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Procº nº 654/2002.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Por sentença proferida em 28 de Maio de 2002 pelo Juiz do 3º Juízo do Tribunal de comarca de Abrantes foram os arguidos A e B absolvidos da prática, que lhes fora imputada por acusação deduzida pelo Ministério Público, de um crime de uso de documento falso, previsto e punível pela alínea a) do nº 1 e nº 3, ambos do artº 256º do Código Penal e condenados, pela co-autoria material, na forma continuada, de um crime de pesca ilegal, previsto e punível pelos artigos 34º, § 2º, 36º, 37º, 54º, 65º e 72º, alínea a), todos do Decreto nº 44.623, de 10 de Outubro de 1962, e ainda, quanto ao arguido A, pela autoria de um crime de falsificação de documento, previsto e punível pela alínea a) do nº 1 e pelo nº 3, ambos do artº 256º do Código Penal, nas penas únicas de cento e dez dias de multa a seis € por dia relativamente ao arguido B e, tocantemente ao arguido A, na pena de multa de seiscentos e quarenta €.
Nessa sentença, foi recusada, por inconstitucionalidade, a aplicação constante do nº 1 do artº 3º do Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro.
Disse-se nessa peça processual, à guisa de fundamentação do juízo de recusa:-
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A moldura legal do crime de pesca ilegal é de pena de 10 a 30 dias de prisão e multa de cem escudos a dois mil e quinhentos escudos (cfr. artº 65º do Decreto n.º 44623, de 10 de Outubro de 1962).
Quanto à pena de prisão a aplicação do art. 3º, n.º 1 do Dec.-Lei n.º
400/82, de 23 de Setembro não é viável, pois ao alterar para o limite mínimo fixado no art. 40º do CP/82 [1 mês: hoje art. 41º] o limiar mínimo da pena de prisão aplicável, faria com que o limiar mínimo da moldura penal coincidisse com o seu limiar máximo (30 dias), conduzindo a uma pena fixa [pena fixa que, aliás, o Tribunal Constitucional já teve oportunidade de, a propósito do art. 67º §
único, julgar inconstitucional - v.DR II, de 24.04.2002, pág. 7623].
Tal pena fixa traduzir-se-ia na violação de princípios materiais constitucionalmente acolhidos, como sejam o da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.
É certo que sempre tais princípios podiam eventualmente não ser violados se fosse caso de aplicação do instituto jurídico da atenuação espacial da pena ou dispensa de pena; no entanto, no caso não se antevê factualidade com virtualidade de desencadear a aplicação desses dois institutos, pelo que se ficaria absolutamente com uma pena fixa e sem alternativa.
Por conseguinte, num juízo de inconstitucionalidade, não se aplicará o citado artº 3º, n.º 1
Por isso, será aplicável a pena de prisão referida cumulativamente com a pena de multa, pois que a pena de multa em quantitativo respeita os limites em causa.
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É da sentença de que parte se encontra transcrita que, pelo Ministério Público, vem, com fundamento na alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, vem interposto o presente recurso.
2. Determinada a feitura de alegações, após se ter circunscrito o objecto do recurso à norma vertida no nº 1 do artº 3º do Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, na parte em se estabelece para as penas de prisão o limite mínimo fixado nos termos do nº 1 do artº 40º do Código Penal, relativamente a disposições legais que estatuem um limite máximo da pena de prisão igual àquele limite mínimo, rematou a entidade recorrente a por si formulada com as seguintes
«conclusões»:-
'1 - Pelas razões constantes do acórdão nº 70/02, para cuja fundamentação inteiramente se remete, é materialmente inconstitucional o estabelecimento pelo legislador penal de uma pena fixa de prisão, decorrente da sobreposição dos limites máximo e mínimo da sanção aplicável ao arguido pelo cometimento de certo tipo penal.
2 - Neste entendimento, é inconstitucional, por violação dos princípios da culpa, da necessidade e da proporcionalidade, a norma constante do artigo 3º, nº
1, do diploma preambular do Código Penal de 1982 (o Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro), enquanto manda aplicar o limite mínimo previsto no nº 1 do artigo
40º do Código Penal, então aprovado (1 mês), a um tipo legal de crime, previsto em legislação avulsa (no caso, o crime de pesca ilegal, previsto e punido pelo artigo 65º do Decreto nº 44 623, de 10 de Outubro de 1962), cuja moldura penal se situa entre 10 e 30 dias de prisão, implicando tal aplicação normativa a criação de uma pena fixa.
3 - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida'.
Cumpre decidir.
3. O artº 65º do Decreto nº 44.623 comina, para o crime de pesca ilegal, uma pena de prisão situada entre os dez e os trinta dias, tendo os arguidos sido considerados incursos no cometimento de tal ilícito, previsto nas disposições combinadas dos artigos 34º, § 2º, 36º e 37º, todos do mesmo diploma.
O diploma aprovador do Código Penal de 1982 - o Decreto-Lei nº
400/82, de 23 de Setembro - veio, inter alia, prescrever do nº 1 do seu artº 3º que ficavam alteradas para os limites mínimo e máximo fixados no nº 1 do artº
40º do corpo de leis que aprovara todas as penas de prisão que tivessem duração inferior ou superior aos limites estabelecidos nesse nº 1.
Significa isso, inquestionavelmente, que o legislador entendeu que, a partir da entrada em vigor do Código Penal de 1982, as disposições penais avulsas que cominassem penas de prisão cujos limites mínimo e máximo desbordassem idênticos limites e que passaram a constar do nº 1 do artº 40º desse Código (e que são, respectivamente, 1 mês e 20 anos), passariam,
«automaticamente», a ser consideradas como consagrando estes últimos.
No caso do ilícito de que os arguidos vieram a ser considerados autores, como o mesmo cominava como limite mínimo da pena de prisão o de dez dias, haveria, ao menos após a entrada em vigor do Código Penal aprovado pelo citado Decreto-Lei nº 400/82, de entender-se que tal limite mínimo passou a ser o de trinta dias.
Simplesmente, atendendo a que o limite máximo da pena de prisão previsto para tal ilícito é o de trinta dias, isso redunda em que, dada a coincidência dos limites mínimo e máximo, a pena privativa de liberdade cominada para o ilícito em causa se transfigurou, após a vigência do Código Penal, numa pena fixa, por isso que a pena privativa de liberdade não poderá ser doseada em função de uma diversidade temporal entre aqueles limites.
É esta, pois, a questão de constitucionalidade agora posta à consideração deste Tribunal.
4. Ora, tocantemente a uma tal questão - a legitimidade constitucional de estatuição de penas fixas - já teve este órgão de administração de justiça ensejo de se pronunciar.
Assim, e conquanto não reportada à norma ora em apreço (mas sim referentemente ao normativo ínsito no § único do artº 67º do Decreto nº 44.623), o Acórdão deste Tribunal nº 70/2002 (publicado na 2ª Série do Diário da República de 24 de Abril de 2002), dirimiu o conflito jurisprudencial que se surpreendia entre o decidido no Acórdão nº 95/2001 (publicado nos mesmos jornal oficial e Série, de 24 de Abril de 2002) e no Acórdão nº 83/91 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 18º volume, 493 e seguintes), vindo a considerar-se tal normativo desconforme com a Lei Fundamental, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, enquanto dele decorre a aplicação de uma pena fixa ao arguido condenado pelo crime de pesca ilegal em período de defeso, quando concorra uma das circunstâncias agravantes estabelecidas no corpo do referido artº 67º.
Para assim decidir, o Acórdão nº 70/2002 (que veio a ser subscrito pela totalidade dos Juízes deste Tribunal) louvou-se na fundamentação que foi carreada ao citado Acórdão nº 95/2001.
Desta, respigam-se as seguintes asserções:-
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5.1. Como este Tribunal sublinhou no acórdão n.º 83/95 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 30º, página 521), o direito penal, no Estado de Direito, tem de edificar-se sobre o homem como ser pessoal e livre
– do homem que, sendo responsável pelos seus actos, é capaz de se decidir pelo Direito ou contra o Direito. Há-de ser, por isso, um direito penal ancorado na dignidade da pessoa humana, que tenha a culpa como fundamento e limite da pena, pois não é admissível pena sem culpa, nem em medida tal que exceda a da culpa. Ou seja: há-de ser um direito penal de culpa [cf. sobre isto, embora em termos não inteiramente coincidentes, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS (Sobre o Estado Actual da Doutrina do Crime’, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano I, páginas
28 e seguintes) e JOSÉ DE SOUSA E BRITO (‘A lei penal na Constituição’, in Estudos sobre a Constituição, volume 2º, Lisboa, 1978, página 218)]. É um direito penal que só pode intervir para a protecção de bens jurídicos, mas de bens jurídicos com dignidade penal (é dizer: com ressonância ética), sendo que a danosidade social capaz de justificar a imposição de uma punição – como adverte EDUARDO CORREIA (‘Estudos sobre a reforma do Direito Penal depois de 1974’, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 119º, página 6) – há-de ser ajuizada no plano ético-jurídico, e não num plano meramente sociológico.
O direito penal, enquanto direito de protecção, cumpre, por isso, uma função de ultima ratio, pois só se justifica que intervenha, se a protecção dos bens jurídicos não puder ser assegurada com eficácia mediante o recurso a outras medidas de política social menos violentas e gravosas do que as sanções criminais [cf. também JORGE DE FIGUEIREDO DIAS (‘O sistema sancionatório no Direito Penal Português’, in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Eduardo Correia, I, Boletim da Faculdade de Direito, número especial, 1984, página 807) e JOSÉ DE SOUSA E BRITO (ob. e loc. cit.)].
A necessidade da pena – que, repete-se, há-de ser uma pena de culpa – limita, pois, o âmbito de intervenção do direito penal, sendo mesmo o critério decisivo dessa intervenção (cf. EDUARDO CORREIA, loc. cit.)
O legislador, que deve observar também um princípio de humanidade na previsão das penas (cf. artigo 25º, nºs 1 e 2, da Constituição), há-de ainda ter em conta que a ideia de necessidade da pena leva implicada a da sua adequação e proporcionalidade. Ou seja: na previsão das penas, deve ele procurar uma justa medida – uma adequada proporção – entre as penas e os factos a que elas se aplicam: a gravidade das penas deve ser proporcional à gravidade das infracções.
O Tribunal, quando teve que ajuizar uma norma penal à luz do princípio constitucional da proporcionalidade, sublinhou sempre que o legislador goza de ampla liberdade na definição dos crimes e no estabelecimento das penas correspondentes. E sublinhou, bem assim, que, nessa matéria, ele só pode censurar, ratione constitutionis, as decisões legislativas que contenham incriminações arbitrárias ou punições excessivas: é que, no Estado de Direito, o legislador está vinculado por concepções de justiça; ora, o princípio de justiça impede-o de actuar arbitrariamente ou de forma excessiva [cf. neste sentido, entre outros, o citado acórdão n.º 83/95 e os acórdãos nºs 634/93 e 480/98
(publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volumes 26º, página 205, e
40º, página 507) e 108/99 (publicado no Diário da República, II série, de 1 de Janeiro de 1999)].
Em síntese: como sublinha EDUARDO CORREIA (loc. cit.), ‘o ponto de referência de um conceito material de crime supõe sempre que o agente seja merecedor da pena’. E esta ideia – sublinha o mesmo Autor – tem de ser conjugada com a ideia de necessidade social. E citando SAX, acrescenta: ‘necessidade da pena como o caminho mais humano para proteger certos bens jurídicos. Merecedor da pena como qualidade de alguém que a deva sofrer’.
O que se disse resulta, aliás, entre outros, dos seguintes artigos da Constituição: do artigo 1º, que baseia a República na dignidade da pessoa humana; do artigo 18º, n.º 2, que condiciona a legitimidade das restrições de direitos à necessidade, adequação e proporcionalidade das mesmas; do artigo 25º, n.º 1, que sublinha a inviolabilidade da integridade pessoal; e do artigo 30º, n.º 1, que proíbe penas ou medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida.
5.2. O princípio da culpa, enquanto princípio conformador do direito penal de um Estado de Direito, proíbe – já se disse – que se aplique pena sem culpa e, bem assim, que a medida da pena ultrapasse a da culpa.
Trata-se de um princípio que emana da Constituição e que, na formulação de JOSÉ DE SOUSA E BRITO (loc. cit., página 199), se deduz da dignidade da pessoa humana, em que se baseia a República (artigo 1º da Constituição), e do direito de liberdade (artigo 27º, n.º 1); e, nos dizeres de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, vai buscar o seu fundamento axiológico ‘ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal: o princípio axiológico mais essencial à ideia do Estado de Direito democrático’ (Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, página 73).
Pois bem: um direito penal de culpa não é compatível com a existência de penas fixas: de facto, sendo a culpa não apenas princípio fundante da pena, mas também o seu limite, é em função dela (e, obviamente também, das exigências de prevenção) que, em cada caso, se há-de encontrar a medida concreta da pena, situada entre o mínimo e o máximo previsto na lei para aquele tipo de comportamento. Ora, prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não pode, na determinação da pena a aplicar ao caso que lhe é submetido, atender ao grau de culpa do agente – é dizer: à intensidade do dolo ou da negligência.
A previsão pela lei de uma pena fixa também não permite que o juiz, na determinação concreta da medida da pena, leve em consideração o grau de ilicitude do facto, o modo de execução do mesmo e a gravidade das suas consequências, nem tão-pouco o grau de violação dos deveres impostos ao agente, nem as circunstâncias do caso que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele.
Ora, isto pode ter como consequência que o juiz se veja forçado a tratar de modo igual situações que só aparentemente são iguais, por, essencialmente, acabarem por ser muito diferentes. Ou seja: prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não tem maneira de atender à diferença das várias situações que se lhe apresentam.
Mas, o princípio da igualdade – que impõe se dê tratamento igual a situações essencialmente iguais e se trate diferentemente as que forem diferentes – também vincula o juiz.
A lei que prevê uma pena fixa pode também conduzir a que o juiz se veja forçado a aplicar uma pena excessiva para a gravidade da infracção, assim deixando de observar o princípio da proporcionalidade, que exige que a gravidade das sanções criminais seja proporcional à gravidade das infracções.
Por isso, a norma legal que preveja uma pena fixa viola o princípio da culpa, que enforma o direito penal, e o princípio da igualdade, que o juiz há-de observar na determinação da medida da pena. E pode violar também o princípio da proporcionalidade. E isto é assim, quer a pena que a norma prevê seja uma pena de prisão, quer seja uma pena de multa.
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal Português cit., página 193), depois de dizer que decorre da Constituição que a determinação da pena exige cooperação – ‘mas também, por outro lado, uma separação de tarefas e de responsabilidades tão nítida quanto possível – entre o legislador e o juiz’, sublinha que ‘uma responsabilização total do legislador pelas tarefas de determinação da pena conduziria à existência de penas fixas e, consequentemente,
à violação do princípio da culpa e (eventualmente também) do princípio da igualdade’.
Este Tribunal, no seu acórdão n.º 202/2000 (publicado no Diário da República, II série, de 11 de Outubro de 2000), debruçou-se sobre a norma constante do artigo 31º, n.º 10, da Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto – que mandava aplicar a pena fixa de interdição do direito de caçar por um período de cinco anos àquele que caçasse em zonas de regime cinegético especial em épocas de defeso ou com o emprego de meios não permitidos – e concluiu que a mesma era inconstitucional, por violar os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.
Escreveu-se aí:
‘Deve, pois, reconhecer-se que a cominação, pela norma em análise, de uma pena fixa, de quantum legalmente determinado sem possibilidade de individualização de acordo com as circunstâncias do caso concreto, não se acha em conformidade com a exigência de que à desigualdade da situação concreta (do facto cometido e das suas ‘circunstâncias’) corresponda também uma diferenciação da sanção penal que lhe é aplicada, e que esta seja proporcional às circunstâncias relevantes de tal situação concreta.
Os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade implicam, na verdade, o juízo de que a cominação de uma pena de interdição do direito de caçar invariável de cinco anos para o ‘crime de caça’ do artigo 31º, n.º 10, da Lei n.º 30/86 é materialmente inconstitucional’.
5.3. Importa, então, saber se a norma sub iudicio prevê uma pena fixa, pois, tal sucedendo, ela é constitucionalmente ilegítima nos termos que se deixaram apontados.
5.3.1. Este Tribunal, no seu acórdão n.º 83/91 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 18º, páginas 493), apreciou, justamente, a norma constante da parte final do parágrafo único do artigo 67º do Decreto n.º 44.623, de 10 de Outubro de 1962, na parte em que determina que, no caso de pesca em período de defeso, quando concorra a circunstância agravante de o facto haver sido praticado de noite, deve ser aplicado o máximo da pena.
Sublinhou-se nesse aresto que ‘não se nega, em tese geral, que os princípios da igualdade e da proporcionalidade possam implicar o juízo de que a cominação de penas criminais fixas quanto a certo crime por uma concreta norma jurídica seja tida por materialmente inconstitucional’. Acrescentou-se que ‘não se crê igualmente que destes princípios constitucionais tenha que decorrer necessariamente, de forma directa ou indirecta, a ilegitimidade constitucional de todas as chamadas penas fixas’. Mais adiante, o aresto ponderou que, ‘no domínio do direito penal económico ou do direito penal de defesa do ambiente e da ecologia, pode aceitar-se, em casos pontuais e para certos tipos de infracções, a cominação de penas fixas, ainda que o juiz possa sempre recorrer aos meios gerais de suspensão da pena ou mesmo de dispensa da pena. Nessa medida, só tendencialmente as penas serão fixas’. Transcreve, a seguir, uma passagem de um estudo de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS (‘Breves Considerações Sobre o Fundamento, o Sentido e a Aplicação das Penas em Direito Penal Económico’, in Direito Penal Económico, CEJ, Coimbra, 1985, página 40), em que o Autor afirma que, ‘em âmbitos determinados do direito penal económico’, ‘de acordo com a ideia de que a este direito não compete só uma função de protecção de bens jurídicos, mas também de promoção de valores económico-sociais no seio da comunidade’, a lei pode, legitimamente, proibir o juiz de impor ‘uma pena inferior ao limite mínimo ditado pela culpa’, mas sem que essa proibição possa ir tão longe ‘que impeça a proporcionalidade entre a pena e a infracção, quando esta seja de pequena gravidade’, pois, de contrário, ‘estaria a ultrapassar-se o limite máximo permitido pela culpa, em homenagem a razões de pura prevenção geral negativa ou de intimidação o que seria, além do mais, duplamente inconstitucional por irremissível violação do princípio da culpa, imposto pelos artigos 1º, 13º e 25º, n.º 1, da Constituição; e inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade das sanções no direito penal económico, reconhecido sem quaisquer limitações pelo artigo 88º da nossa Lei Fundamental’.
No dito aresto, acrescentou-se, a seguir a essa transcrição, o seguinte:
‘Nesta linha de pensamento, não se crê que possa afirmar-se [...] que a cominação desta pena fixa concreta, quando surja uma circunstância agravante específica, viole intoleravelmente os princípios da culpa ou da proporcionalidade das sanções à gravidade das infracções’.
Passando à justificação desta conclusão e começando por se encarar as coisas à luz do princípio da igualdade, escreveu-se no aresto:
‘Por um lado, não pode falar-se, no caso sub iudicio, de violação do princípio da igualdade, na medida em que a norma desaplicada considera manifestamente um grau de culpa que normalmente se verifica no comum dos casos de pesca ilegal nocturnas nos períodos de defeso, sendo certo que acentuado. Seja como for, tal norma (ou outras normas do diploma) não impede, de forma absoluta, que o juiz adeqúe a sanção à gravidade da infracção, de harmonia com os ditames da justiça distributiva’.
E, mais adiante:
‘No presente processo, e de forma decisiva, há-de considerar-se [...] que ‘só em via de princípio’, ou seja, tendencialmente, se pode ter por fixa a cominação de penas prevista nesta legislação sobre fomento da piscicultura e da defesa da pesca nos rios, já que ‘(...) nada obsta a que no caso, desde que tal se justifique, se proceda à atenuação especial da pena (artigos 73º e 74º do Código Penal) ou mesmo à dispensa da pena (artigo 75º do mesmo Código). [..] Quer dizer, a norma sancionatória, devidamente interpretada no contexto sistemático do Código Penal, não conduz a resultados arbitrários, nem implica necessariamente uma igualdade de tratamento perante situações diversas de agentes com acentuadas diferenças de grau de culpabilidade. Na verdade, como se viu, não pode sustentar-se que a norma proíba de forma absoluta que o juiz estabeleça uma diferenciação na aplicação de sanções quanto a arguidos em situações materialmente diferentes, dando assim acolhimento à ideia de diversificação, em detrimento de uma ideia de tratamento uniforme, encarada, em princípio, pelo legislador’.
A seguir, apreciando a norma à luz do princípio da proporcionalidade, ponderou o acórdão:
‘Por outro lado, o estabelecimento de uma pena tendencialmente fixa nestes casos não pode considerar-se que viole o princípio da proporcionalidade, o qual postula, no Direito Penal, que a gravidade das sanções deve ser proporcional à gravidade das infracções. A melhor interpretação da norma desaplicada não acarreta um resultado que possa qualificar-se como manifesta violação do princípio da proporcionalidade, visto que o juiz dispõe sempre, como se viu, da possibilidade de recorrer a institutos de natureza geral como o de atenuação especial da pena e o da dispensa de pena, evitando que se atinjam, em concreto, resultados intoleráveis ou gravemente chocantes, ‘em homenagem a razões de pura prevenção geral negativa ou de intimidação’, para se utilizarem as expressões de Figueiredo Dias, no passo atrás transcrito. Acresce que a pena cominada para o comum dos casos se afigura como razoavelmente proporcionada ao conjunto de comportamentos recondutíveis a este específico tipo criminal, no comum dos casos da vida, não tendo este Tribunal razões para censurar a opção do legislador neste caso concreto.
Reafirma-se, assim, que tal pena tendencialmente fixa não ofende o princípio da proporcionalidade da sanção à gravidade da infracção, isto dando por adquirido que a eliminação do antigo artigo 88º da Constituição na segunda revisão constitucional, em 1989, não traduziu uma diferente valoração do legislador constitucional sobre os princípios básicos do Direito Penal, em especial do Direito Penal Económico [...]’.
Por fim, olhando a norma então sub iudicio sob a perspectiva do princípio da culpa, o aresto acrescentou:
‘Por último, também para aqueles que sustentam que está constitucionalmente consagrado o princípio da culpa em matéria penal, tão-pouco se pode dizer que a cominação de penas fixas, com o sentido de tendencial fixidez atrás exposto, possa conduzir a uma ‘irremissível violação do princípio da culpa’, de novo se utilizando a expressão de Figueiredo Dias, atrás transcrita. É que, já se viu, continua a reconhecer-se ao juiz uma apreciável intervenção na adequação da sanção ao agente, em função dos resultados apurados no julgamento, admitindo-se que seja determinada uma atenuação especial da pena ou, até, a dispensa de pena. O juiz não está limitado a condenar ou a absolver o arguido. No caso de ter de condenar, não tem necessariamente de lhe aplicar uma sanção rigidamente fixa, como mero efeito da lei. [...] Se é verdade que, em linha de princípio, se deve preferir um sistema de mobilidade das penas cominadas para cada tipo criminal, entre um mínimo e um máximo fixados na lei, de forma a que o juiz possa graduar a pena à gravidade da infracção e à culpabilidade do agente, não se pode dizer que o estabelecimento de uma pena tendencialmente fixa prive de todo em todo o juiz de levar em conta a individualidade concreta do agente e as específicas circunstâncias de cada caso, como atrás se viu. Também aqui se pode dizer que não é violado o princípio da culpa, dando como suposto que o mesmo tem consagração constitucional. Tudo isto para concluir que não se mostram, assim, violados pela norma em análise os princípios constitucionais de igualdade e de proporcionalidade das sanções criminais’.
O Tribunal retomou a doutrina deste acórdão n.º 83/91, aplicando-a no caso sobre que incidiu o acórdão n.º 441/93 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 25º, página 643). Estava aí em causa uma contraordenação
[prevista e punível pelo artigo 14º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º
357/87, de 17 de Novembro], consistente na construção de um muro em blocos de cimento e na pavimentação de um terreno, dentro dos limites da Área de Paisagem Protegida do Litoral de Esposende, sem previamente se ter obtido a necessária autorização do director daquela Área.
Escreveu-se então:
‘E na eventualidade de se vir a alcançar com tal operação redutora uma coima de montante não variável, dir-se-á, na linha de fundamentação desenvolvida no acórdão n.º 83/91, Diário da República, II série, de 30 de Agosto de 1991, para o qual agora se remete, que dos princípios constitucionais da justiça, da igualdade e proporcionalidade ‘não decorre necessariamente, de forma directa ou indirecta, a ilegitimidade constitucional de todas as chamadas penas fixas’, não existindo assim um obstáculo constitucional a uma sanção contraordenacional dessa natureza’.
Posteriormente, o Tribunal, em Plenário, no acórdão n.º 175/97
(publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 36º páginas 103), confrontado com uma situação em que o limite mínimo de uma coima passou a ser igual ao seu limite máximo (ou seja, em que a coima passou a ser de montante fixo), recordou a doutrina dos acórdãos nºs 83/91 e 441/93, e citou a passagem que acabou de transcrever-se. Fê-lo, no entanto, não já para se louvar nessa doutrina, mas tão-somente para deixar em aberto a questão de saber se é (ou não) constitucionalmente admissível a fixação pela lei de coimas de montante fixo.
Escreveu-se aí, a esse propósito, o seguinte:
‘Só que, mesmo sem se questionar uma tal jurisprudência – questão que aqui se deixa em aberto –, a verdade é que, in casu, a possibilidade de aplicação de uma sanção não variável implicaria uma frontal contradição com a vontade expressa do legislador no artigo 30º da Lei n.º 30/89, onde se estabelecem os critérios para a graduação e determinação, em concreto, dos montantes das coimas’.
Pode dizer-se, em síntese, que o citado acórdão n.º 83/91 concluiu que a norma, que está sub iudicio nestes autos, não viola o princípio da igualdade, nem o da proporcionalidade, nem o da culpa – e, por isso, não é inconstitucional –, porque, não proibindo o juiz de lançar mão do instituto da atenuação especial da pena ou, sendo caso disso, mesmo do da isenção de pena, o que, ao cabo e ao resto, a norma em causa comina é uma pena tendencialmente fixa. Não uma pena rigidamente fixa. Ora – pondera o aresto –, só este último tipo de pena fixa a Constituição proíbe. Ou seja, ela só proíbe que a lei preveja penas que, no caso de se provar que ‘o arguido agiu ilícita e culposamente, isto é, que é imputável e que não se verifica nenhuma causa de exclusão da ilicitude ou da culpabilidade’, o juiz tenha que aplicar rigidamente, sem poder fazer outra coisa senão absolver ou condenar o arguido, pois, ‘devendo condená-lo, terá de lhe aplicar a pena prevista na lei, sem possibilidade de qualquer graduação’. A Constituição – sublinha o acórdão – não proíbe as penas só tendencialmente fixas, ou seja, aquelas que o juiz, em princípio, não pode graduar, mas em que pode ‘recorrer a institutos de carácter geral, como os da atenuação especial da pena ou da dispensa da pena, para adequar a sanção à personalidade do agente e às circunstâncias apuradas quanto à infracção’.
5.3.2. Pois bem: flui do que se disse atrás (supra, 5.1 e 5.2.) que a proibição constitucional de penas fixas acarreta a ilegitimidade de todas as penas fixas: mesmo daquelas a que o acórdão n.º 83/91 chama penas só tendencialmente fixas.
Decorre, na verdade, dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade a necessidade de a lei prever penas variáveis: é que, só desse modo o legislador abre ao juiz a possibilidade de graduar a pena, fixando-a entre o mínimo e o máximo que a lei prevê, de acordo com todas as circunstâncias atendíveis (grau de culpa, necessidades de prevenção e demais circunstâncias), por forma a punir diferentemente situações que, sendo aparentemente iguais, são, em si mesmas, diferentes, e de modo também a evitar o risco de aplicar penas desproporcionadas às infracções cometidas, tendo em consideração todo o quadro que envolveu a prática de cada uma delas. Ou seja: só prevendo o legislador penas variáveis, pode o juiz adequar a pena à culpa do agente, às exigências de prevenção e, bem assim, às demais circunstâncias que ele deve considerar para encontrar, em concreto, a pena ajustada a cada caso.
Esse resultado não o pode, com efeito, o juiz atingir, lançando mão do instituto da atenuação especial da pena ou, sendo o caso, do da dispensa de pena, a que faz apelo o acórdão n.º 83/91 para ver consagrada, na norma sub iudicio, uma pena que, tão-só tendencialmente, é uma pena fixa, e não uma pena rigidamente fixa: é que, desde logo, a atenuação especial da pena pressupõe que a pena (de prisão ou de multa) aplicável ao caso seja variável (cf. o artigo 73º do Código Penal); e, depois, supõe a ocorrência de um quadro de circunstâncias com valor fortemente atenuativo (‘quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou necessidade da pena’, diz o n.º 1 do artigo 72º do mesmo Código). E, quanto à dispensa de pena, também só pode recorrer-se a ela, quando, estando em causa uma infracção de pequena gravidade
(recte, uma infracção punível com prisão não superior a seis meses, ou só com multa não superior a cento e vinte dias), o juiz verificar que são ‘diminutas’
‘a ilicitude do facto e a culpa do agente’; que o ‘dano’ já foi ‘reparado’; e que ‘à dispensa de pena’ se não opõem ‘razões de prevenção’ (cf. o artigo 74º do mesmo Código).
Estes mecanismos são, de facto inaptos para – como se escreveu no citado acórdão n.º 202/2000, a propósito da atenuação especial da pena – ‘dar conta da necessária adequação da pena em concreto às circunstâncias a considerar
– à culpa do agente e às necessidades de prevenção’.
Recorrendo, de novo, aos dizeres do acórdão n.º 202/2000:
‘Não pode aceitar-se o argumento de que, interpretando a norma em causa como prevendo uma pena apenas ‘tendencialmente fixa’ ela não viola o princípio da igualdade e da proporcionalidade, do qual decorre que a gravidade das penas (e das medidas de segurança) há-de ser proporcional à gravidade das infracções, encaradas sob o ponto de vista, respectivamente, da culpa e das necessidades de prevenção geral (e, para aquelas medidas, da prevenção especial, perante a perigosidade do agente).
E, mais adiante, ponderou ainda o mesmo acórdão n.º 202/2000:
‘A admissão de que o recurso a estas possibilidades, previstas na lei geral – de atenuação especial da pena e de dispensa de pena –, bastaria para permitir a graduação, no caso concreto, de uma pena prevista na lei como de duração fixa, assim a tornando proporcional às circunstâncias deste, se coerentemente seguida, conduziria, aliás, à conclusão da desnecessidade de previsão de quaisquer molduras penais abstractas, satisfazendo-se as exigências constitucionais da igualdade e da proporcionalidade através daqueles institutos gerais’.
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5. Os considerandos que acima se encontram amplamente transcritos são aplicáveis à situação ora sub specie, não se divisando que a «especialidade» desta decorrente (isto é, o facto de a pena fixa resultar, não directamente do normativo cominador da infracção e das circunstâncias dela rodeadoras, mas sim da sobreposição de uma outra norma externa ao diploma previsor dessa infracção) se mostre, como sublinha a entidade recorrente, relevante para a análise da questão jurídico-constitucional.
Nestes termos, o Tribunal decide:-
a) Julgar inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade, da culpa, da necessidade e da proporcionalidade, a norma constante do nº 1 do artº 3º do Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, enquanto dela decorre o estabelecimento, para a pena de prisão, do limite mínimo previsto no nº 1 do artº 40º do Código Penal aprovado por aquele diploma, relativamente a um tipo legal de crime previsto em legislação avulsa cuja moldura penal tenha como limite máximo um limite igual ou inferior ao limite mínimo consagrado no mesmo nº 1 do artº 40º:
b) Em consequência, negar provimento ao recurso. Lisboa, 15 de Janeiro de 2003 Bravo Serra Maria Fernanda Palma Mário Torres Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso daCosta