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Proc. n.º 89/03
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Por decisão do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, de 19 de Dezembro de 2002, foi decidido julgar procedente a impugnação judicial que a ora recorrida A., havia deduzido contra a autoliquidação da Taxa de Comercialização dos Produtos de Saúde, referente a Outubro de 2001, no montante de € 3.005,84. Para concluir desta forma aquela decisão recusou aplicação, com fundamento na sua inconstitucionalidade, ao disposto no n.º 3 do artigo 72º da Lei 3-B/2000, de 4 de Abril, na parte em que determina que a taxa de comercialização de produtos de saúde se quantifica tendo por referência o respectivo preço de venda ao consumidor final.
2. Desta decisão foi interposto pelo representante do Ministério Público naquele Tribunal, ao abrigo dos artigos 70º, n.º 1, al. a) e 72º, n.º 1, al. a) e n.º 3 da LTC, o presente recurso obrigatório de constitucionalidade, tendo por objecto a apreciação da constitucionalidade da norma que se extrai “do n.º 3 do artigo
72º da Lei 3-B/2000, de 4 de Abril, na parte em que determina que a taxa de comercialização de produtos de saúde se quantifica tendo por referência o respectivo preço de venda ao consumidor final”, a que a decisão recorrida recusou aplicação com fundamento na sua inconstitucionalidade.
3. Já neste Tribunal foi o representante do Ministério Público notificado para alegar, o que fez, tendo concluído nos seguintes termos:
“1 – O princípio de reserva de lei fiscal, constante do artigo 103º, n.º 2 – conjugado com o artigo 165º, n.º 1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa – apenas implica que a lei – editada ou credenciada pelo Parlamento – que cria determinado imposto deve determinar (para além dos benefícios fiscais e das garantias dos contribuintes) a respectiva incidência e a taxa.
2 – A norma constante do n.º 3 do artigo 72º da Lei 3-B/2000, desaplicada na decisão recorrida, ao determinar que a taxa sobre comercialização de produtos de saúde, ali prevista, incide sobre o volume de vendas de cada produto e tem por referência o respectivo preço de venda ao consumidor final, define, em termos bastantes, a matéria colectável sobre que vão incidir as taxas previstas no n.º
2 do mesmo preceito.
3 – Não viola o princípio da tipicidade ou da legalidade fiscal a circunstância de, vigorando um regime de autoliquidação de tal tributo, o obrigado tributário poder estar em situação de dúvida subjectiva acerca do efectivo preço de venda ao público, praticado no período em causa, carecendo, consequentemente, a referida autoliquidação de assentar num valor presumível ou hipotético.
4 – Tais dificuldades práticas, associadas exclusivamente ao regime de liquidação do tributo, são absolutamente estranhas aos princípios da tipicidade e legalidade fiscal, não podendo naturalmente nelas fundar-se violação da norma constitucional do artigo 103º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, pelo que deverá proceder o presente recurso”.
4. Contra-alegou a recorrida , tendo concluído da seguinte forma:
“A. A denominada «taxa sobre comercialização de produtos de saúde» deve ser materialmente qualificada como um verdadeiro e próprio imposto. B. A definição da base de incidência objectiva do imposto, por um lado, e a respectiva liquidação e cobrança, por outro, não podem ser consideradas separadamente, para efeitos de aplicação do princípio da legalidade, sempre que a determinabilidade da primeira seja posta em causa pelo regime legalmente estabelecido para estas últimas. C. O número 3 do artigo 72º da Lei n.º 3-B/2000, ao estabelecer que o imposto criado seja autoliquidado no momento da introdução dos produtos de saúde no mercado, implica que a referida liquidação seja efectuada pelos respectivos sujeitos passivos sem que estes conheçam o «preço de venda ao consumidor final», ou seja, sem que a base de incidência objectiva seja determinável por tais sujeitos passivos. D. Uma vez que o regime estabelecido no artigo 72º da Lei n.º 3-B/2000 não permite superar a indeterminabilidade da base de incidência do imposto resultante do sistema de autoliquidação legalmente criado, o número 3 daquele artigo é inconstitucional, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 103º da Constituição da República Portuguesa. E. Na medida em que o imposto criado pelo artigo 72º da Lei n.º 3-B/2000 implica uma tributação sobre o rendimento das pessoas colectivas, e o número 3 do mesmo artigo sujeita os respectivos sujeitos passivos ao pagamento de um valor calculado por referência a um preço estabelecido e recebido por outras entidades que não aqueles sujeitos passivos, este último preceito é inconstitucional, por violação do imperativo resultante do número 2 do artigo 104º da Constituição da República Portuguesa, que exige que a tributação das empresas incida fundamentalmente sobre o seu rendimento real”.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação.
5. É o seguinte o teor da norma a que foi recusada aplicação (em itálico):
“Artigo 72°
(Taxa sobre comercialização de produtos de saúde )
1 - Os produtores e importadores, ou seus representantes, de produtos de saúde colocados no mercado ficam sujeitos ao pagamento de uma taxa de comercialização destinada ao sistema de garantia da qualidade e segurança de utilização daqueles produtos, à realização de estudos de impacte social e acções de formação para os agentes de saúde e consumidores, a realizar pelo INFARMED - Instituto Nacional de Farmácia e do Medicamento.
2 - A taxa a que se refere o número anterior é de: a) Produtos farmacêuticos homeopáticos, dispositivos médicos não activos e dispositivos médicos para diagnóstico in vitro - ,4%;
b) Cosméticos e produtos de higiene corporal - 2%.
3 - A taxa incide sobre o volume de vendas de cada produto, tendo por referência o respectivo preço de venda ao consumidor final, constituindo receita própria daquele Instituto, e sendo o seu valor pago, mensalmente, com base nas declarações de vendas mensais, nos termos e com os elementos a definir pelo mesmo Instituto.
4 – [...]”
6. A decisão recorrida entendeu que a norma em causa violava o princípio da legalidade, fundamentando, assim, esse entendimento:
“[...] A criação dos tributos, como já se afirmou, e está estabelecido na referida norma constitucional, encontra-se sujeita ao princípio da legalidade tributária, segundo o qual o estabelecimento de tributos está sujeit[o] a reserva de lei, quer no âmbito formal quer no âmbito substancial; e neste último caso, por ter de ser a lei a estabelecer a incidência e a taxa (pelo menos o núcleo essencial desses elementos) de modo a que se verifique a susceptibilidade de previsão e definição objectiva da obrigação tributária, sem que ocorra a necessidade de os órgãos de aplicação do direito introduzirem critérios ou elementos subjectivos – próprios ou de terceiros – na determinação do tributo devido. Ou seja, o princípio da legalidade tributária materializa-se, para além da reserva de lei, também na tipicidade e determinação (sobre a questão cf. Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, pg.328, ss.). Ora o que resulta do artº 72 da Lei 3-B/2000 é uma indeterminação da base de incidência do tributo pois que se determina que devendo o mesmo ser pago pelo responsável pela introdução do produto no mercado, no momento dessa introdução, através de autoliquidação, a quantificação do tributo se faça por referência ao preço de venda ao consumidor final que é um valor no momento desconhecido e que o sujeito passivo (e que tem de autoliquidar) desconhece e não domina em absoluto. Tal referência valorativa só teria cabimento num sistema de preços fixos em que o introdutor no mercado sabe de antemão qual irá ser o valor do preço de venda ao consumidor final (e a tal não será alheio o facto de o referido artº 72 ter sido, nessa parte, decalcado do estabelecido para a taxa de comercialização dos medicamentos – DL 282/95 – esquecendo-se, porém, o legislador que aqui, ao contrário dos medicamentos, não vigora o preço administrativamente fixado).[...]”
Por seu turno, a recorrida entende que há, igualmente, violação do princípio da tributação do rendimento real.
Vejamos.
7. Da alegada violação do princípio da legalidade tributária (artigo 103°, n.º
2, da Constituição)
7.1. Importará, antes de mais, começar por evidenciar que não compete ao Tribunal Constitucional tomar qualquer posição sobre a questão de saber qual é a melhor interpretação da norma desaplicada. De facto, dada a natureza da intervenção do Tribunal Constitucional no âmbito do processo de fiscalização concreta, em recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, restrita à apreciação da questão de constitucionalidade da norma cuja aplicação foi recusada, não está em causa neste recurso a determinação de qual a “melhor interpretação” da norma infraconstitucional desaplicada. A este Tribunal cumpre, apenas, aferir a compatibilidade com a Constituição da interpretação normativa recusada pela decisão recorrida, designadamente, tratando-se de recurso da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, com os princípios e normas constitucionais invocados naquela decisão recorrida, bem como, no caso concreto, na alegação do recorrido.
7.2. A decisão recorrida, não obstante a designação utilizada pela norma- “taxa sobre comercialização de produtos de saúde” –, considerou o tributo em causa como imposto, “na medida em que, em relação ao sujeito passivo, não se verifica qualquer nexo sinalagmático entre o tributo e as actividades financiadas pelo mesmo”, o que se admite, não se afigurando indispensável aprofundar a discussão sobre tal qualificação. Por outro lado, aquela decisão assentou o juízo de inconstitucionalidade do segmento da norma que desaplicou na “indeterminação da base de incidência do tributo”. Está, então, em causa o princípio da legalidade, na dimensão relativa à determinabilidade do tributo.
O princípio da legalidade tributária consta do n.º 2 do artigo 103° da Constituição, o qual estatui que “os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes”.
É, assim, claro que cabe ao legislador delimitar a incidência dos impostos, entendida no sentido da definição de todos os pressupostos de cuja articulação resulta a constituição da obrigação fiscal e do seu quantum, nomeadamente definindo não apenas o pressuposto de facto, gerador da obrigação fiscal, mas também os sujeitos da obrigação e os elementos que concorrem para definição da matéria colectável.
Neste contexto, a determinabilidade do imposto, resultante dos princípios do Estado de direito e da segurança jurídica, funciona como parâmetro em relação ao qual se aferirá, nomeadamente, a constitucionalidade das normas de incidência, colocando-se a questão de saber qual o grau de densificação que deve ser assegurado aos interessados. Tais normas têm de garantir um mínimo de segurança jurídica quanto à previsibilidade e calculabilidade do encargo fiscal, embora não seja indispensável que forneçam sempre ao contribuinte a possibilidade de cálculo exacto do seu encargo fiscal.
Mas se isso é assim quanto àqueles elementos essenciais, já, por outro lado, se entende que não cabem na reserva parlamentar de lei fiscal, nem estão sujeitas
às exigências do princípio da legalidade, as normas que se refiram apenas a mecanismos procedimentais ou processuais, nomeadamente as normas sobre o lançamento, a liquidação e a cobrança de impostos.
7.3. Analisemos, então, a conformidade da norma constante do número 3 do artigo
72º da Lei n.º 3-B/2000 com o princípio da legalidade tributária, tal como atrás delimitado. Esta conformidade há-de, porém, ser aferida em relação à norma tal como interpretada na decisão recorrida que a desaplicou - isto é, como exigindo que a matéria colectável se apure “tendo por referência o respectivo preço de venda ao consumidor final” (e não tal como fora “interpretada” pelo INFARMED, interpretação que, aliás, a decisão recorrida entendeu ilegal).
Ora, ainda que nesta dimensão, pode concluir-se que não há violação do princípio da legalidade tributária, consagrado no artigo 103º, n.º 2, da Constituição.
De facto, determinados os produtos sujeitos ao imposto, as entidades que o devem pagar e as taxas respectivas (como o faz o artigo 72º da Lei n.º 3-B/2000) e definindo-se que a “taxa sobre comercialização de produtos de saúde” incide sobre o volume de vendas de cada produto, tendo por referência o respectivo preço de venda ao consumidor final, estão fixados, em termos que satisfazem as exigências do princípio da legalidade tributária, não só a incidência do imposto, mas também a sua matéria colectável. Estamos, assim, perante normas que permitem conhecer, com segurança, o “an” e o “quantum” do tributo em causa, isto
é os pressupostos de facto, os sujeitos e a taxa - o que, aliás, não é contestado -, bem como, com previsibilidade e determinabilidade suficientes, a matéria colectável - o volume de vendas de cada produto, com referência ao seu preço de venda ao consumidor final.
Dir-se-á, porém, que, no momento da colocação dos produtos no mercado, poderá não estar ainda definitivamente estabelecido o preço de venda ao consumidor final, desconhecendo os “produtores e importadores, ou seus representantes, de produtos de saúde” tal preço. Não será assim nos casos em que, no âmbito de contratos de fornecimento, existam cláusulas que obriguem os clientes daqueles produtores ou importadores a informá-los dos preços de venda aos consumidores finais que praticam; também assim não será nos casos em que os produtos são vendidos a clínicas, hospitais ou outros estabelecimentos de saúde, mediante preços fixados no âmbito de concursos públicos, em que aqueles estabelecimentos surgem como consumidores finais; e, por último, ainda assim não será nos casos em que, eventualmente, exista um preço de venda ao público ou um preço fixo. Mas, mesmo nos restantes casos, não é possível afirmar que o encargo fiscal se torne indeterminável, e, consequentemente, que deixe de satisfazer as exigências constitucionais do princípio da legalidade fiscal. É que, mesmo quando os preços de venda ao consumidor final - que, de acordo com a interpretação recorrida, devem ser tidos como referência - possam ainda apresentar algumas variações
(que, aliás, tenderão naturalmente a compensar-se no tempo – uma vez que não é estatisticamente razoável que variem sempre no mesmo sentido) não deixam, por isso, de ser previsíveis, sendo mesmo, normalmente, determinados, dado o conhecimento das margens de comercialização existentes. Aliás, a não ser assim, e a serem imprevisíveis e indetermináveis os preços de venda ao consumidor final
(ou as quantidades a produzir, importar ou vender), dificilmente se poderia manter o exercício da actividade empresarial em causa.
Acresce que, apesar da alegada indeterminabilidade do tributo, a recorrente não deixou de proceder a uma autoliquidação (e pagamento) que, posteriormente, impugnou. Mas, mesmo que tal autoliquidação tivesse de assentar num valor meramente presumível ou hipotético, já não estaríamos perante uma situação de indeterminabilidade do tributo, com violação do princípio da legalidade, consagrado no n.º 2 do artigo 103º da Constituição. Ao invés, estaríamos apenas perante um simples problema de liquidação, alheio ao princípio da legalidade fiscal.
Assim, há que concluir que a norma contida no n.º 3 do artigo 72° da Lei n.º
3-B/2000, de 4 de Abril, não viola o princípio da legalidade tributária, consagrado no n.º 2 do artigo 103º da Constituição.
8. Da alegada violação do princípio da tributação do rendimento real
Entende ainda a recorrida que a norma em causa “sujeita os respectivos sujeitos passivos ao pagamento de um valor calculado por referência a um preço estabelecido e recebido por outras entidades que não aqueles sujeitos passivos”, sendo “inconstitucional, por violação do imperativo resultante do número 2 do artigo 104º da Constituição da República Portuguesa”.
Não tem, porém, razão, como sucintamente se verá.
A Constituição prevê no seu artigo 104º algumas regras sobre a tributação do rendimento, do património e do consumo. No que se refere à tributação do rendimento das empresas, estatui que ela incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real, não excluindo, portanto, que outros princípios – por exemplo, universalidade, igualdade, praticabilidade e operacionalidade - possam ser invocados para justificar algum desvio àquela tributação do rendimento real, visando atingir o objectivo do sistema fiscal que é o de satisfazer “as necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas” e obter “uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza” (artigo 103º, n.º 1, da Constituição).
Acontece, porém, que, no caso concreto, nem sequer se torna necessário invocar a possibilidade de um tal desvio, uma vez que o tributo em causa está fora do
âmbito de aplicação do princípio em causa, dado que não tem a natureza de um imposto sobre o rendimento - não incide sobre o rendimento, tal como normativamente modelado -, tratando-se antes de um tributo gerado pelos condicionalismos específicos da introdução no mercado, para consumo, de determinados produtos de saúde.
Assim sendo, há que concluir que a norma contida no n.º 3 do artigo 72° da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril, também não viola um princípio da tributação do rendimento real, tal como consagrado no artigo 104º, n.º 2, da Constituição.
9. Em suma: não é inconstitucional a norma constante do n.º 3 do artigo 72° da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril. Esta foi, aliás, a conclusão a que igualmente se chegou no acórdão n.º 127/2004, tirado em Plenário.
III. Decisão
Nestes temos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do n.º 3 do artigo 72° da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril; b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida em consonância com o presente juízo de constitucionalidade.
Lisboa, 9 de Março de 2004
Gil Galvão Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Luís Nunes de Almeida