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Processo n.º 795/03
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. intentou, no Tribunal do Trabalho do Barreiro, acção declarativa, com processo comum, contra B., pedindo a condenação deste a pagar-lhe, “a título de remuneração adicional por isenção de horário de trabalho, o valor de duas horas diárias de trabalho suplementar a calcular sobre os valores de despesas do «Cartão C. – Empresa» e de combustível, no período compreendido entre 1 de Janeiro de 1993 e 1 de Agosto de 2001, a liquidar em execução de sentença”. Alegou, em síntese, que: (i) trabalhou ao serviço do réu desde 2 de Dezembro de 1970 até 1 de Agosto de 2001, data em que se reformou por invalidez; (ii) desde 1 de Março de 1992 até à data da reforma esteve isento de horário de trabalho, o que lhe conferia direito a uma retribuição adicional (subsídio de isenção de horário de trabalho) equivalente a duas horas de trabalho suplementar, calculada com o acréscimo de 50% quanto à
1.ª hora e de 75% quanto à 2.ª hora; (iii) o réu, no cálculo desse subsídio, fez incidir aquelas percentagens apenas sobre a retribuição base e as diuturnidades, e não também – como devia fazer – sobre o valor das prestações complementares a que, a partir de 1 de Janeiro de 1993, passou a ter direito, com carácter regular e periódico, relativas ao “Cartão C. – Empresas” e a combustível, prestações que, à data da cessação do contrato, correspondiam aos valores mensais de, respectivamente, 50 000$00 (€ 249,49) e 19 083$33 (€ 95,19), e que integravam, para todos os efeitos, a sua retribuição.
Por sentença de 6 de Janeiro de 2003 do Tribunal do Trabalho do Barreiro, foi negado provimento à acção, por se julgar procedente a excepção peremptória da remissão abdicativa, invocada pelo réu, com base na declaração de quitação geral, subscrita pelo autor à data da cessação do contrato.
O autor apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa, sustentando, nas respectivas alegações, além do mais, que a sentença apelada,
“com o ter considerado aplicável o disposto no artigo 863.º do Código Civil à obrigação de uma entidade patronal pagar remunerações salariais a um trabalhador, violou o disposto nos artigos 17.º e 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa”.
Por acórdão de 29 de Outubro de 2003, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente o recurso, referindo, na parte final da sua fundamentação jurídica, e após desenvolvida exposição sobre a natureza e validade da declaração de quitação geral, o seguinte:
“Concluímos, assim, que a declaração de quitação total e plena na sequência de um acordo revogatório do contrato de trabalho, em que foi estabelecida uma compensação pecuniária global e conferido o direito à reforma, é plenamente válida e eficaz, em virtude de o trabalhador já não estar em situação psicologicamente inibidora que o impedisse de reclamar quaisquer créditos.
Esta conclusão não viola os artigos 17.° e 59.°, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa, precisamente porque tal declaração é efectuada para produzir efeitos após a cessação do contrato de trabalho.
Finalmente refira-se que também não está suficientemente demonstrado que as importâncias recebidas a título «Cartão C.» e de «combustível» revistam a natureza de remuneração. Ao invés, essas importâncias, na medida em que se destinavam a pagar despesas do trabalhador ao serviço da entidade patronal, assumem a natureza de ajudas de custo, nos termos do artigo 87.° da LCT, até porque não se discrimina a parte em que tais importâncias excedem as despesas normais. Também por esta razão as referidas importâncias não podiam entrar para o cálculo da retribuição devida por isenção de horário de trabalho, nos termos do n.° 2 da cláusula 93.ª do ACTV.”
O autor interpôs recurso desse acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver apreciada “a questão da inconstitucionalidade do disposto no artigo 863.º do Código Civil (remissão), na vertente da sua aplicação às relações juslaborais, tendo em conta que o direito ao salário está relacionado com interesses de ordem pública e social”.
Neste Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1.º – A declaração de quitação geral prestada por um trabalhador no acto da cessação do seu contrato de trabalho, determinada por uma situação de reforma por invalidez, no sentido de que está integralmente pago de todos os créditos emergentes do contrato de trabalho e sua cessação, deve ser considerada nula, uma vez que tal declaração, prestada no âmbito da obrigação de pagar as retribuições vencidas na vigência de um contrato de trabalho, contende com interesses de Ordem Pública.
2.º – Por isso, o douto Acórdão recorrido, ao ter julgado válida a declaração de quitação geral prestada no Acordo de Cessação do Contrato de Trabalho celebrado entre o recorrente e a recorrida, violou o artigo 94.° da LCT criada pelo Decreto-Lei n.° 49 408, de 24 de Novembro de 1969.
3.º – Além disso, esse douto Acórdão, com o ter considerado válida a mesma declaração e com o ter considerado aplicável o disposto no artigo 863.º do Código Civil à obrigação de uma entidade patronal pagar retribuições a um trabalhador, violou o disposto no artigo 59.°, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa.”
O réu, ora recorrido, contra-alegou, suscitando questão prévia de não conhecimento do recurso, por falta de interesse processual, dado que a decisão recorrida tem um segundo fundamento autónomo (não ter o autor demonstrado, como lhe cumpria, a natureza retributiva das referidas prestações), suficiente, por si só, para determinar a improcedência da acção, pelo que a decisão que o Tribunal Constitucional viesse a proferir sobre a questão de constitucionalidade nunca seria susceptível de afectar o desfecho da causa. Para a hipótese de não merecer acolhimento tal questão prévia, o recorrido propugnou a confirmação da decisão impugnada.
Notificado para se pronunciar, querendo, sobre a questão prévia suscitada, o recorrente nada disse.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Da natureza instrumental do recurso de constitucionalidade deriva que só se justifica o seu conhecimento se a respectiva decisão for susceptível de influir no desfecho da causa de que emerge tal recurso.
No presente caso, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, assumindo a decisão judicial recorrida o carácter de decisão final da causa, por insusceptível de recurso ordinário, dúvidas não se suscitam de que carece de interesse processual o conhecimento do recurso de constitucionalidade se aquela decisão assenta também num outro fundamento, estranho à questão de constitucionalidade e idóneo a, por si só, determinar o mesmo desfecho da causa.
É isso o que ocorre nestes autos, dado que a improcedência da pretensão do recorrente sempre se manteria – mesmo que o Tribunal Constitucional, na hipótese de conceder provimento ao presente recurso, viesse a julgar inconstitucional a interpretação normativa que aplica o instituto da remissão abdicativa aos créditos laborais – com base no fundamento de que o autor não logrou provar, como lhe cumpria, a natureza remuneratória das prestações relativas às despesas com cartão de crédito e de combustíveis. Na verdade, mesmo que se viesse a admitir, por força de eventual juízo de inconstitucionalidade da dimensão normativa questionada, que era consentido ao autor, apesar da subscrição de declaração de quitação geral, provar que na compensação pecuniária global afinal não haviam sido atendidos todos os créditos de natureza remuneratória que lhe eram devidos, tal de nada lhe serviria porque já está definitivamente assente que ele não provou que as duas prestações em causa assumiam essa natureza, sendo certo que, por se tratar de facto constitutivo do direito invocado, era sobre ele que recaía o correspondente ónus probatório.
Assim, sem necessidade de considerações complementares, concede-se atendimento à questão prévia suscitada pelo recorrido, conducente ao não conhecimento do objecto do presente recurso.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
10 (dez) unidades de conta.
Lisboa, 31 de Março de 2004.
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Silva Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos