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Processo n.º 194/04
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
O A., notificado, por carta registada expedida em 29 de Maio de 2003, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, do precedente dia 28
(fls. 285 a 289) – que negou provimento ao agravo por ele interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (que julgara improcedente recurso de despacho de rejeição liminar de embargos de terceiro e o condenara como litigante de má fé) e o condenou como litigante de má fé –, dele interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, limitando-se a referir, no respectivo requerimento de interposição (fls. 294), que a “sentença” (sic) recorrida “padece de inúmeras inconstitucionalidades, por violação da lei fundamental” (fls. 294).
O Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça determinou a notificação do recorrente para concretizar os fundamentos do recurso (despacho de fls. 295), tendo, na sequência dessa notificação, sido apresentada a seguinte resposta (fls. 299 e 300):
“A agravante reservou os fundamentos legais da inconstitucionalidade alegada para as alegações de recurso, motivo pelo qual apenas despendeu no presente requerimento de interposição de recurso a indicação genérica do vício/ilegalidade que no seu entender irão constituir o objecto das alegações de recurso. Contudo, andou muito bem o douto despacho ora prolatado a fls. 295, uma vez que não deixando a agravante de alegar oportunamente em sede de objecto de alegações de recurso os fundamentos da inconstitucionalidade, pode desde já fazê-los constar no presente requerimento de interposição de recurso. Assim, e em cumprimento com o mui doutamente decidido a fls. 295, vem a recorrente invocar que os fundamentos do recurso se baseiam na violação do disposto no artigo 8.º, n.º 3, da CRP, por remissão para o primado do direito comunitário originário do TUE, de acordo com o seu artigo 62.º do TUE, direito de livre estabelecimento no espaço comunitário de sociedades não residentes e sem estabelecimento estável. Bem como dos direitos de não discriminação em sentido negativo e positivo do direito de livre estabelecimento e actividade social das sociedades não residentes. Também no entendimento da recorrente se encontra violado o disposto no n.° 2 do artigo 12.º da CRP, isto é, o princípio da universalidade em sentido material, uma vez que «todas as pessoas colectivas gozam de direitos próprios e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza», dado que à sociedade holding não residente foram criados direitos próprios à sua natureza jurídica distinta dos seus estabelecimentos estáveis, nomeadamente enquanto detentoras de personalidades jurídicas distintas das suas sucursais e escritórios de representação, personalidade tributária, capacidade judiciária e autonomia patrimonial e financeira próprias.
Termos em que, com os mais de direito, se requer a V. Ex.a se digne deferir a interposição de recurso para o Tribunal Constitucional dos vícios alegados pela recorrente.”
Por despacho do Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Julho de 2003 (fls. 301), tal recurso não foi admitido, com a seguinte fundamentação:
“A recorrente A. deduziu embargos ao arresto decretado a requerimento de B., alegando, no essencial, que são de sua propriedade as acções da C. arrestadas, sendo que a ré condenada na acção que reconheceu o crédito da embargada foi A.
– Sucursal Portuguesa.
Portanto, negou ser a devedora do montante cujo pagamento as acções arrestadas visam acautelar. Os embargos foram liminarmente rejeitados. Agravou a embargante, atacando a decisão recorrida por ter julgado «mal e erradamente interpretou de facto, a posição jurídica de terceiro da sociedade mãe e sede social, nos embargos» – conclusão 1) da alegação, a fls. 39 –, defendendo, assim, que, por ter demonstrado a sua posição de terceiro, os embargos deveriam ter sido recebidos e a final julgados procedentes.
Não invocou como violados qualquer disposição ou princípio constitucional ou de direito internacional. Conhecendo do agravo, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu que o
«embargante/recorrente é a mesma pessoa que foi parte, como réu e requerido, na acção principal e na providência cautelar do arresto», assim negando provimento ao recurso, e tendo condenado a recorrente como litigante de má fé, em 6 UCs.
Inconformada, a embargante interpôs recurso de agravo para este Supremo Tribunal, insistindo na argumentação que apresentou no agravo para a Relação.
Foi negado provimento ao agravo e de novo condenada a recorrente por litigar de má fé. Notificada do acórdão, apresentou-se a recorrer para o Tribunal Constitucional, invocando os fundamentos que, a solicitação do relator, constam do requerimento de fls. 297-8, que damos por reproduzido. Parece-nos evidente, salvo o devido respeito, que os fundamentos invocados não cabem em qualquer das situações previstas no artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, como evidente é que ao objecto do litígio são por inteiro estranhas as disposições que a recorrente considera terem sido violadas.
Assim, não admito o recurso.”
Notificado desse despacho por carta registada expedida em 15 de Julho de 2003, o recorrente veio requerer o envio de cópia dactilografada do mesmo, o que foi satisfeito em 8 de Outubro de 2003.
Em 22 de Outubro de 2003, o recorrente apresentou o requerimento de fls. 312, nele se limitando a referir que “vem manter o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional da referida douta decisão, de fls. , de 15 de Julho de 2003”.
O Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça proferiu, em 5 de Novembro de 2003, o seguinte despacho (fls. 314):
“A embargante A., interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão de fls. 285-9, que negou provimento ao agravo que havia interposto para este Supremo Tribunal de Justiça. Aquele recurso não foi admitido pelo despacho de fls. 301-2. Notificada deste despacho por carta registada expedida em 15 de Julho de 2003, a embargante apresentou-se a recorrer dele para o Tribunal Constitucional através de requerimento apresentado em 30 de Setembro de 2003 (fls. 307). Como resulta do n.º 4 do artigo 76.° da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, a reacção contra o despacho que não admitiu o recurso faz-se através de reclamação e não de recurso, pelo que, como reclamação, é de considerar tal reacção, atento o disposto nos artigos 668.°, n.° 5, do Código de Processo Civil e 69.° da Lei n.º
28/82. Só que o prazo para reclamar é de 10 dias (n.º 2 daquele artigo 668.°), prazo que se mostrava esgotado à data em que a embargante veio recorrer, sucedendo que, por excedido o limite temporal referido nos n.ºs 5 e 6 do artigo 145.° do Código de Processo Civil, o acto não pode ser aproveitado mediante o pagamento de multa. Termos em que não se admite a reclamação, por extemporaneidade.”
Notificado desse despacho por carta registada expedida em 5 de Novembro de 2003, o recorrente veio requerer o envio de cópia dactilografada do mesmo, o que foi satisfeito em 21 de Novembro de 2003.
Em 9 de Dezembro de 2003, o recorrente apresentou
“reclamação da retenção do requerimento de interposição de recurso”, nos seguintes termos (fls. 329 a 332):
“Vem a presente reclamação interposta para o Tribunal Constitucional, da douta decisão deste Venerando Tribunal superior que, salvo melhor entendimento, julgou de forma incorrecta a apreciação da rejeição do recurso de agravo interposto da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, por se fundamentar
única e exclusivamente em matéria de direito – quanto à legitimidade da recorrente nos embargos e a sua qualidade de terceira. Contudo, o mui douto acórdão deste Tribunal entendeu existir fundamento para indeferir o recurso, ainda que não o tenha feito de forma expressa e devida e legalmente fundamentada de facto e de direito, o que, aliás, acarreta uma nulidade insanável. E a falta de fundamentação para a rejeição do recurso originou da parte da recorrente matéria legal para a presente reclamação. Ora, com o devido respeito por opinião contrária, não se nos afigura matéria de facto controvertida sobre este ponto concreto do alegado meio processual para reagir contra o recurso indeferido ou a reclamação como então pretende a douta decisão ora reclamada. Uma vez que a ora reclamante na sua interposição de recurso para este Tribunal superior limitou-se a inferir que pretendia recorrer para o Tribunal Constitucional e fundamentou de facto e de direito a sua vontade de alegar, no requerimento de interposição de recurso. Assim, a falta de pronúncia sobre este thema decidendum acarreta a violação da Lei Fundamental, em particular no tocante quanto ao acesso à justiça e ao direito, uma vez que a toda a pretensão legítima deduzida em juízo cabe uma decisão judicial concreta que aprecie os factos e aplique o direito in casu. Assim, salvo melhor entendimento, ao ter decidido como decidiu, a douta decisão ora reclamada enferma de vício de violação de lei fundamental quanto à pronúncia do direito aplicável e à apreciação crítica do onus probandi produzido em juízo. O que viola o disposto no artigo 20.° da CRP, na sua dimensão material, isto é, o acesso ao «controlo» jurisdicional das decisões judiciais, uma vez que se assim não fosse, então estaríamos perante uma inutilidade da existência processual dos recursos quando in casu estejam apenas questões de direito. O que manifestamente se afigura in casu, uma vez que a alegação da vontade de interpor recurso traduz um mero dado objectivo do processo de controlo judicial pelas instâncias superiores. Quanto à questão prévia a abordar não podemos esquecer que se trata de um recurso per saltum, isto é, a decisão judicial impugnada proferida por este Tribunal para o venerando Tribunal Constitucional, não podendo ainda nesta fase
(requerimento de interposição de recurso) ter a reclamante abordado e alegado eventuais inconstitucionalidades na decisão reclamada e da qual se pretendia alegar em sede de recurso. Facto este que levou a que a reclamante não tivesse suscitado a questão da inconstitucionalidade das normas que pretende que sejam apreciadas pelo Tribunal Constitucional «durante o processo», como exige a alínea b) do n.° 1 do artigo
70.° da Lei n.° 28/82, o que não torna assim – nesta fase – desnecessário ainda analisar a verificação de todos os pressupostos respectivos vertidos nos n.ºs 1,
2 e 3 do artigo 75.°-A da Lei n.° 28/82. Pois, não se verifica ainda in casu o pressuposto de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.° da Lei n.° 28/82, como se verifica in casu, dado que a alegada inconstitucionalidade ainda não podia ter sido «suscitada durante esta fase do processo», cf. citada alínea b) do n.º 1 do artigo 70.° da LTC. Pelo que também não se colocou «de modo processualmente adequado» perante este Venerando Tribunal (STJ) que proferiu a decisão reclamada, em termos de estar oportuna e tempestiva a alegação de inconstitucionalidade de normas violadas,
«de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de estar obrigado a dela conhecer», cf. n.º 2 do artigo
72.° da Lei n.° 28/82. Acresce que o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado que os recorrentes/reclamantes só podem ser dispensados do ónus de invocar a inconstitucionalidade «durante o processo» nos casos excepcionais e anómalos em que não tenha disposto processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em momento subsequente, neste sentido vide Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5.° vol., págs. 497 e 663, e no Diário da República, II Série, de 28 de Maio de 1994. Ora, in casu é manifesto que a reclamação per saltum directamente para o Tribunal Constitucional não proporcionou processualmente à ora reclamante esse
ónus de alegação da inconstitucionalidade da alegada matéria de facto vertida na decisão recorrida do Tribunal da Relação de Lisboa, uma vez que só neste Venerando Tribunal superior se suscitou tal questão. Assim, é manifesto que no caso dos autos estamos perante a possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional desta douta decisão/sentença do Supremo Tribunal de Justiça, alegando agora em sede própria e primária a inconstitucionalidade em apreço. Assim, para se decidir conhecer do objecto da reclamação in casu, a reclamante invoca a violação do artigo 20.° da CRP, na apreciação do recurso per saltum para o Tribunal Constitucional da decisão do Supremo Tribunal de Justiça, quando aquele Tribunal decidiu não conhecer do objecto do recurso por alegadamente existir um ponto controvertido sobre o meio processual para interpor o recurso, isto é, o meio seria a reclamação da retenção / rejeição do requerimento de interposição do recurso, o que se verificou in casu, e conforme alega a ora reclamante a manifesta ilegalidade de tal meio processual, contudo, V. Ex.as farão como é costume e hábito melhor Justiça.”
Remetido o processo ao Tribunal Constitucional, o representante do Ministério Público emitiu o seguinte parecer (fls. 340 verso e
341):
“A presente reclamação carece ostensivamente de qualquer fundamento sério. Na verdade – e apesar do convite ao aperfeiçoamento do requerimento de interposição de recurso originariamente apresentado –, o requerimento de fls.
299 continua a não obedecer minimamente aos requisitos legalmente exigidos, nomeadamente ao não especificar, em termos inteligíveis, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
Acresce que, a nosso ver, o insólito requerimento de fls. 307 – mesmo admitindo benevolamente que possa perspectivar-se como incorporando uma reclamação em processo constitucional – é efectivamente intempestivo: mesmo a admitir que a notificação, expedida por via postal em 15 de Julho, não se consumou em férias, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 254.º e
143.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, é evidente que a tempestividade sempre dependeria do pagamento de multa, nos termos do artigo 145.º do Código de Processo Civil, a qual não foi paga no Tribunal a quo, não cumprindo, conforme jurisprudência reiterada, ao Tribunal Constitucional suprir eventuais omissões no âmbito do procedimento que decorreu perante os tribunais judiciais.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Como bem refere o representante do Ministério Público, a presente reclamação carece de qualquer fundamento sério.
No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, o recorrente não indicou nenhum dos elementos exigidos pelo artigo 75.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por
último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), limitando-se a referir que a decisão recorrida “padece de inúmeras inconstitucionalidades, por violação da lei fundamental”. Essa total omissão persistiu mesmo após o convite feito pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça para o recorrente complementar aquele requerimento.
Depois, face ao despacho de não admissão do recurso, o recorrente apresentou o insólito requerimento de fls. 312, em que se limita a
“manter o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional”, sem aduzir quaisquer razões de discordância relativamente ao despacho de não admissão de recurso.
O Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, vislumbrando generosamente nesse requerimento uma reclamação contra o despacho de não admissão de recurso, acabou por não a admitir, por a reputar extemporânea.
Na reclamação interposta deste último despacho, voltou o recorrente a não atacar o fundamento em que o mesmo se alicerçou (a extemporaneidade da reclamação), tecendo diversas considerações, de difícil inteligibilidade, mas que se prendem, em grande medida, com a decisão de mérito do recurso de agravo.
Não tendo o ora reclamante atacado os fundamentos dos despachos de não admissão do recurso de constitucionalidade e de não admissão da reclamação, e sendo patente que não se verifica nenhuma das hipóteses em que seria admissível recurso de constitucionalidade, por não preenchimento dos requisitos de nenhuma das alíneas do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, há que concluir pela improcedência da presente reclamação.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta. Lisboa, 10 de Março de 2004.
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos