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Processo n.º 565/03
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A. foi condenada no Tribunal Judicial de Ansião, por sentença de 11 de Junho de 2002, como autora de dois crimes de dano e de dois crimes de injúria, na pena
única de 220 dias de multa à taxa diária de €5, perfazendo o total de €1 100, bem como no pedido de indemnização civil e nas custas do processo. Inconformada, a arguida recorreu, por requerimento de 17 de Junho de 2002, “em matéria de facto para o Tribunal da Relação de Coimbra”, pedindo “que seja ordenada a entrega de cópia das cassetes que têm gravadas a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, para o efeito [de a] ora requerente mais tratar de fazer a sua transcrição e assim a juntar às Alegações de Recurso.” Três dias depois, a arguida veio esclarecer “que o que pretende tão-somente, o que escreveu e requereu naquele [requerimento] mas com erros, e que era e é o que se queria escrever, tendo em vista a interposição do recurso e à sua motivação, tudo a entregar no prazo legal de 15 dias, prazo que ainda corre, é, sim, que lhe seja ordenada a entrega de cópia das cassetes que têm gravadas a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, para a preparação e fundamentação de facto da dita Motivação do Recurso a interpor e para a respectiva transcrição daquela prova gravada.” Entregues as cassetes à arguida (conforme termo que se encontra fls. 175 dos autos), veio esta apresentar novo requerimento de recurso, em 26 de Junho de
2002, juntando a respectiva motivação e conclusões. Estas conclusões eram do seguinte teor:
«1ª – O Tribunal alicerçou a sua convicção “... nas declarações do assistente e nos depoimentos das testemunhas B. e C., presenciais dos factos, as quais, não obstante serem respectivamente companheira e mãe do assistente, depuseram de forma consistente e credível, não suscitando dúvida quanto à veracidade dos factos relatados. Para a formação da convicção do tribunal contribuíram ainda os depoimentos das testemunhas D., E., F. e G., que constataram a presença de telhas partidas no local e, bem assim, os depoimentos das testemunhas H. e I., as quais, não tendo presenciado os factos, afirmaram que imediatamente após o assistente ter surgido no estabelecimento de café onde se encontravam, dizendo que a arguida lhe andava a partir as telhas, apareceu esta, demonstrando perturbação e falando em voz alta. Nos depoimentos das testemunhas primeiramente referidas se fundou a matéria relativa aos sentimentos experimentados pelo ofendido face às expressões proferidas pela arguida.”
2ª – Ora, salvo o devido respeito por tal douto entendimento, sinceramente, uma melhor audição da prova e dos depoimentos daquelas testemunhas e do próprio assistente – e mais a mais postas as versões em contraposição uma com as outras
–, revelam, pelo contrário, muitas dúvidas, confusão, generalidades diversas e pouca precisão, nenhuma clareza, antes erros entre elas e por eles próprios no que afirmam e logo a seguir, outras instâncias, conforme a coisa lhe é colocada, já de diferente acrescentam ou a seguir corrigem e ou concordam ou discordam conforme a direcção e sentido das perguntas, ou esclarecimentos ou contra-interrogadas a que são sujeitas ou lhe são pedidas.
3ª – O ofendido, assistente e depoente J., declarou: A) “... no dia 12 de Agosto ... entre as 5 e as 6 da tarde vou para as traseiras e estando em conversa com o Sr. L. e a esposa D.ª M., passado um bocado ouvi um barulho esquisito, truz truz ...”; B) “... vi um ferro bastante comprido a bater nas telhas ....”, “... subi as escadas ao cimo da varanda e vi uma senhora a D.ª A. e ela respondeu anda cá meu cabrão, meu cobarde, meu sacana e disse vários disparates ...”, “... desci as escadas e vim para o meu pátio ...”, “... ela continuou a bater ...”, “ ... vi três telhas partidas ...”, “... não houve mais nada nesse dia ...”; C) “ ... nos fins de Setembro, foi por duas vezes ...”, “... e em princípios de Outubro e andava a pôr umas telhas em cima do anexo veio a D.ª A. e o marido Sr. N., do cimo da varanda a chamar os ditos nomes ladrão, cobarde, corno e vários do género. Isto entre o dia 1 e o dia 10 de Outubro; D) E depois desse dia não aconteceu mais nada ...”, “... no dia 26 de Outubro eu vou ao meu Stand e passei pela D.ª A. em frente de uma antiga cerâmica. Entrei em casa e vi a minha mãe no cimo da varanda. Ela contou-me o que se passou à volta das 10/11 horas; E) “O único contacto que tive com a D.ª A. foi passar na estrada ...”, e que “a minha mãe disse que a mãe encontrou a D.ª A. a partir aquilo tudo outra vez, a partir as telhas da casa de banho ...”, e que as telhas partidas, mais lhe acrescentou a sua mãe, foram do lado deles (do lado dos arguidos).
4ª – A testemunha B., companheira em união de facto do primeiro supracitado declarou: A) “... No mês de Agosto de 2000, no dia 12 de Agosto, sábado à tarde, começou a partir telhas, a dizer nomes cabrão, ladrão, cobarde, estava com ele (ofendido e queixoso, J.) no anexo, vi ela do outro lado”. B) “Na quarta feira seguinte, chamei o meu enteado, que veio e tentou fazer um acordo (pretendia mencionar o dito acordo, que segundo o filho do assistente, a testemunha, O., acima identificado, disse que havia tentado obter há meio ano atrás” – contando o calendário, partir da data de audiência: finais de Dezembro de 2001, princípios de 2002 (!!!); C) E, “Foi em Outubro, no princípio, chamou os nomes cabrãozinho, espera lá meu ladrão, e que lhe dava uns tiros e o punha no cemitério. E no mês de Outubro, por várias vezes partiu os mosaicos, foi um sábado à tarde. Sim foi os mosaicos”
(!); D) E, “Nessa ocasião, em Outubro, estávamos dentro de casa e eu ouvi barulho, e fui ver e andava lá a partir a D.ª A.. A 26 de Outubro, andava lá a arranjar, a consertar o telhado, eu até andava a ajudar o Sr. J., eu vi ela da varanda do lado dela a dizer, “... ah ladrão andas a arranjar isso espera lá ...”, e mais acrescentou “foi aí que ela disse que o chumbava e o punha no cemitério”. E) A finalizar, acerca do dia e evento de 26 de Outubro, acrescentou: “ eu vi, estava na companhia do Sr. J., eu vi barulho e fui ver, e depois já foi dizendo
“... só estava a minha sogra presente, que também viu, também fui ver, e havia uns senhores do café, de que eu não sei o nome. Foi num sábado.”
5.ª – A testemunha C., mãe do assistente declarou: A) “vi no primeiro de Outubro, a Sr.ª (referindo-se à arguida) estava em cima de uma varanda mais o marido e começou-lhe a dizer ‘... eh ladrão eh cabrão’. O meu filho estava a arranjar umas telhas. Foi ela a mais o marido que chamou os nomes.”; B) E ainda desta ocasião, do primeiro de Outubro, acrescentou esta testemunha:
“Às 10 horas da manhã, estava na cama e ouvi um barulho e subi a escada acima e andava ela com um ferro, andava a arrancar as telhas”. E “ ... foi ela a mais o marido que foram estragar aquilo ...”. C) A instâncias do Distinto mandatário, Dr. P., advogado do queixoso e ofendido, perguntada se a arguida havia dito cabrão, a testemunha C. respondeu: “isso foi ao 28 ...”. E ainda perguntada se o filho havia ficado triste, respondeu: “o meu filho punha-se a cantar (!).” D) Já, por sua vez, a instâncias e esclarecimentos solicitados pelo defensor da arguida, sobre quem dos Sr. N. e D.ª A. (marido e arguida, respectivamente), disseram os nomes, respondeu a testemunha C.: “disseram os dois”. E mais foi esclarecendo, “no dia 1 ou 2 de Outubro, não se recordando do dia da semana, mas que havia sido o 1.º de Outubro a uma segunda ou uma terça-feira, mas diz “com certeza absoluta de que era 1 de Outubro e em dia de semana”, aqueles dois Sr. N. e Sr.ª A., “falavam os dois um para o outro.” E) E finalmente a esclarecimentos a testemunha C. adianta: do dia e evento de 26 de Outubro, que “... eram 10 da manhã, ainda estava deitada, ouvi o meu filho a subir a escada acima, e andava a D.ª A. a levantar as telhas ...”. “Foram chamar umas testemunhas mas isso foi à tarde, às 2 horas, estávamos a almoçar.”
6ª – Afinal, perguntamos, com que versão ficamos???
7ª – Viram mesmo e estão elas convictas que viram a arguida a destruir o quer que fosse?
8ª – Viram e ouviram a arguida a proferir as expressões de que se encontrava incursa de haver efectivamente em determinado e preciso momento, de modo, tempo e lugar (passe a repetição) como se impõe para a efectiva e boa procedência da acusação como inquestionavelmente provada?
9ª – Sinceramente, salvo o devido respeito pelo Tribunal “a quo” ou Recorrido, não resultou da prova destas testemunhas, alegadamente presenciais das alegadas ou possíveis presenças e actos ilícitos do arguida, não resulta uma mínima e credível certeza de que tal fosse verdade, a crer nas testemunhas e nos seus depoimentos em que se alicerçou o tribunal para condenar a arguida de tudo o que a arguida se encontrava acusada.
10ª – Os depoimentos não batem certos quanto às ou à hora em questão, não se confirma entre elas o avistar e da presença de alguém ou sequer o arguido no interior da Barbearia, ou que a seguir esse alguém, e de entre esse alguém o arguido, tivesse assomado à porta e, mais importante ainda, que tivesse efectivamente vindo do interior do estabelecimento comercial da Barbearia.
11ª – Nem sequer nas horas ou na hora os depoimentos batem certos uns com os outros!!!
12ª – As alegadas testemunhas presenciais e o assistente faltam clamorosamente à verdade por incoerência das histórias parciais e decalcadas que vão contando ao tribunal.
13ª – Sequer pode, que não pode, a douta fundamentação de facto e respectiva motivação colmatar insuficiências da matéria de facto, com elementos factuais de um mal esclarecido alarme social – das conversas e presença da arguida no dito
“Café Q.”, do seu nervosismo e ou conversas havidas ou não entre ela e o arguido
– pois que tal não resultou qualquer outra prova que o alarido que o próprio arguido causou ao fazer uma acusação contra a arguida que as testemunhas por si chamadas não confirmaram, quer da autoria da prática dos crimes de danos quer da autoria da prática dos crimes de injúrias.
14ª – Não mostrando credibilidade a mínima aparência de verdade – consistência do que é real e só tem uma possível descrição, pelo menos igual em quadro geral dos factos relatados – , podemos mais acreditar no que o queixoso e assistente foi depois “vender” a terceiros acerca dos factos que ele imputa, com a colaboração de testemunhos e histórias mal contadas das suas testemunhas de mão???
15ª – Salvo o devido respeito, não se pode acreditar em nada do que eles acusadores – quer-se dizer queixosos e suas testemunhas arroladas ! – vieram expender em sede de audiência de discussão e julgamento. Normas Violadas A Douta Sentença recorrida, salvo o devido respeito, viola o disposto legal nos artigos, 14º, 26º, e 191º do Código Penal e o art.º 127º do Código de Processo Penal. Pedido Nestes termos, deve o recurso vir a ser julgado procedente e provado e a sentença revogada e substituída por decisão em acórdão que absolva a arguida e tudo sob as legais consequências, podendo o Tribunal, caso entenda não dever absolver a arguida, na sequência do recurso da matéria de facto suscitada ordenar a renovação das provas solicitadas ou os demais meios que vierem a ser tidos por necessários, ou com o mesmo fim, reenviar o processo, e tudo sempre sob as legais consequências, nomeadamente sempre conducente à absolvição da mesma arguida.» Notificado para se pronunciar, o Ministério Público veio dizer que a recorrente pedira a disponibilidade das cassetes gravadas “para por sua iniciativa, proceder à transcrição”, tendo, acto contínuo elaborado “a motivação, na qual se incluem excertos pontuais da transcrição por indispensáveis à fundamentação do alegatório”, e que:
«3. Acontece que na ausência da restante matéria probatória produzida em julgamento, o Tribunal da Relação está impedido de proferir decisão por não conhecimento global da referida factualidade. Para tanto, urge se concretize a completa transcrição com simultânea certificação, tarefa que se considera estar cometida ao Tribunal de 1ª instância, a quem os autos devem ser enviados, atento o indicado objectivo, que é imprescindível ao conhecimento decisório do recurso.»
2.Por acórdão de 4 de Dezembro de 2002, o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu rejeitar o recurso, com a seguinte fundamentação:
«(…) No caso em apreciação, uma vez que o recurso se limita à decisão sobre a matéria de facto entendemos que a sua inviabilidade se revela inequívoca, a significar que é manifesta a sua improcedência, impondo-se, assim, a respectiva rejeição, em conformidade com o preceituado no art.º 420º, n.º 1, do C. Pr. Penal, e, em consequência, mostra-se, assim, também prejudicado o conhecimento da referida questão a que alude o Ministério Público respeitante à falta de transcrição da gravação magnetofónica da prova produzida, oralmente, na audiência de discussão e julgamento, na 1ª instância, cfr. acta de fls. 146 e segs. Com efeito, resulta do disposto no art.º 431º, b), do C. Pr. Penal, que havendo documentação da prova, a decisão do Tribunal de 1ª instância só pode ser modificada se esta tiver sido impugnada, nos termos do art.º 412º, n.º 3, do C. Pr. Penal. E este art.º 412º preceitua:
‘3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.’ Ora, no caso, a recorrente não deu satisfação ao ónus previsto na citada al. b) do referido n.º 3, não tendo especificado, como lhe competia, as provas que, no seu entender, impõem decisão diversa da recorrida, sendo certo que tal especificação haveria de fazer-se por referência aos respectivos suportes técnicos, conforme o preceituado no referido n.º 4, ou seja, não indicou a recorrente a localização (início e termo) da gravação das declarações ou depoimentos, a que alude na motivação e respectivas conclusões e através dos quais fundamentou a sua discordância relativamente aos pontos de facto que considerou incorrectamente julgados, na decisão em causa. Assim sendo, estando esta Relação impossibilitada de modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto, a tanto se limitando o recurso, tem-se, sem dúvida, por manifesta a improcedência deste, impondo-se a respectiva rejeição.»
3.A arguida veio então reclamar desta decisão, requerendo a sua “correcção”, invocando nas conclusões deste requerimento, que
«(…) sempre esta Relação, assim entendendo que a arguida podia e devia mencionar especificamente as suas citações por indicação ao “Início e Termo” das cassetes, podia e devia ter, sempre, convidado a recorrente a suprir as suas deficiências, vindo corrigi-las e completá-las.
12.ª Assim se não entendendo e decidindo, como fez o Acórdão proferido por esta Relação, pela imediata rejeição liminar e prévia sem conhecimento da Matéria de facto, e sem que antes tivesse ordenado ao Tribunal de 1.ª Instância, para que este procedesse à transcrição da prova produzida em sede de Audiência e Discussão de Julgamento, sempre incorreu tais interpretações normativas entendidas por este Tribunal relativamente ao cumprimento e sua forma de obediência do artigo 412º do Código de Processo Penal em que se fundamentaram os Ex.mos Senhores Juízes desembargadores e deste tribunal da Relação no, dito, Acórdão, que vimos de CRITICAR, em Inconstitucionalidades Materiais, com a Interpretação Normativa dada ao normativo legal do artigo 412º do Código de Processo Penal, por violação do preceituado no artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
(…) Nestes e nos melhores termos de Direito, requer-se a Vossas Ex.ªs que se dignem conhecer das irregularidades e nulidades do douto Acórdão requerido, por violação e ou omissão do disposto legal (...) de vícios decorrentes, segundos os artigos 425º, n.º 4, ex vi 380º, e sempre este ex vi artigo 374º, todos do Código de Processo Penal, e das alíneas b), c) e d) do n.º 1, e dos n.ºs 3 e 4 do artigo 668º do Código de Processo Civil, por, este Acórdão padecer de Irregularidade de Fundamentação de Direito e Nulidade da Fundamentação de Direito e das suas Normas Legais aplicadas in casu, e assim não se entendendo, sempre ordenando a Correcção do Acórdão IN CASU, e sempre, por este padecer de Inconstitucionalidades Materiais por violação do n.º 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, por interpretação normativa desta Relação dada ao normativo legal do artigo 412º do Código de Processo Penal, referido no Acórdão em causa, que motivou e fundamentou a Rejeição do recurso.» A reclamação foi indeferida por acórdão de 23 de Abril de 2003, no qual se pode ler, sobre a questão de constitucionalidade:
«(…) Finalmente, a reclamante suscita a questão da inconstitucionalidade material da interpretação dada, por este Tribunal da Relação, ao referido art.º 412º do C. Pr. Penal, por violação do preceituado no art.º 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, desde logo, por ter decidido, como decidiu, sem sequer, previamente, ter convidado a recorrente a suprir as suas referidas deficiências. Também padece de razão a reclamante, no que a tal respeita. Com efeito, como é sabido, o direito ao recurso, muito embora se trate de um direito/garantia fundamental, o qual não pode ser restringido a não ser nos apertados limites previstos no art.º 18º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, pode e deve, no entanto, não só ser regulamentado, mas também disciplinado e adaptado à realidade processual, por forma a que não conflitue com direitos da mesma matriz, funcione de modo eficaz e se desenvolva e se concretize sem abuso, pelo que à lei ordinária cabe, inequivocamente, fixar os pressupostos ou condições de exercício dos recursos (…) Daí que o legislador na sua actividade de regulamentação, conquanto não possa, em princípio, actuar por forma a afectar ou a modificar o conteúdo essencial daquele direito fundamental, não só por tal redundar em verdadeira restrição, como por constituir uma inversão da ordem constitucional, pode, no entanto, concretizá-lo e discipliná-lo, designadamente, através da imposição de condições ao seu exercício, posto que não atinja com elas o seu conteúdo essencial, isto
é, desde que não estabeleça imposições ou condicionalismos que impeçam o seu regular exercício. Aliás, a propósito desta questão suscitada, pela reclamante, já o Tribunal Constitucional se pronunciou, no douto Acórdão de 18.06.2002, publicado no DR, II Série de 13.12.2002, nos seguintes termos:
“não são inconstitucionais, à luz do disposto nos artigos 18º, 20º, n.º 1, e
32º, n.º 7, todos da Constituição, as normas do artigo 412º, n.º s 3 e 4, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o assistente impugne a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 e no n.º 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal tem como efeito o não conhecimento daquela matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir o vício dessa falta de indicação, se também da motivação do recurso não constar tal indicação.” E, por todo o exposto, sem necessidade de mais considerações, acorda-se em indeferir a reclamação apresentada pela recorrente.»
4.A arguida veio então interpor o presente recurso de constitucionalidade, “ao abrigo do disposto legal do artigo 70.º, alíneas a), b) e c), ex vi alínea f)” da Lei do Tribunal Constitucional, visando a apreciação
“das normas do art. 412º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal quando interpretadas, como o foram no douto Acórdão inicial recorrido de 4/12/2002, no sentido como aí foi Decidido e Entendido.
- para aí se remete e tudo aqui se dá por reproduzido para os legais efeitos, nomeadamente por se haver decidido no dito douto Acórdão não conhecer do Recurso da primeira instância, por alegada não satisfação ao ónus de indicação e especificação das provas que impunham decisão diversa da recorrida por referência aos respectivos suportes técnicos, ou seja, a localização do início e termo da gravação das respectivas declarações ou depoimentos, a que se aludiu na motivação e conclusões – com a consequência de que a falta de tal indicação, nas conclusões da motivação de recurso em que se impugne matéria de facto, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3, e no n.º 4 daquele preceito, tem como efeito o não conhecimento daquela matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir tais deficiências.” A recorrente concluiu as suas alegações de recurso nos seguintes termos:
“1.ª: A arguida e recorrente fundamentou e alegou as provas que, no seu entender, impunham uma decisão diversa, que se passam a citar e que se encontram escritos em sede de Motivação e Alegações escritas do Recurso expedido a este Tribunal, e assim citados, no contexto da formulação das suas alegações: SOBRE:
«I – Os Pontos de Facto Incorrectamente Julgados;
2.ª: e com base nos ditos Pontos a recorrente pronunciou-se em consonância e SOBRE: «II – Provas que Impõem Decisão Diversa da Recorrida.»;
3.ª: ora, assim havendo levado à Motivação de Recurso em sede de Alegações escritas sempre inquestionavelmente a recorrente deu cabal e integral bom cumprimento ao preceituado legal do artigo 412.º do Código de Processo Penal,
4.ª: pois que a arguida sempre cumpriu com o que lhe era minimamente exigível: lançando mão nas cassetes da audiência de discussão e julgamento, depois das ouvir, e conjugadas com os seus apontamentos escritos tomados durante as sessões de julgamento, motivou correcta e adequadamente o seu Recurso, indicando e citando os pontos de facto das declarações e testemunhos que impunham uma decisão diversa da que foi tomada em sede de Sentença do Tribunal de 1.ª Instância.
5.ª: Ora, humana e tecnicamente mais não era exigível à arguida e recorrente: com recurso do seu leitor de cassetes e ouvindo as respectivas cassetes e com auxílio das notas tomadas no decurso das sessões de audiência de julgamento ela cumpriu com o comando legal do art.º 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal.
6.ª: Seria exigível à arguida que tivesse um leitor de cassetes que contasse as voltas? E que tivesse um contador? E, um leitor que fosse igual e da mesma marca
do que o do Tribunal? E que a arguida fosse contando as cassetes com um cronómetro? E como deveria assinalar e indicar a posição nas cassetes das declarações e dos depoimentos? Como se conta o início? Onde e como nas cassetes se indica que é o meio? E onde começa e acaba o fim das cassetes?
7.ª: Ora, salvo o muito devido respeito ao Acórdão do Tribunal da Relação, a interpretação dada ao n.º 4 do art.º 414.º do Código de Processo Penal, de que se impõe um ónus à arguida de indicação ou de voltas ou de início ou termo, é um absurdo?
8.ª: Ora, salvo o devido respeito, só faltou dizer ao Tribunal da Relação, que a arguida devia haver, contra legem, ela própria ter efectuado a dita Transcrição.
9.ª: O douto Acórdão recorrido, devia era sempre antes haver ordenado ao Tribunal da 1.ª Instância que desse cumprimento ao legal preceituado no acima citado artigo 101.º do Código de Processo Penal, pois o Tribunal da Relação de Coimbra – Tribunal de Recurso - estava, como está, inibido de conhecer o recurso da arguida e assim não se podendo logo pronunciar, QUANTO À MATÉRIA DE FACTO impugnada em que se fundou a motivação nessa parte do Recurso da sentença do dito Tribunal recorrido de Ansião.
10.ª: Ora, não havendo em consonância com o citado normativo do artigo 101.º do Código de Processo Penal, o douto Acórdão recorrido, que depois se requereu a sua CORRECÇÃO – por vícios de lei, do Código de Processo Penal e do Código de Processo Civil -,
11.ª: e encontrando-se a recorrente e arguida Impedida Justamente – vid. artigo
146º do Código de Processo Civil -, de fundamentar as suas alegações e citações da Matéria de facto Impugnada, por falta dessa transcrição,
12.ª: ela arguida, e recorrente penal, não só, em primeiro lugar, estava de todo em todo impedida de fazer e obedecer ao cumprimento de acordo com a interpretação normativa – segundo o Douto Acórdão – de proceder em acordo com uma “ ... especificação ...” que “... haveria de fazer-se por referência aos respectivos suportes técnicos, conforme o preceituado no n.º 4, ou seja, não indicou a recorrente a localização (início e termo) da gravação das declarações ou depoimentos, a que alude na motivação e respectivas conclusões e através dos quais fundamentou a sua discordância relativamente aos pontos de facto que considerou incorrectamente julgados, na decisão em causa.»,
13.ª: pois que não se havia dado lugar à Transcrição – como a parte final do n.º
4 do art.º 412.º impõe.
14.ª: Ou, em alternativa, a Relação de Coimbra, em ordem a assegurar à arguida a possibilidade e efectivação do conhecimento do seu Recurso devia, pelo menos, ter, convidado a recorrente a suprir as suas deficiências, vindo corrigi-las e completá-las.
15.ª: Mas, em perfeita obediência ao comando Constitucional do n.º 1 do art.º
32.º da C.R.P., o Tribunal da Relação de Coimbra podia e devia, logo até em primeiro lugar, haver proferido Acórdão com proferição de nulidade do julgamento da 1.ª Instância por esta não haver dado cumprimento à Transcrição para escrito das cassetes gravadas das declarações e testemunhos produzidos em sede da audiência de discussão e julgamento,
16.ª: para que, no caso de a arguida entender Recorrer da Matéria de Facto, como fez, pudesse dar cumprimento estrito e mínimo da indicação, por referência aos suportes magnetofónicos das declarações ou depoimentos, a que aludiu na motivação e respectivas conclusões e através dos quais fundamentou a sua discordância relativamente aos pontos de facto que considerou incorrectamente julgados, na decisão em causa.
17.ª: Assim se não entendendo e decidindo, como fez o Acórdão proferido por esta Relação, mas havendo-se inclinado pela imediata rejeição liminar e prévia sem conhecimento da Matéria de facto, e sem que antes tivesse ordenado ao Tribunal de 1.ª Instância, para que este procedesse à transcrição da prova produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, ou em alternativa, convidasse a recorrente a suprir as suas alegadas insuficiências,
18.ª: sempre, de qualquer dos modos, tal interpretação normativa dada por este Tribunal, relativamente ao cumprimento e sua forma de obediência das disposições conjugadas dos n.ºs 3, alín. b) e 4 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, em que se fundamentaram o Tribunal da Relação de Coimbra de rejeição liminar do Recurso Interposto pela arguida e recorrente,
19.ª: incorreu em Inconstitucionalidade Material, por violação do preceituado no artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.» Por sua vez, o Ministério Público concluiu as suas contra-alegações da seguinte forma:
“1 – O direito ao recurso, ínsito no princípio constitucional das garantias de defesa, envolve a possibilidade de o arguido provocar a reapreciação das decisões condenatórias, incluindo a decisão proferida acerca da matéria de facto.
2 – Cabe à lei de processo definir os requisitos ou condições processuais ou adjectivas de exercício do direito ao recurso, podendo condicioná-lo ao cumprimento de certos ónus ou formalidades, apenas estando vedado ao legislador infraconstitucional a prescrição de exigências funcionalmente inadequadas aos fins do processo ou o estabelecimento de cominações ou preclusões claramente desproporcionadas.
3 – Constitui exigência desproporcionada a que se traduz em cominar, para certa insuficiência ou deficiência formal das conclusões apresentadas pelo arguido recorrente, a rejeição liminar do recurso, sem lhe possibilitar o aperfeiçoamento dos vícios formais detectados, ligados exclusivamente à apresentação, exposição ou condensação de uma impugnação, deduzida em termos concludentes e inteligíveis no âmbito da motivação do recurso.
4 – Porém, os princípios constitucionais do acesso ao direito e do direito ao recurso não implicam que ao recorrente deve ser facultada oportunidade para aperfeiçoar, em termos substanciais, a própria motivação do recurso deduzido quanto à matéria de facto, quando seja manifesto, pelo teor da motivação apresentada, que a impugnação deduzida não se mostra fundamentada, em termos inteligíveis, concludentes e fundamentados.
5 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.” Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
5.O presente recurso vem intentado ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1
“alíneas a), b) e c) ex vi alínea f)”, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (abreviadamente Lei do Tribunal Constitucional). Começando pelo recurso previsto nesta alínea a), está ele previsto para decisões judiciais que “recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade”. Não se detecta, porém, na decisão recorrida qualquer recusa de aplicação de uma norma, com fundamento em inconstitucionalidade, razão pela qual não podem considerar-se preenchidos os pressupostos desta espécie de recurso. Não se tomará, pois, conhecimento do recurso enquanto interposto ao abrigo desta alínea. Quanto ao recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea “c) ex vi alínea f)” do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, parece com tal referência pretender a recorrente interpor recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra por ter aplicado norma “cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo” com o fundamento previsto na alínea c) – isto é, violação de lei com valor reforçado. Consultando o requerimento e as alegações de recurso verifica-se, porém, que o recorrente não invoca a contrariedade com qualquer “lei com valor reforçado”, no sentido relevante para efeitos da referidas alíneas f) e c), mas apenas com a Constituição da República Portuguesa. Trata-se, pois, de um recurso de constitucionalidade, e não de ilegalidade, razão pela qual também se não tomará conhecimento do recurso interposto ao abrigo da referida alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
6.Resta o recurso interposto ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), deste diploma. Aceitando que se encontram verificados os respectivos requisitos – e, designadamente, que não era exigível à recorrente a suscitação da questão de constitucionalidade num momento anterior àquele em que foi efectuada –, há que passar ao conhecimento do recurso. Este tem por objecto a apreciação da constitucionalidade das normas do artigo
412º, n.ºs 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de que a falta de indicação, na motivação de recurso em que se impugne matéria de facto, das menções exigidas nesses n.ºs 3 e 4, tem como efeito o não conhecimento desta matéria, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir tais deficiências.
7.É a seguinte a redacção do artigo 412º do Código de Processo Penal:
“Artigo 412º
(Motivação do recurso e conclusões)
1 – A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
2 – Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.
5 – Havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente, nas conclusões, quais os que mantêm interesse.” Importa notar que, no presente recurso, não está em causa qualquer falta de menções apenas nas conclusões do recurso – como as exigidas pelo n.º 2 deste artigo –, mas a falta das especificações exigidas nos n.ºs 3, alínea b), e 4, quer nas conclusões, quer no próprio texto da motivação do recurso. Por outro lado, é claro que não está em causa a questão de saber a quem competia efectuar a transcrição das provas gravadas e se o processo deveria ter sido devolvido à 1ª instância para esse efeito – questão suscitada pelo Ministério Público no Tribunal da Relação e que foi considerada prejudicada pela decisão recorrida, que se baseou apenas na falta das indicações exigidas pelos referidos n.ºs 3 e 4, para concluir pela manifesta improcedência do recurso (note-se, aliás, que a própria recorrente havia requerido a entrega das cassetes – que foi efectuada –, para o efeito de preparar a motivação de recurso, “mais tratar de fazer a sua transcrição e assim a juntar às Alegações de Recurso”). A questão da transcrição – e de eventual ordem ao Tribunal de 1.ª Instância, para que procedesse à transcrição da prova produzida –, também suscitada pela recorrente nas alegações de recurso, tem, pois, de considerar-se fora do âmbito do presente recurso de constitucionalidade. Este visa apenas apurar se é inconstitucional a interpretação dos n.ºs 3, alínea b), e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal no sentido de que a falta da especificação nele exigida, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências. Segundo a recorrente, tal interpretação é violadora do artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República.
8.O Tribunal Constitucional ainda não tratou desta questão de constitucionalidade com referência a um recurso do arguido – como o que está em causa no presente caso. Isto, embora exista abundante jurisprudência sobre a constitucionalidade da rejeição de recursos (designadamente em processo penal e contra-ordenacional), quando o recorrente não tenha cumprido determinados ónus, e, mesmo, uma decisão sobre a dimensão normativa em causa, num recurso interposto pelo assistente – o Acórdão n.º 259/2002, publicado no DR, II série, de 13 de Dezembro de 2002 (aliás, citado pelo acórdão recorrido). Neste aresto recenseou-se aquela numerosa jurisprudência e concluiu-se pela inexistência de inconstitucionalidade, com a fundamentação que a seguir se transcreve, na parte relevante:
«10.1. Assim, no Acórdão n.º 275/99, de 5 de Maio (publicado no Diário da República, II Série, n.º 161, de 13 de Julho de 1999, p. 10157), o Tribunal Constitucional decidiu julgar inconstitucional, por violação dos artigos 20º e
32º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 690º, n.º 3, do Código de Processo Civil (na redacção anterior à resultante dos Decretos-Leis n.º s
329/A-95 e 180/96, subsidiariamente aplicável em processo penal ainda regido pelo Código de 1929), quando, para o efeito de decidir que certa alegação não contém conclusões – o que implica o não conhecimento do recurso –, ela se interpreta em termos de considerar relevante um critério baseado exclusivamente no número das conclusões formuladas ou das páginas por elas ocupadas, bem como julgar inconstitucional o artigo 690º, n.º 3, do Código de Processo Civil (na redacção anterior à resultante dos Decretos-Leis n.ºs 329/A-95 e 180/96, subsidiariamente aplicável ao processo penal ainda regido pelo Código de 1929), por violação do princípio da proporcionalidade, consagrado nos n.ºs 2 e 3 do artigo 18º, com referência ao direito de acesso à justiça e aos tribunais, consagrado no artigo 20º da Constituição, quando interpretado no sentido de que a consequência aí prevista do não conhecimento do recurso se não restringe à parte das conclusões que se mostra efectivamente afectada. No Acórdão n.º 532/2001, de 4 de Dezembro (publicado no Diário da República, II Série, n.º 23, de 28 de Janeiro de 2002, p. 1802), o Tribunal Constitucional reiterou o julgamento de inconstitucionalidade formulado no acórdão n.º 275/99, de 5 Maio.
10.2. Já no Acórdão n.º 288/2000, de 17 de Maio (Proc. n.º 395/00), ainda inédito, o Tribunal Constitucional decidiu julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, a interpretação normativa do art. 412º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que atribui ao deficiente cumprimento dos ónus que nele se prevêem o efeito da imediata rejeição do recurso, sem que ao recorrente seja facultada oportunidade processual de suprir o vício detectado.
10.3. No Acórdão n.º 337/2000 (publicado no Diário da República, I Série-A, n.º
167, de 21 de Julho de 2000, p. 3480), o Tribunal Constitucional decidiu declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, da norma constante dos artigos 412º, n.º 1, e 420º, n.º 1, do Código de Processo Penal (na redacção anterior à Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto), quando interpretados no sentido de a falta de concisão das conclusões da motivação implicar a imediata rejeição do recurso, sem que previamente seja feito convite ao recorrente para suprir tal deficiência.
10.4. Também no Acórdão n.º 401/2001, de 26 de Setembro (publicado no Diário da República, II Série, n.º 258, de 7 de Novembro de 2001, p. 18422 ss), o Tribunal Constitucional decidiu julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, o artigo 412º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) daquele preceito tem como efeito a rejeição liminar do recurso, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir tais deficiências. Neste último aresto cita-se numerosa jurisprudência relativa a questões conexas com a que estava a ser apreciada, tendo-se dito nomeadamente o seguinte:
“[...] Assim, pelo Acórdão n.º 337/00 (publicado no DR, I Série-A, de 21 de Julho de
2000), declarou-se a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da interpretação dos artigos 412º, n.º 1, e 420º, n.º 1, do Código de Processo Penal segundo a qual a falta de concisão das conclusões da motivação leva à rejeição do recurso interposto. No já citado Acórdão n.º 56/01, referiu-se que, tendo o artigo 412º, n.º 2, do Código de Processo Penal, em interpretação idêntica à ora em causa, já sido julgado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, em decisão tomada em recurso vindo do Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente podia razoavelmente esperar ser convidado a suprir as deficiências que as conclusões da motivação, acaso, apresentassem, dispensando-se, por isso, do ónus da suscitação da correspondente questão de inconstitucionalidade durante o processo. Noutras decisões – por exemplo, a decisão sumária n.º 117/01 –, foi renovado o julgamento de inconstitucionalidade dos artigos 59º, n.º 3, e 63º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, interpretados no sentido de que o recurso apresentado em processo de contra-ordenação sem conclusões ou com falta de indicação das razões do pedido nas conclusões deve ser imediatamente rejeitado sem que o recorrente seja previamente convidado a suprir a falta, vindo, na sequência desse julgamento em três casos concretos, a inconstitucionalidade de tal norma a ser declarada, com força obrigatória geral, pelo Acórdão n.º 265/01 (DR, I Série-A, de 16 de Julho de 2001). O que apenas pode reforçar, com base na solução desta questão de constitucionalidade – aliás, considerada já «questão simples» para o efeito do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional –, o argumento de maioria de razão para a norma em questão no presente recurso, a que se refere o Acórdão n.º 288/00. E também noutros arestos se tem acentuado que o Tribunal Constitucional não pode
«sufragar uma interpretação normativa assente numa rigidez formal que posterga, desrazoavelmente, as garantias constitucionais consagradas para o processo criminal» (Acórdão n.º 66/01, ainda não publicado; cfr. o Acórdão n.º 284/00, DR, II série, de 8 de Novembro de 2000, no qual se censura a «interpretação normativa que, não tendo uma unívoca decorrência do texto legal, conduz a acentuado formalismo que, por essa via, vai postergar uma garantia constitucional consagrada para o processo criminal»).
8. Ora, é justamente isto o que está em causa no presente recurso. Preceitua o artigo 32º, n.º 1, da Constituição que o processo penal assegura ao arguido todas as garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso. E, como se sabe, a concretização legal de tais garantias constitucionais está submetida ao regime previsto, para os direitos, liberdades e garantias, no artigo 18º da Constituição, incluindo, designadamente, o respeito pela proporcionalidade das suas limitações. Ora, tal como a interpretação do n.º 2 do artigo 412º e do artigo 420º, ambos do Código de Processo Penal, no sentido de a falta de concisão das conclusões da motivação levar à rejeição do recurso interposto pelo arguido, ou a interpretação dos artigos 63º, n.º 1, e 59º, n.º 3, do Regime Geral das Contra-Ordenações no sentido da falta de indicação das razões do pedido nas conclusões da motivação ou a falta das próprias conclusões levar à rejeição liminar do recurso interposto pelo arguido, sem que tenha havido prévio convite para proceder a tal indicação, também a solução normativa ora em questão – equivalente à última referida, aplicada ao processo penal – introduz um efeito cominatório irremediavelmente preclusivo do recurso, sem permitir prévio convite para aperfeiçoamento da deficiência formal detectada. Esta consequência imediata não pode deixar de ser considerada como limitação desproporcionada das garantias de defesa, e em particular do direito ao recurso, do arguido em processo penal, consagradas no artigo 32º, n.º 1, da Constituição. Tal imediato efeito preclusivo não se afigura, nem necessariamente imposto pelo preceito legal aplicável (que apenas se refere a um efeito preclusivo, sem excluir a concessão de oportunidade para suprir a falta detectada pelo órgão judicial), nem – o que é decisivo – justificado por qualquer outro interesse constitucionalmente atendível. Designadamente, não cabe, perante tal afectação das garantias de defesa previstas no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, argumentar com a celeridade processual. Para além de tal objectivo não ser incompatível com a concessão ao recorrente de oportunidade para suprir a deficiência detectada, não é admissível que a sua invocação – ou de outros topoi genéricos – baste para fundar soluções normativas que, como a presente, afectam desproporcionadamente as garantias de defesa do recorrente, na dimensão do direito ao recurso garantido pelo artigo
32º, n.º 1, da Constituição.
[...].”
(…)
11. Vejamos agora a pertinente jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa aos ónus das partes nos recursos de natureza não penal (ou contra-ordenacional).
11.1. No Acórdão n.º 715/96, de 22 de Maio (publicado no Diário da República, II Série, n.º 65, de 18 de Março de 1997, p. 3271), o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucionais as normas constantes do artigo 690º, n.º s
1 e 3, do Código de Processo Civil, que exigem que as alegações terminem pela formulação de conclusões em que se indiquem os fundamentos por que se pede a alteração ou anulação da decisão (n.º 1 do artigo 690º do Código de Processo Civil) e que permitem que, caso as conclusões faltem, sejam deficientes ou obscuras, ou nelas se não especifique a norma jurídica violada, o juiz ou relator convide “o recorrente a apresentá-las, completá-las ou esclarecê-las, sob pena de não se conhecer do recurso” (n.º 3 do artigo 690º do Código de Processo Civil), por entender que elas não afectam substancialmente a defesa contra actos jurisdicionais, apenas impondo uma colaboração do recorrente na melhor formulação do problema jurídico, assegurando, em última instância, a defesa de direitos e a objectividade da sua realização.
11.2. No Acórdão n.º 40/2000, de 26 de Janeiro (publicado no Diário da República, II Série, n.º 243, de 20 de Outubro de 2000, p. 16995), em que estava em causa um recurso interposto em processo administrativo, o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma do artigo 690º, n.º 3, do Código de Processo Civil (na redacção anterior à que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro), “quando interpretada no sentido de que a falta de concisão das conclusões poderá levar à rejeição do recurso, sem que exista um novo convite ao recorrente para o seu aperfeiçoamento”. Nesse aresto, disse o Tribunal Constitucional, nomeadamente, que “não existe seguramente em nenhum caso tal direito constitucionalmente garantido a um segundo convite. E isto é tanto mais assim, fora do processo penal e contra-ordenacional, quando não há sequer um direito constitucionalmente garantido ao recurso de decisão jurisdicional”.
11.3. No Acórdão n.º 374/2000, de 13 de Julho (publicado no Diário da República, II Série, n.º 285, de 12 de Dezembro de 2000, p. 19897), proferido num processo de natureza administrativa, considerou o Tribunal Constitucional não ser inconstitucional a norma do artigo 668º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, com referência ao n.º 4 do artigo 690º do mesmo Código, tendo dito nomeadamente o seguinte:
“[...] no caso em apreço - o que está em causa é o conteúdo mesmo das conclusões da alegação, ou seja, o facto de elas visarem, não a sentença recorrida, mas o acto administrativo inicialmente impugnado por via contenciosa, facto de onde o STA extraiu a conclusão de que o recurso não tinha por referência aquele que, no entender desse Tribunal, seria o objecto admissível de um recurso jurisdicional
- já que são as conclusões finais que delimitam o objecto do recurso. Ora, pretende o recorrente, em todo o caso, e no fundo, que uma interpretação do artigo 690º, n.º 4, do CPC, que não abranja, na obrigação de convite aí referida, esta situação, é inconstitucional, pelo que da omissão desse convite resulta a violação de um dever do tribunal, implicando a ocorrência da nulidade processual prevista e sancionada pela alínea d) do n.º 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil. Esta a questão de constitucionalidade agora em apreço. No entanto, a verdade é que há todo o lugar para distinguir entre os dois tipos de situações, postos em evidência, a saber: um, em que (para além de se tratar de processo punitivo) se está perante deficiências relativas apenas à
«formulação» das conclusões; e o outro, em que as «deficiências» são imputadas ao próprio conteúdo daquelas, resultando naturalmente de considerações que lhes são logicamente anteriores e são relativas à definição do objecto do recurso. Ora, nesta segunda situação (que é a do caso presente), tendo ela a ver com a identificação da questão posta ao tribunal - identificação essa que se não afigura deficiente, ambígua, obscura, complexa ou contraditória, e, a esse nível, não põe ao mesmo tribunal qualquer dificuldade de entendimento - não se vê que a Constituição possa impor àquele qualquer dever de convidar o interessado a corrigir ou completar a peça processual em causa (ou as suas conclusões). O tribunal há-de, naturalmente, poder extrair dessa peça as ilações que, em seu critério, ela impõe: isto é, há-de logo poder, a partir dela, emitir o seu julgamento. E se o tribunal conclui, porventura, em termos ou num sentido que o interessado julga juridicamente incorrecto, o que então ocorrerá (do ponto de vista deste último) é um «erro de julgamento»: do facto, porém, de este haver eventualmente decorrido do modo como o mesmo interessado enunciou ou pôs certa questão numa peça processual, não pode ele (o interessado) pretender que, antes da decisão, haveria de ter sido convidado a corrigir tal peça. Assim, em qualquer caso, e por último, não colhe a arguição de inconstitucionalidade das normas do artigo 668º, n.º 1, alínea d), com referência ao artigo 690º, n.º 4, do Código de Processo Civil, no entendimento que lhe foi dado no caso, pelo acórdão do STA de 6 de Março de 1998, sub judicio. Na verdade, não se vê como tais normas, nesse entendimento, violem, seja o artigo 20º (direito de acesso aos tribunais), seja, muito menos, o artigo
205º, n.º 1 (fundamentação das decisões judiciais), da Constituição.
[...].”
11.4. No Acórdão n.º 403/2000, de 27 de Setembro (publicado no Diário da República, II Série, n.º 286, de 13 de Dezembro de 2000, p. 19953), em que se apreciou a conformidade constitucional da exigência, constante do artigo 72º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho de 1981, de arguição de nulidades da sentença no próprio requerimento de interposição do recurso, sob pena de extemporaneidade, disse o Tribunal Constitucional o seguinte:
“[...] Sem prejuízo de, nas suas alegações, invocar tais nulidades como fundamentos do recurso, a exigência dessa invocação no próprio requerimento possibilita ao tribunal recorrido a sua mais rápida e clara detecção e consequente suprimento. Trata-se de formalidade que, sobretudo quando o requerimento de interposição do recurso e as alegações constam da mesma peça processual, pode parecer excessiva e inútil, mas que ainda se justifica por razões de celeridade e economia processual. Em terceiro lugar, refira-se que, além de não ser anómala face ao sistema processual civil e de se justificar por razões de economia e celeridade processual, a interpretação acolhida no acórdão recorrido não implica a constituição, para o recorrente, de um pesado ónus, que pudesse dificultar de modo especialmente oneroso o exercício do direito ao recurso. Ao interpor o recurso, sabe certamente a parte vencida quais os fundamentos do recurso que pretende invocar: assim sendo, a exigência de que os indique no próprio requerimento em nada constitui uma incumbência que não possa levar a cabo ao interpor o recurso. Tanto mais que, se se considerarem os prazos de interposição dos recursos, eles são perfeitamente razoáveis (artigo 75º do Código de Processo do Trabalho de 1981). Finalmente, alega o recorrente que a solução do acórdão recorrido é drástica, dado que optou pela solução do não conhecimento do objecto do recurso, por extemporaneidade, em vez de ter «admitido a possibilidade de o recorrente aperfeiçoar o requerimento de interposição do recurso», ou de «começar por dar ao recorrente a possibilidade de regularizar o requerimento» (cfr. parecer junto a fls. 1218 e segs.). Simplesmente, não pode considerar-se incluído, dentro do direito ao acesso aos tribunais, o direito à obtenção de um despacho de aperfeiçoamento, quando se verifiquem obstáculos ao conhecimento do objecto do recurso: casos há (vários, aliás, no Código de Processo Civil: cfr., por exemplo, artigos 687º, n.º 3, 1ª parte, ou 690º, n.º 3) em que, por impossibilidade de suprimento do vício, pela gravidade deste, ou por razões de disciplina da própria actividade processual, se justifica que o recorrente sofra imediatamente as consequências do inadequado exercício do direito ao recurso, sem lhe ser dada uma segunda oportunidade para o exercer adequadamente. Não se verificando qualquer justo impedimento para a não arguição atempada das nulidades da sentença, a possibilidade de convite à parte para sanar o vício, que o recorrente reivindica como corolário do princípio pro actione, enquadra-se ainda dentro da liberdade de conformação do legislador.
[...].”
11.5. No Acórdão n.º 122/2002, de 14 de Março (Proc. n.º 447/01), ainda inédito, o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo
690°-A do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de o recorrente, sob pena de rejeição do recurso tocante à matéria de facto, dever apresentar, em separado da alegação que produz, a transcrição dactilografada das passagens da gravação em que funda o erro na apreciação das provas. Lê-se o seguinte, no texto desse acórdão:
“[...] Cumprirá, desde logo, assinalar que, por se situar fora dos seus poderes cognitivos, este Tribunal não se pode pronunciar sobre a questão de saber se a interpretação levada a efeito pelo acórdão recorrido é a única, ou, ao menos, a mais consonante com o teor do n.º 2 do art° 690º-A em apreço. Incumbe-lhe, isso sim, saber se a norma resultante daquela interpretação é ofensiva do Diploma Básico, o que equivale a dizer que a questão ora sub iudicio consiste em dilucidar se será conflituante com a Constituição – designadamente por violação do que se preceitua no seu artigo 20° – um preceito que exija ao recorrente que impugna a matéria de facto em processo cujos meios probatórios constaram de gravação nele realizada e sob pena de rejeição do recurso, que proceda à transcrição, em escrito separado da alegação, das passagens da gravação em que se esteia.
5. O direito processual constitui um encadeamento de actos com vista à consecução de um determinado objectivo, qual seja o de se obter uma decisão judicial que componha determinado litígio o que, consequentemente, impõe, por um lado, que as «partes» assumam posições equiparadas para desfrutarem de igualdade processual para discretear sobre as razões de facto e de direito apresentadas por uma e outra (cfr., sobre o ponto, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil I, 364 e 365, e Acórdão deste Tribunal n.º 223/95, publicado na
2ª Série do Diário da República, de 27 de Junho de 1995); e, por outro lado para se alcançar uma justa e equitativa decisão, mister é que haja determinada disciplina para, além do mais, se conseguir que a composição do litígio se não
«perca» por razões ligadas a um livre alvedrio das mesmas «partes», alvedrio esse que, no limite, poderia conduzir a uma «eternização» de actos com repercussão na não razoabilidade da tomada de decisão em tempo útil. Daí que o processo, todo o processo – aqui se incluindo obviamente, o processo civil –, para além de dever ser um due process of law (vejam-se, entre outros, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 249/97 e 514/98, publicados na 2ª Série do jornal oficial de, respectivamente, 17 de Maio de 1997 e 10 de Novembro de
1998), tenha de obedecer a determinadas formalidades que, elas mesmas, não podem deixar de ser consideradas, numa certa perspectiva, como constituindo, inclusivamente, factores ou meios de segurança, quer para as «partes», quer para o próprio tribunal. As formalidades processuais ou, se se quiser, os formalismos, os ritualismos, os estabelecimentos de prazos, requisitos de apresentação das peças processuais e efeitos cominatórios, são, pois, algo de inerente ao próprio processo. Ponto é, porém, que a exigência desses formalismos se não antolhe como algo que, mercê da extrema dificuldade que apresenta, vai representar um excesso ou uma intolerável desproporção que, ao fim e ao resto, apenas serve para acentuadamente dificultar o acesso aos tribunais, assim deixando, na prática, sem conteúdo útil a garantia postulada pelo n.º 1 do artigo 20° da Constituição. Afora casos como esse, a exigência das formalidades processuais não poderá, desta arte, ser vista como a prescrição de obstáculos à livre e desmedida actuação processual das «partes». Na interpretação conferida pelo aresto sub specie à norma ínsita no n.º 2 do art° 690º-A do Código de Processo Civil (e viu-se já que este Tribunal não poderá, no caso, aquilatar da sua «bondade» em sede de direito ordinário), o mesmo entendeu que, como acima se transcreveu, a transcrição em escrito dactilografado a apresentar em separado da alegação tinha um intuito louvável, justamente porque evitaria «a confusão que resultaria da sua inclusão na alegação de recurso», O que vale por dizer que, na óptica do tribunal a quo, aquela apresentação, no fundo, tinha por escopo facilitar a tarefa, quer do tribunal, quer dos próprios intervenientes processuais, maxime as «partes», que, dessa sorte, mais facilmente descortinariam os pontos de divergência sobre a matéria de facto invocados pelo recorrente. Sendo isto assim, então há-de concluir-se que a exigência alcançada pela interpretação sub specie constitucionis não se revela:
– por uma banda, desprovida de qualquer sentido útil, antes apresentando uma finalidade disciplinadora do processo, com o escopo de facilitar a missão do tribunal e dos próprios intervenientes processuais;
– por outra, como constituindo uma acentuada dificuldade imposta às «partes» , por isso que, na realidade das coisas, o labor de transcrição em escrito dactilografado das passagens da gravação em que o recorrente se funda é equivalente, quer ela ocorra em escrito separado, quer na própria peça processual da alegação;
– por outra, ainda, que seja desconforme com a justiça e equidade que devem ser apanágio do processo, como vertente do direito de acesso aos tribunais, ou uma diminuição das garantias dos recorrentes, pois que a dita exigência, de todo em todo, não coarcta a possibilidade de eles desfrutarem da possibilidade de acesso
à impugnação da matéria fáctica.
[...]”.
11.6. Ressalta desta jurisprudência que, no domínio não penal (ou contra-ordenacional), o Tribunal Constitucional tem entendido que do artigo 20º, n.º 1, da Constituição não decorre um genérico direito à obtenção de um despacho de aperfeiçoamento. Ao analisar os vários preceitos legais que consagram ónus processuais, tem o Tribunal Constitucional procurado averiguar se, por um lado, a consagração desses ónus se reveste de alguma utilidade, não redundando em mero formalismo, e se, por outro lado, o cumprimento de tais ónus se não reveste de excessiva dificuldade para as partes. Estando verificadas as duas condições, não resultaria violado o direito de acesso aos tribunais ou o princípio da proporcionalidade. Particularmente nítidos, a este se propósito, se revelam os Acórdãos n.º s
403/2000, de 27 de Setembro, e 122/2002, de 14 de Março, que não consideram constitucionalmente exigível proferir um despacho de aperfeiçoamento quando o recorrente não tenha, respectivamente, arguido nulidades da sentença no próprio requerimento de interposição do recurso ou apresentado, em separado da alegação que produz, a transcrição dactilografada das passagens da gravação em que funda o erro na apreciação das provas: não só porque a consagração de tais ónus prossegue uma finalidade atendível, como também porque dela não decorrem especiais dificuldades para o recorrente. Uma outra situação parece justificar ainda que não seja proferido despacho de aperfeiçoamento, a ela se aludindo no Acórdão n.º 374/2000, de 13 de Julho: aquela em que, da análise da peça processual oferecida pelo recorrente, decorre que se não está perante o deficiente cumprimento de um ónus (no caso, perante uma deficiente identificação do objecto do recurso), mas perante um pedido que não pode deixar de improceder. O despacho de aperfeiçoamento, na linha de pensamento deste acórdão, não serviria para o tribunal se substituir à vontade do recorrente, convidando-o a submeter à sua apreciação um objecto diverso.
12. A jurisprudência do Tribunal Constitucional, tanto a relativa aos recursos penais (ou contra-ordenacionais), como a relativa aos recursos não penais, aponta no sentido da não inconstitucionalidade da interpretação perfilhada pelo tribunal ora recorrido e que é, lembre-se, a de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o assistente impugne a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 e no n.º
4 do artigo 412º do Código de Processo Penal tem como efeito o não conhecimento daquela matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir o vício dessa falta de indicação, se também da motivação do recurso não constar tal indicação. Na verdade, e como salienta o Senhor Procurador-Geral Adjunto nas suas contra-alegações, as menções a que aludem as alíneas a), b) e c) do n.º 3 e o n.º 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal não traduzem um ónus de natureza puramente secundária ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão da matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre a matéria de facto. E, como se viu, nem da jurisprudência deste Tribunal relativa aos recursos de natureza penal (ou contra-ordenacional), nem da relativa aos recursos de natureza não penal, pode retirar-se que o despacho de aperfeiçoamento seja uma exigência constitucional, naqueles casos em que o recorrente não tenha, por exemplo, apresentado motivação ou todos os fundamentos possíveis da motivação. Tal equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso. Identicamente, não há-de ao assistente reconhecer-se o direito de, por via de um despacho de aperfeiçoamento, beneficiar de novo prazo para impugnar a decisão da matéria de facto. Por outro lado, e tomando agora por referência a jurisprudência deste Tribunal relativa aos recursos não penais, não pode também considerar-se a interpretação acolhida no acórdão ora recorrido como estabelecendo um ónus desprovido de qualquer utilidade, na medida em que ele está funcionalmente dirigido à delimitação da matéria sobre a qual o tribunal ad quem se há-de pronunciar. Sendo a decisão da matéria de facto cindível, na medida em que existem tantos julgamentos quantos os pontos de facto submetidos à consideração do tribunal a quo, é evidente que, se o recorrente/assistente não cumprir as especificações a que aludem os n.º s 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, o tribunal ad quem desconhecerá a vontade do recorrente e pronunciar-se-á sobre um objecto da sua própria escolha, o que frontalmente contraria a própria ideia de recurso. Finalmente, e tomando ainda por referência esta última jurisprudência, não se vê em que medida tais especificações podem redundar num ónus excessivamente pesado para o recorrente/assistente, já que, pretendendo este impugnar a decisão da matéria de facto, forçosamente há-de saber o que nesta decisão concretamente quer ver modificado, e os motivos para tal modificação, podendo portanto expressá-lo na motivação. Conclui-se assim que não são inconstitucionais, à luz do disposto nos artigos
18º, 20º, n.º 1 e 32º, n.º 7, todos da Constituição, as normas do artigo 412º, n.º s 3 e 4 do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o assistente impugne a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 e no n.º 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal tem como efeito o não conhecimento daquela matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir o vício dessa falta de indicação, se também da motivação do recurso não constar tal indicação.» Já no Acórdão n.º 374/2000 (publicado no DR, II série, de 12 de Dezembro de
2000), este Tribunal, depois de salientar a inconstitucionalidade da intepretação do artigo 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, segundo a qual vícios formais (como a falta de concisão das conclusões) levam à rejeição do recurso interposto, sem haver convite ao recorrente para completar a falta, havia salientado ser diversa a situação em que não está em causa a correcção de
“qualquer falta, deficiência, obscuridade, complexidade ou falta de especificação, detectadas nas conclusões das alegações, ou seja, algo que tem a ver com a formulação das conclusões da alegação”, mas “o conteúdo mesmo das conclusões da alegação”, entendendo que apenas se justifica tal juízo de inconstitucionalidade quando se está “perante deficiências relativas apenas à
‘formulação’ das conclusões”, e não já perante faltas “imputadas ao próprio conteúdo daquelas”. Neste último caso, não se vê que a Constituição possa impor qualquer dever de convidar o interessado a corrigir ou completar a peça processual em causa, ou as suas conclusões.
9.Entende-se que as considerações constantes deste Acórdão n.º 374/2000, e, sobretudo, a fundamentação transcrita, do Acórdão n.º 259/2002, são aplicáveis à norma em apreciação nos presentes autos, em que está em causa a falta, na motivação e nas conclusões do recurso, da especificação exigida pelo artigo
412º, n.ºs 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal – a saber, das provas que impõem decisão diversa da recorrida, especificadas por referência aos suportes técnicos. Com efeito, não está aqui em causa apenas uma certa insuficiência ou deficiência formal das conclusões apresentadas pelo arguido recorrente, isto é, relativa à forma de exposição ou condensação de uma impugnação que é, quanto ao mais, apreensível pela motivação do recurso – falta, essa, para a qual a rejeição liminar do recurso, sem oportunidade de correcção dos vícios formais detectados, constitui exigência desproporcionada. Antes a indicação exigida pela alínea b) do n.º 3 e pelo n.º 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal – repete-se, das provas que impõem decisão diversa da recorrida, por referência aos suportes técnicos – é imprescindível logo para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto, e não um ónus meramente formal. O cumprimento destas exigências condiciona a própria possibilidade de se entender e delimitar a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, exigindo-se, pois, referências específicas, e não apenas uma impugnação genérica da decisão proferida em matéria de facto. Importa, aliás, recordar, por um lado, que da jurisprudência do Tribunal Constitucional não pode retirar-se – nem da relativa aos recursos de natureza penal (ou contra-ordenacional), nem da que versou sobre recursos de natureza não penal – uma exigência constitucional geral de convite para aperfeiçoamento, sempre que o recorrente não tenha, por exemplo, apresentado motivação, ou todos ou parte dos fundamentos possíveis da motivação (e que, portanto, o vício seja substancial, e não apenas formal). E ainda, por outro lado, que o legislador processual pode definir os requisitos adjectivos para o exercício do direito ao recurso, incluindo o cumprimento de certos ónus ou formalidades que não sejam desproporcionados e visem uma finalidade processualmente adequada, sem que tal definição viole o direito ao recurso constitucionalmente consagrado. Ora, é manifestamente este o caso das exigências constantes do artigo 412º, n.ºs 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal, cujo cumprimento (incluindo a referência aos suportes técnicos, com indicação da cassete em causa e da localização nesta da gravação das provas em questão) não é desproporcionado e antes serve uma finalidade de ordenamento processual claramente justificada. Aliás, o modo de especificação por referência aos suportes técnicos é deixado em aberto pelo n.º 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, não tendo, porém, no presente caso, existido sequer qualquer esboço dessa referência – não estando, por outro lado, em causa no presente recurso de constitucionalidade a questão de saber se é exigível um qualquer particular modo de indicação da localização das provas em causa. Não pode, pois, concluir-se que os princípios constitucionais do acesso ao direito e do direito ao recurso em matéria penal impliquem que ao recorrente tivesse sido facultada oportunidade para aperfeiçoar, em termos substanciais, a motivação do recurso deduzido quanto à matéria de facto, quando este não especificou as provas que impunham decisão diversa da recorrida, fazendo-o por referência aos suportes técnicos (e antes se limitando, como no caso, a respigar partes de depoimentos, impugnando genericamente, por “muitas dúvidas, confusão, generalidades diversas e pouca precisão, nenhuma clareza, antes erros entre elas e por eles próprios no que afirmam”, a matéria de facto provada). Como se disse no Acórdão n.º 259/2002, tal “equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso.” Não pode, pois, considerar-se inconstitucional a norma em causa, pelo que deve ser negado provimento ao presente recurso. III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 412º, n.ºs 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências; b) Por conseguinte, negar provimento ao recurso; c) Condenar a recorrente em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 10 de Março de 2004 Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos