho de aperfeiçoamento, o que sempre seria manifestamente intempestivo [caso o presente recurso tivesse sido interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional]. Por último, e ao contrário do que o recorrente parece sustentar, a decisão de admissão do recurso proferido pelo tribunal a quo não vincula o Tribunal Constitucional (cf. artigo 76º, nº 3 da Lei do Tribunal Constitucional) A presente reclamação é, pois, manifestamente improcedente.
4. Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação, confirmando-se a Decisão Sumária reclamada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs. Lisboa, 15 de Janeiro de 2003 Maria Fernanda Palma Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa