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Proc. nº 773/02
1ª Secção Rel.: Consº Luís Nunes de Almeida
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
1. A veio recorrer para o Tribunal Constitucional, invocando o disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que manteve a sua condenação na pena de quatro anos e seis meses de prisão pela prática de um crime de peculato, previsto e punido pelos artigos 375º, nº 1, e 386º, nº 1, alínea c), do Código Penal.
A questão de inconstitucionalidade que se pretende ver apreciada – e que foi suscitada na motivação do recurso para a Relação – reporta-se à norma do
«artigo 386º, nº 1, alínea c) do Código Penal, quando interpretado e aplicado, em conjunção com o artigo 375º do mesmo Código, como o fez o acórdão recorrido, em termos de considerar como organismos de utilidade pública pessoas colectivas privadas de natureza desportiva que, tendo o mero estatuto de utilidade pública, não cooperam com a Administração Pública do Estado na realização dos seus fins, não sendo assim 'organismos', e possíveis agentes do crime de peculato as pessoas físicas que nelas desempenhem funções», e assentaria na violação do artigo 29º, nº 1, da Constituição, «pois que a norma jurídica assim interpretada e aplicada estende o seu âmbito material de incidência para além dos limites que são consentidos pela regra da tipicidade».
2. Já neste Tribunal, o relator lavrou decisão sumária no sentido do não conhecimento do recurso, nos termos do disposto no artigo 78º-A, nº 1, da LTC, aí se afirmando:
Nesta conformidade, o que o recorrente verdadeiramente questiona é o processo interpretativo que permitiu ao tribunal recorrido abranger as pessoas colectivas de direito privado declaradas de utilidade pública no conceito de organismo de utilidade pública. Tal processo interpretativo efectuado pelo tribunal a quo, por não ter respeitado os limites de interpretação da lei penal decorrentes do princípio da legalidade incriminatória, consignado no artigo 29º, nº 1, da Lei Fundamental, designadamente a proibição da analogia e da interpretação extensiva, consequenciaria a inconstitucionalidade da própria norma penal incriminatória, quando objecto de uma tal interpretação, por violação do referido princípio constitucional.
Ora, essa questão não se reconduz a uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, isto é, a uma questão que caiba ao Tribunal Constitucional conhecer, no âmbito do recurso de constitucionalidade (cfr., sobre esta matéria, a análise desenvolvidamente efectuada no Acórdão nº 674/99 – Acórdãos do Tribunal Constitucional, págs. 606 a 614).
Com efeito, em casos como o dos autos, está-se perante «a inconstitucionalidade do acto de julgamento, e não a inconstitucionalidade de uma norma jurídica», pelo que se lhes não aplica o sistema de fiscalização da constitucionalidade, ao qual estão «apenas sujeitos os actos do poder normativo»
(cfr. Acórdão nº 353/86, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8º vol., págs. 571 e segs.). É que situações em que se questionem certas interpretações normativas por ofensa do princípio da legalidade penal não traduzem verdadeiras questões de inconstitucionalidade normativa, mas reflectem antes questões de inconstitucionalidade da própria decisão recorrida ou do acto de julgamento – no dizer do Acórdão nº 682/95, em tais hipóteses, «o que está em causa não é uma específica dimensão normativa do preceito», mas antes «a determinação do seu
âmbito de aplicação, de acordo com a sua ratio», tarefa que «corresponde apenas
à subsunção jurídica do caso, não havendo nenhum sentido específico da norma confrontável com a Constituição» e, por isso, aí mesmo se concluiu que não estaria em causa «qualquer específica questão de constitucionalidade, mas apenas um problema de averiguação da intenção normativa, objectivamente considerada, e de subsunção».
No caso vertente, estamos perante idêntica questão. O recorrente não questiona que o conteúdo da norma, com a interpretação adoptada, seja compatível com o texto constitucional – nomeadamente, não questiona que a norma em causa pudesse proceder, por opção expressa do legislador, à referida incriminação quando estivesse em causa uma pessoa colectiva de direito privado declarada de utilidade pública . O que vem questionado pelo recorrente nos presentes autos é tão-só que o julgador possa alcançar esse mesmo conteúdo normativo através de um processo interpretativo, já que, ao fazê-lo através de uma forma desrespeitadora dos limites fixados à interpretação da lei criminal, viola necessariamente o princípio da legalidade penal. Ou seja, não se questiona que o comportamento do recorrente possa ser objecto de uma incriminação, apenas se questiona se ele preenche efectivamente o tipo legal do crime de peculato.
Conclui-se, assim, inequivocamente, que o que vem impugnado pelo recorrente não é a norma, em si mesma considerada, mas antes, a decisão judicial que a aplicou, por via de um processo interpretativo constitucionalmente proibido.
Ora, tal questão – por não respeitar a uma inconstitucionalidade normativa, mas antes a uma inconstitucionalidade da própria decisão judicial - excede os poderes de cognição do Tribunal Constitucional, uma vez que, entre nós, não se encontra consagrado o denominado recurso de amparo, designadamente na modalidade do amparo contra decisões jurisdicionais directamente violadoras da Constituição.
Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar, em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais, já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal. E, em boa verdade, por identidade lógica de raciocínio, o Tribunal Constitucional, por um
ínvio caminho, teria que se confrontar com a necessidade de sindicar toda a actividade interpretativa das leis a que necessariamente se dedicam os tribunais, uma vez que seria sempre possível atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu «sentido natural» (e qual é ele, em cada caso concreto?), com base em violação do princípio da legalidade.
Ora, um tal entendimento - alargando de tal forma o âmbito de competência do Tribunal Constitucional - deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra desenhado na Lei Fundamental, dado que esvaziaria praticamente de conteúdo a restrição dos recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de inconstitucionalidade normativa.
Ora, assim sendo, tem necessariamente de se concluir pela inexistência de uma questão de inconstitucionalidade normativa de que o Tribunal deva conhecer.
3. Desta decisão sumária veio o recorrente reclamar para a conferência, aduzindo o seguinte:
Não está em causa uma interpretação judicial da norma, está em causa a norma concreta, tal como aplicada no caso: é o Direito em acção.
Não se discute o modo de interpretar, discute-se o resultado da interpretação; não se recorre de uma decisão judicial, recorre-se quanto a norma jurídica que essa decisão judicial aplicou.
A seguir o critério da Exmo. Relator não havia hipótese de se sindicar a constitucionalidade de normas jurídicas que vieram a ser decretadas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional.
Vejam-se um exemplos flagrantes.
O artigo 40º do CPP, na sua redacção originária, foi declarado inconstitucional, com força obrigatória geral (DR, I-A, de 20.03.98) «na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido».
Que quer isto dizer? Que o que foi valorado foi a norma em concreto, tal como interpretada e aplicada por um tribunal. E diz-se isto porquê? Porque lendo a norma na sua literalidade, verifica-se que nela não se prevê de modo expresso a situação concreta sobre a qual recaiu o juízo de inconstitucionalidade. Na verdade, seguindo o enunciado literal da norma constate-se que apenas se previa ali a situação do juiz que tivesse intervindo em julgamento ou em debate instrutório.
Ou seja, quando o TC declarou que o artigo 40º do CPP, na sua redacção original, era materialmente inconstitucional na parte em que admitisse a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido, estava a reportar-se à norma concreta, assim interpretada e aplicada e não à norma abstracta.
Ora se vingasse a tese do Exmo. Relator, esta inconstitucionalidade não tinha sido decretada.
Se assim se passa quanto a normas jurídica de cunho e natureza processual, porque haverá de seguir-se critério diverso quanto a normas de natureza substantiva? Haverá razão para distinguir? Não há.
Em suma, o recurso do arguido poderá ser rejeitado por outras razões, mas seguramente não por pretende sindicar interpretações judiciais e não normas legais. Salvo se houver aqui dois pesos e duas medidas.
4. Na sua resposta, o Ministério Público entende que a «reclamação é manifestamente improcedente, já que não abala minimamente a jurisprudência maioritária deste Tribunal acerca do conceito de questão de inconstitucionalidade normativa, nos casos em que se pretende sindicar da conformidade aos princípios da legalidade e da tipicidade do processo interpretativo, seguido pelo tribunal recorrido a propósito da aplicação de certa norma».
Cumpre decidir.
5. Ao contrário do que sustenta o ora reclamante, resulta inequívoco, como se demonstrou na decisão sumária reclamada, que a questão que se pretendia suscitar no recurso não se prendia com o «resultado da interpretação», mas antes com o processo interpretativo seguido pelo tribunal a quo.
Por isso, o caso invocado pelo reclamante não constitui lugar paralelo na jurisprudência deste Tribunal, assim como se não entendeu igualmente que a questão pudesse merecer tratamento distinto conforme se estivesse perante norma substantiva ou perante norma adjectiva.
O que se apresentou como decisivo para considerar que se não estava perante uma questão de inconstitucionalidade normativa foi a circunstância – bem sublinhada na decisão sumária – de o recorrente não questionar que o conteúdo da norma, com a interpretação adoptada, fosse compatível com o texto constitucional, nomeadamente, não questionar que a norma em causa pudesse proceder, por opção expressa do legislador, à incriminação como peculato quando estivesse em causa uma pessoa colectiva de direito privado declarada de utilidade pública, mas questionar tão-só que o julgador pudesse alcançar esse mesmo conteúdo normativo através de um processo interpretativo, já que, ao fazê-lo através de uma forma desrespeitadora dos limites fixados à interpretação da lei criminal, violaria necessariamente o princípio da legalidade penal.
Ora, a reclamação do recorrente não faz infirmar este raciocínio, pelo que se impõe confirmar a decisão reclamada.
6. Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC’s. Lisboa, 17 de Janeiro de 2003 Luís Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa