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Processo n.º 763/02
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto Acordam em conferência no Tribunal Constitucional I. Relatório Por sentença de 22 de Outubro de 2002, o Tribunal Cível da Comarca do Porto procedeu à graduação dos créditos reclamados, nos termos dos artigos 871º, n.ºs
1 e 2, do Código de Processo Civil, pela A, em autos que correram por apenso a acção executiva para pagamento de quantia certa intentada contra B e outro. Notificado da sentença, o Ministério Público pretendeu interpor recurso desta decisão, 'nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 70º, nº1, al. g) e
72º, nº3, ambos da Lei n.º 28/82, de 15/11', dizendo que
'a sentença ora em recurso ao graduar o crédito da segurança social à frente do crédito hipotecário, violou pois a declarada inconstitucionalidade com força obrigatória geral do art.º 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 09/05 e do art.º 2º do Decreto-Lei nº 512/76, 03/07, na interpretação segundo a qual o referido privilégio imobiliário geral neles conferido à segurança social, prefere à hipoteca, nos termos do art-º 751º do C.Civil, decretada pelo Ac. do Tribunal Constitucional, nº 363/2002, publicado no D.R. Iª-A, nº 239, de 16 de Outubro de
2002.' Por despacho de 6 de Novembro de 2002, o relator no tribunal a quo decidiu não admitir o recurso de constitucionalidade, pois 'o Tribunal não aplicou qualquer norma já anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, pela simples razão de que na mesma não foi tomada qualquer posição sobre os créditos mencionados', dizendo:
'a verificação do crédito reclamado pela Segurança Social foi levada a cabo na primeira dessas sentenças, enquanto a verificação do crédito hipotecário reclamado pela A ocorreu na segunda. Nesta mesma sentença – a de fls. 109 e seguintes, proferida em 23/05/2000 – procedeu-se à graduação do crédito hipotecário então reclamado, cotejando-o com aqueles outros créditos (entre os quais se encontrava o da Segurança Social) já anteriormente reclamados, verificados e graduados. Tal sentença, devidamente notificada às partes e ao Ministério Público, transitou em julgado. Entretanto, posteriormente à sua prolação (e também à prolação da sentença de fls.139) veio a ser reclamado um novo crédito, com base no disposto no artigo
871º n.º 2 do Código de Processo Civil, o que motivou a prolação da sentença agora em crise. Em tal sentença, o Tribunal limitou-se a verificar esse novo crédito e a graduá-lo no lugar que lhe competia relativamente aos demais créditos anteriormente reclamados, verificados e graduados. Com efeito, o n.º 2 do artigo 871º do Código de Processo Civil dispõe que a reclamação deduzida ao abrigo do n.º 1 ‘suspende os efeitos da graduação de créditos já fixada e, se for atendida, provocará nova sentença de graduação, na qual se inclua o crédito do reclamante’. Ou seja, é nosso entendimento que a nova sentença aí prevista limitar-se-á a, uma vez verificado o mesmo, graduar o crédito assim reclamado no lugar que lhe competir entre os demais. Contudo, não podemos de forma alguma, encontrar em tal preceito uma excepção ao princípio do caso julgado, que permita ao tribunal voltar a pronunciar-se sobre créditos anteriormente reclamados e cuja graduação já se encontre decidida. Resumindo, na prolação da sentença de fls. 214 o Tribunal de forma alguma se pronunciou sobre a graduação dos créditos quer da Segurança Social, quer da A, uma vez que tal graduação há muito havia sido efectuada e transitado em julgado, o que ocorreu, aliás, mais de dois anos antes da publicação do Acórdão do Tribunal Constitucional aqui invocado pelo Ministério Público.' Deste despacho veio o Ministério Público reclamar para o Tribunal Constitucional, afirmando que:
'A questão radica em indagar se a nova sentença a proferir nos termos do disposto no art.º 871º, nº2 do C.P.Civil, em sede de reclamação de créditos, é uma nova sentença no que concerne a todos os créditos reclamados, ou se porventura como parece entender o senhor juiz reclamado, esta nova sentença não pode ofender o caso julgado formado em anteriores sentenças de verificação e graduação de créditos proferidas nos mesmos termos.
(...) A questão que se coloca é de saber se nesta nova sentença terá o tribunal que atender à legislação em vigor à data da prolação da sentença (aqui se enquadrando a jurisprudência constitucional com força obrigatória geral) ou, se porventura à lei que dispunha aquando da primeira sentença de verificação e graduação de créditos. No nosso modesto entendimento, somos do parecer que a lei a ter em conta será a que vigorar à data da sentença a proferir em último lugar, pois o que transita em julgado é, a nosso ver, não a graduação que sucessivamente se for formando, mas a verificação e admissão dos créditos reclamados. Mas será que este entendimento viola o princípio do caso julgado, tal como defende o senhor Juiz recorrido? Nos autos em apreço, na primeira sentença proferida no dia 07/12/1999, em que para além de créditos reclamados com privilégios creditórios foi também reclamado um crédito comum, foi este graduado em último lugar, logo a seguir ao crédito exequendo. Já na sentença seguinte prolatada no dia 25/05/2000 em que foi reclamado agora um crédito hipotecário, foi este crédito graduado antes do crédito exequendo e do anterior crédito comum. Atente-se que por força da reclamação do crédito hipotecário, o lugar de pagamento da quantia exequenda desceu agora um grau, pagando-se logo após, não imediatamente atrás dos créditos reclamados com privilégio creditório, mas logo após o crédito hipotecário, do que resultou que a posição do crédito exequendo tivesse sofrido um agravamento num grau. A resposta parece-nos inequívoca no sentido de que não houve violação do caso julgado, na medida em que o crédito posteriormente reclamado goza de privilégio creditório imobiliário sobre o bem imóvel penhorado, e assim, a graduar, quer antes do crédito exequendo, quer antes do crédito comum que havia sido entretanto reclamado e admitido. Admitamos, como hipótese de trabalho, que, pese embora terem sido reclamados os créditos dos autos, porque não contestados, foram liminarmente admitidos, só que, por inércia do tribunal, nunca chegou a ser produzida nenhuma sentença de verificação e graduação desses créditos. Entretanto, face à jurisprudência do Acórdão desse Venerando Tribunal n.º
363/2002, com força obrigatória geral, publicado no Diário da República, 1ª Série A, n.º 239, de 16/10/2002, a sentença a proferir sobre as referidas reclamações não poderia deixar de atender a esta jurisprudência obrigatória, na medida em que, nesta hipótese, não se colocaria a ofensa de caso julgado defendida pelo senhor juiz reclamado. Nem se diga que esta jurisprudência com força obrigatória geral do Tribunal Constitucional teria aplicação retroactiva, só porque as reclamações de créditos apresentadas, o foram antes da publicação do aludido acórdão. No essencial, a força obrigatória geral da jurisprudência do acórdão referido, funciona como se de uma nova lei se tratasse, ou, dito de outro modo, como se a lei que confere o privilégio creditório imobiliário geral à segurança social não existisse, nos termos em que o dispõe o art.º 11º do Decreto-Lei n.º 103/80, de
09/05 e art.º 2º do Decreto-Lei n.º 512/76, de 03/07, no que concerne a privilégios creditórios conferidos à segurança social com preferência sobre a hipoteca, nos termos do artigo 751º do C. Civil. Acresce ainda que o despacho de não admissibilidade do recurso interposto se não enquadra em qualquer das situações a que se reporta o art.º 76, nº2, conjugado com o art.º 75º-A, ambos da Lei n.º 28/82, de 15/11, nas sucessivas alterações introduzidas pela Lei 85/89, de 07/09, Lei Nº 88/95, de 01/09 e Lei n.º 13-A/98, de 26/02, na medida em que aí, está o tribunal a conhecer do mérito do recurso em matéria constitucional, competência que lhe não cabe, mas sim ao Tribunal Constitucional. Quanto à admissibilidade do recurso, afigura-se-nos admissível, atentas as razões aqui aduzidas e bem assim as disposições conjugadas dos art.ºs 70º, nº1, al. g) e 72º, nº 3, ambos da Lei n.º 28/82, de 15/11, nas sucessivas alterações introduzidas pela Lei n.º 85/89, de 07/09, Lei n.º 88/95, de 01/09 e Lei n.º
13-A/98, de 26/02/98 e o artº 280º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa. Por outro lado, a presente reclamação é atempada, cfr. as disposições conjugadas do artº 76º, nº4 da Lei n.º 28/82, de 15/11, nas sucessivas alterações introduzidas pela Lei n.º 85/89, de 07/09, Lei n.º 88/95, de 01/09 e Lei n.º
13-A/98, de 26/02/98 e artº 668º, n.º 2 do Cód. do Proc. Civil.' Em vista do processo, o Ministério Público junto do Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação, já que 'não tendo a decisão recorrida aplicado norma já anteriormente declarada inconstitucional – assentando a ratio decidendi da sentença recorrida apenas numa determinada leitura restritiva dos poderes de cognição emergentes do estatuído no n.º 2 do art. 871º do CPC (matéria insindicável no âmbito do presente recurso) – não se verifica efectivamente um pressuposto do recurso interposto pelo representante do Mº Pº no tribunal recorrido'. Isto, não sem antes tecer as seguintes considerações:
'No caso dos autos – e perante a estrutura lógico-jurídica da decisão recorrida
– verifica-se efectivamente que tal decisão não aplicou a norma constante do art. 11º do DL. n.º 103/80, já que o Sr. Juiz a quo entendeu que os poderes cognitivos que resultavam do preceituado no art. 871º, n.º2, do C.P.C. lhe não consentiam uma reponderação global das graduações de créditos com garantia real, anteriormente objecto de reclamação, mas tão-somente a inclusão do crédito, supervenientemente reclamado, na ordem da precedente graduação – e sendo certo que, por se tratar de crédito comum, apenas garantido por penhora, se não tornava necessário reponderar as precedentes graduações de créditos ou convocar a referida norma, já declarada inconstitucional.
É certo que – e é esta a lógica argumentativa adoptada pelo magistrado reclamante – poderá, porventura, controverter-se qual o sentido a atribuir à referida norma do art. 871º, n.º2, em termos de o nela estabelecido precludir ou não ao juiz a dita reponderação global da ‘hierarquização’ dos créditos com garantia real, decorrente de precedentes decisões, não oportunamente impugnadas
(e, nessa medida, ‘consolidadas’ pelo efeito do caso julgado ou, pelo menos, do esgotamento do poder jurisdicional do juiz). Não nos parece, porém, que tal questão possa ser dirimida no âmbito de um recurso de constitucionalidade – que não tem obviamente como objecto a norma constante do n.º 2 do art. 871º do CPC e a consequente definição do âmbito dos poderes cognitivos do juiz que procede à emissão de uma ‘nova sentença de graduação’, destinada a incluir o crédito supervenientemente reclamado. Na verdade, tal matéria (relativa à estrita interpretação de uma norma do direito processual civil) apenas poderá ser objecto de apreciação no âmbito de um eventual recurso ordinário em que se questione a leitura restritiva que o juiz ‘a quo’ efectuou dos seus poderes cognitivos – e só sendo naturalmente admissível o recurso de fiscalização concreta, fundado na alínea g) do n.º 1 do art. 70º na hipótese de – determinando, porventura, a Relação que a ‘nova sentença de graduação’ deve proceder a uma efectiva reponderação da hierarquia de todas as garantias reais invocadas no apenso de reclamação de créditos –
[que] se aplicasse à decisão de mérito a proferir norma já precedentemente inconstitucionalizada por este Tribunal.' Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos Como se referiu, o recurso interposto pelo Procurador da República em funções na
8ª Vara Cível da Comarca do Porto foi-o ao abrigo do disposto na alínea g) do n.
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, visando fazer respeitar a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, pelo Acórdão deste Tribunal n.º 363/2002, das normas dos artigos 11º do Decreto-Lei n.º
103/80, de 9 de Maio, e 2º do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral neles conferido à Segurança Social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil. O recurso não foi, porém, admitido, por o autor da sentença recorrida entender que estas normas não foram aplicadas nessa decisão, entendimento, este, sufragado pelo Ministério Público no Tribunal Constitucional. Importa apurar se este entendimento deve ser confirmado. Nos autos de que emergiu a presente reclamação, a primeira sentença (de 7 de Dezembro de 1999) reconheceu e graduou os créditos à altura reclamados, fazendo aplicação das normas do artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80 e do artigo 2º do Decreto-Lei nº 512/76. A segunda sentença, de 25 de Maio de 2000, ainda que não expressamente, também convocou tais normas, porquanto a ordenação do crédito então pela primeira vez reclamado, sendo dotado de garantia hipotecária, preferiria, na ausência de consideração dessas normas, aos créditos reclamados pelo Centro Regional de Segurança Social do Norte. A terceira sentença, de 13 de Julho de 2001, porém, já não aplicou, nem expressa, nem implicitamente, essas normas: o crédito então reclamado e inserido na graduação não era dotado de qualquer garantia real, pelo que se não imiscuiu na ordenação dos créditos privilegiados. E – o que ora importa – deve reconhecer-se que o mesmo ocorreu na quarta sentença, de 22 de Outubro de 2002, que é a que vem impugnada (sendo, aliás, posterior à declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade dos artigos 11º do Decreto-Lei n.º 103/80, e 2º do Decreto-Lei n.º 512/76, e à sua publicação no Diário da República, I Série A, de
16 de Outubro de 2002). Ora, tendo sido entendimento do tribunal a quo, na decisão recorrida, que não tinha que apreciar a ordenação de créditos dotados de privilégio imobiliário geral em confronto com os créditos dotados de garantia hipotecária, não chegou a aplicar as normas anteriormente declaradas inconstitucionais por este Tribunal, não se verificando, por conseguinte, os requisitos do tipo de recurso interposto e sendo isso razão bastante para indeferir a presente reclamação. Isto, portanto, deixando-se em aberto qual o exacto sentido que deve ser atribuído – seja ou não aquele que o tribunal recorrido efectivamente atribuiu – à norma do artigo 871º, nº 2, do Código de Processo Civil (e, portanto, qual o âmbito dos poderes cognitivos do juiz) no caso de decisões de graduação de créditos que envolvam o confronto dos novos créditos reclamados, designadamente hipotecários, com créditos anteriormente reconhecidos e graduados ao abrigo daquelas disposições, declaradas inconstitucionais com força obrigatória geral. Tal questão, como notou o Ministério Público no Tribunal Constitucional, diz antes respeito ao âmbito dos poderes cognitivos do juiz que prolata uma nova sentença de graduação, para incluir o crédito supervenientemente reclamado. É, pois, matéria 'relativa à estrita interpretação de uma norma do direito processual civil', que só 'poderá ser objecto de apreciação no âmbito de um eventual recurso ordinário em que se questione a leitura restritiva que o juiz a quo efectuou dos seus poderes cognitivos' – ou, pelo menos, que não pode ser objecto de apreciação num recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70º, da Lei do Tribunal Constitucional, com invocação do acórdão deste Tribunal n.º 363/2002, que se não pronunciou sobre tal interpretação. III. Decisão Pelos fundamentos expostos decide-se indeferir a presente reclamação e confirmar o despacho reclamado, de não admissão do recurso.
Lisboa, 19 de Março de 2003 Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Luís Nunes de Almeida