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Processo n.º 130/04
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1.A., melhor identificado nos autos, veio recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal Colectivo de ---------------------, proferido em
3 de Junho de 2003, que o condenara na pena de 3 anos de prisão pela prática em autoria de um crime de lenocínio, continuado, previsto e punido pelo artigo
170º, n.º 1 do Código Penal, pretendendo ver apreciada, entre outras, a questão da constitucionalidade daquele preceito normativo, porquanto:
«(...) IV. Ao incriminar o fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição de pessoa livre e autodeterminada, o n.º 1 do artigo 170º CP ofende o princípio da fragmentariedade ou subsidiariedade do direito penal, consagrado no n.º 2 do artigo 18º da CRP (e vazado para o n.º 1 do artigo 40º do CP), os direitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada, à identidade pessoal e à liberdade, consagrados nos artigos 26º, n.º 1, e 27º, n.º 1, da CRP, e ainda o direito ao trabalho, defendido pelos artigos 47º e 58º da CRP; V. Direitos estes últimos que nada impede sejam exercidos, na prática, com o auxílio e participação de terceiros. VI. Aquela disposição normativa está ferida, por conseguinte, de inconstitucionalidade material, VII. que apenas poderá colmatar-se através duma interpretação restritiva do preceito que repristine a exigência de que os actos descritivos no tipo legal só constituem crime quando referidos a pessoa “em situação de abandono ou de extrema necessidade económica.”»
Por acórdão datado de 15 de Janeiro de 2004, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu indeferir a pretensão ora em apreço, considerando que:
«(...) Do nosso ponto de vista, o conteúdo material do que seja crime deve decorrer do quadro axiológico-jurídico constitucionalmente consagrado. Dito de outra forma, só pode ser crime o comportamento que viola ou ameaça violar o quadro de valores constitucionalmente consagrados. Em consequência, a definição do crime em sede de direito ordinário deve reportar-se àquele quadro de valores constitucionais, sob pena de inconstitucionalidade material. Como refere Figueiredo Dias, in Temas Básicos da Doutrina Penal, edição de 2001,
56 e 57, “se (...) a função do direito penal de tutela subsidiária de bens jurídico-penais se revela juridico-constitucionalmente credenciada em qualquer autêntico regime democrático e pluralista, então tal deve ter como consequência inafastável a de que toda a norma incriminatória na base da qual não seja susceptível de se divisar um bem jurídico-penal claramente definido é nula, por materialmente inconstitucional, e como tal deve ser declarada pelos tribunais constitucionais ou pelos tribunais ordinários aos quais compita aferir da constitucionalidade”. Claro que o assim definido conceito material de crime encontra-se ainda limitado pela respectiva estrita necessidade: só deve ser qualificado crime o comportamento cuja reacção comunitariamente adequada não pode deixar de se expressar através de uma sanção penal.
“A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” – artigo 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
É o chamado princípio da necessidade ou da carência de tutela penal ou da proporcionalidade em sentido amplo.
“Uma vez que o direito penal utiliza como arsenal das suas sanções específicas, os meios mais onerosos para os direitos e as liberdades das pessoas, ele só pode intervir nos casos em que todos os outros meios da política social, em particular da política jurídica, se revelem insuficientes e inadequados. Quando assim não aconteça aquela intervenção pode e deve ser acusada de contrariedade ao princípio da proporcionalidade, sob a precisa forma de violação do princípio da proibição de excesso” – Figueiredo Dias, in Temas Básicos da Doutrina Penal, edição de 2001, 58. Nesta matéria tem vindo a entender a jurisprudência do nosso Tribunal Constitucional que “cabe ao legislador uma ampla margem de discricionariedade legislativa na delimitação das condutas que devem ser criminalizadas ou descriminalizadas, bem como na cominação das respectivas penas”.
“Tal margem de liberdade não prejudica, naturalmente, a consideração de limites impostos pelos princípios constitucionais, de entre os quais se salientam os que resultam do princípio da culpa, inerente à dignidade da pessoa, do princípio da necessidade ou da máxima restrição das penas, decorrente do regime das restrições aos direitos, liberdades e garantias, em que as penas criminais se traduzem (...) ou ainda do princípio da igualdade”.
“Onde quer que se procure situar materialmente a aplicação do princípio da proporcionalidade à definição dos crimes e das penas (...), é certo que as normas penais não são imunes a um juízo constitucional de proporcionalidade
(...)”.
“(...) A criminalização de condutas deve restringir-se aos comportamentos que violem bens jurídicos essenciais à vida em comunidade, devendo a liberdade de conformação do legislador ser limitada sempre que a punição criminal se apresente como manifestamente excessiva ou o legislador actue de forma voluntarista ou arbitrária, ou ainda as sanções se mostrem desproporcionadas ou desadequadas, isto é, não assegurem a “justa medida dos meios (penais) e dos fins (das penas), não se garantindo uma adequada proporção entre as sanções e os factos que elas se destinam a punir (...)” – cfr. Acórdão n.º 168/99, do TC, de
10 de Março de 1999, relatado por Maria dos Prazeres Pizarro Beleza. Quanto ao crime de lenocínio. Dispõe o n.º 1 do artigo 170º do Código Penal, na versão decorrente da Lei n.º
65/98, de 2 de Setembro, que:
“Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos”. Perante aquela disposição legal discute-se a determinação do respectivo bem jurídico protegido. Para uns, o bem jurídico tutelado pelo crime de lenocínio é “o interesse geral da sociedade na preservação da moralidade sexual e do ganho honesto” – cfr. Reis Alves, in Crimes Sexuais, 67. Outros entendem que se protegem “bens jurídicos transpersonalistas de étimo moralista” – cfr. Anabela Rodrigues, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo 1, 519. Pela nossa parte entendemos que na previsão normativa do n.º 1 do artigo 170º do Código Penal o que está em causa, mais do que tudo, é a exploração de uma pessoa por outra, uma espécie de usura ou enriquecimento ilegítimo fundado no comércio do corpo de outrem por parte do agente. Inculca tal entendimento o facto do apontado tipo legal de crime prescrever que o agente actue “profissionalmente ou com intenção lucrativa”. Assim entendido, a prática do lenocínio, previsto e punido no n.º 1 do artigo
170º do Código Penal, configura uma clara violação da dignidade humana, da integridade moral e física da pessoa humana e, por isso, obstáculo à livre realização da respectiva personalidade, valores constitucionalmente protegidos – cfr. artigos 25º e 26º da Constituição da República Portuguesa. Fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa da prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo, fazendo disso profissão ou com intenção lucrativa, não é um acto de intimidade da pessoa, de vida privada, de liberdade individual já que o mesmo é projectado exactamente para fora dela e da sua esfera privada e, no fundo, acaba por significar uma exploração indigna da pessoa humana – neste sentido, embora no âmbito na versão primitiva do Código Penal de 1982, veja-se o acórdão deste Supremo Tribunal de 29 de Janeiro de
1992, prolatado no Processo n.º 42058, in BMJ, 413, 263. O direito ao trabalho constitucionalmente salvaguardado seguramente que pressupõe a dignidade humana no seu exercício. Nestes termos, a criminalização do crime de lenocínio configura-se como constitucional, o que significa que improcede a pretensão do recorrente no domínio ora em apreço.»
2.Inconformado, o recorrente veio interpor o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do n.º 1, alínea b) do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, a fim de ver apreciada a “inconstitucionalidade material da norma contida no n.º 1 do artigo 170º do Código Penal, por ofensa do princípio da fragmentariedade ou subsidiariedade do direito penal, consagrado no n.º 2 do artigo 18º da CRP, dos direitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada, à identidade pessoal e à liberdade, consagrados nos artigos 26º, n.º 1 e 27º, n.º 1 da CRP, e ainda o direito ao trabalho, defendido pelos artigos 47º e 58º CRP. Admitido o recurso, e notificadas as partes para alegar, o recorrente veio, nas suas alegações, juntar o parecer constante de fls. 6105 a 6140, dele destacando os seguintes “argumentos aduzidos em benefício da tese que defende a inconstitucionalidade” da norma do artigo 170º, n.º 1 do Código Penal:
«“O n.º 1 do art. 170º do Código Penal, na versão vigente a partir da Lei n.º
65/98, de 2 de Setembro, contraria o disposto no n.º 2 do art. 18º da Constituição da República e frustra o programa político-criminal que, em boa hermenêutica, há-de adscrever-se a este comando constitucional. Um programa que, em consonância com o paradigma hoje consensual – pelo menos para o direito penal duma sociedade democrática, secularizada e plural – erige em mandamento basilar do direito constitucional o princípio de que o direito penal estadual só está legitimado a intervir em defesa e protecção de bens jurídicos fundamentais. E, como tal, um programa de que decididamente se afasta o citado artigo 170º, n.º 1 do Código Penal. Que, contra todas as expectativas e ao arrepio da marcha da história e em afronta à ‘construção social da realidade’ vigente, vem repristinar uma solução de tutela penal de meros códigos moralistas. E punir a imoralidade pela imoralidade, à margem de qualquer afronta (lesão ou perigo) a um autêntico e autónomo bem jurídico”.
“No contexto de um Estado de Direito e de uma sociedade democrática, o direito penal só está legitimado a intervir criminalizando comportamentos humanos, para assegurar a protecção – e consabidamente uma protecção de ultima ratio e, por causa disso, necessariamente fragmentária – de bens jurídicos fundamentais. Já de bens jurídicos indispensáveis à autónoma e livre realização e desenvolvimento da pessoa; já de bens jurídicos emergentes a partir da assunção da Daseinsfürsorge pelo Estado (...); já, mesmo, de bens jurídicos comunitários, indispensáveis à existência, persistência e funcionamento da sociedade democrática”.
“Um bem jurídico político-criminalmente vinculante existe ali – e só ali – onde se encontre reflectido um valor jurídico-constitucionalmente reconhecido em nome do sistema social total e que, deste modo, se pode afirmar que ‘preexiste’ ao ordenamento jurídico-penal. O que, por sua vez, significa que entre a ordem axiológica jurídico-constitucional e a ordem legal – jurídico-penal – dos bens jurídicos há-de por força verificar-se uma qualquer relação de mútua referência. Relação que não será de ‘identidade’ ou, mesmo só de ‘recíproca cobertura’, mas de analogia material, fundado numa essencial correspondência de sentido e – do ponto de vista da sua tutela – de fins (...) É nesta acepção, e só nela, que os bens jurídicos protegidos pelo direito penal se devem considerar concretização dos valores constitucionais expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais. É por esta via – e só por ela em definitivo – que os bens jurídicos se ‘transformam’ em bens jurídicos dignos de tutela penal ou com dignidade jurídico-penal” (Este excerto, que foi incorporado no Parecer, é da autoria, como outros que serão extractados adiante, de FIGUEIREDO DIAS). O direito penal não tem legitimidade para intervir – “com o seu cortejo de censuras e o seu arsenal de sanções, as mais drásticas ao dispor do Estado – como instrumento de tutela, estabilização ou reafirmação contra-fáctica de normas de étimo exclusivamente moralista. Ou, se se pretender, como instrumento de protecção e salvaguarda de valores de fundo moralistas”.
“Ao Estado falece, por inteiro, legitimidade para impor, oficial e coactivamente, quaisquer concepções morais, para tutelar a moral ou uma certa moral: neste campo tudo deve ser deixado à livre decisão individual”.
“O direito penal de uma sociedade secularizada (...) só está legitimado a intervir para proteger bens jurídicos fundamentais da pessoa ou da própria comunidade. O que tem como reflexo imediato a ilegitimidade – e uma ilegitimidade contrafacticamente assegurada através da sanção da inconstitucionalidade – de qualquer lei penal incriminatória que se propusesse punir comportamentos humanos em nome, exclusivamente, da sua imoralidade”.
“As puras violações morais não conformam a lesão de um autêntico bem jurídico e não podem, por isso, integrar o conceito material de crime”. No que diz respeito aos crimes sexuais, em especial o de lenocínio que agora importa considerar, a Reforma de 1995 do Código Penal assumiu por inteiro esta perspectiva, e redesenhou-os “a partir de dois autónomos e bem definidos bens jurídicos pessoais: a liberdade e a autodeterminação sexual. Pondo consequentemente termo a todas as incriminações que não pudessem ser compreendidas e justificadas em nome da tutela, mais ou menos próxima, destes específicos bens jurídicos”. O legislador de 1995 “manteve-se, no essencial, fiel ao desenho da incriminação que vinha de 1982. Continuando, por isso, a exigir, como momento nuclear da estrutura típica da incriminação, a exploração de situação de abandono ou de necessidade económica. Precisamente o momento que, apesar de tudo, imprime à incriminação a marca de uma incriminação votada à tutela da liberdade sexual das pessoas. E, por vias disso, lhe emprestava a indispensável legitimidade constitucional, como tutela de bens jurídicos”. Todavia, “o legislador de 1998 (com a Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro) alterou a estrutura típica do crime de lenocínio, repristinando a solução vigente entre nós antes de 1982. Ou seja: eliminando a exigência típica da ‘exploração duma situação de abandono ou necessidade’, nessa medida voltando a alargar consideravelmente a extensão da incriminação” e fazendo “do crime de Lenocínio entre adultos um crime sem bem jurídico e ‘sem vítima’ ”. Na observação pertinente de ANABELA RODRIGUES, “com esta incriminação o bem jurídico não é, como devia, a liberdade de expressão sexual da pessoa, mas persiste aqui uma certa ideia de ‘defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade’, que não é encarada hoje como função do direito penal e, de qualquer modo, não presidiu ao novo enquadramento dos ‘crimes contra a liberdade sexual’ no título mais vasto dos crimes contra as pessoas e como uma forma que assumem os atentados contra a liberdade”. Nas palavras de MOURAZ LOPES, “o que é tutelado agora no n.º 1 (do art. 170º), como bem jurídico, é uma determinada concepção de vida que se não compadece com a aceitação do exercício profissional ou com intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição”. Assim sendo, como é, tem de concluir-se “pela inconstitucionalidade material do n.º 1 do art. 170º do Código Penal na versão em vigor”. É uma conclusão que decorre directamente do n.º 2 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa. Por força do qual, “uma norma incriminatória na base da qual não seja susceptível de se divisar um bem jurídico claramente definido é nula, por dever ser considerada materialmente inconstitucional e como tal declarada pelo TC”. Ao decidir em sentido contrário, o douto acórdão recorrido ofendeu o disposto no art. 204º, aplicando uma norma que desrespeita o n.º 2 do art. 18º e ainda os arts. 26º, n.º 1, 27º, n.º 1, 47º e 58º, n.º 1, todos da CRP. Na verdade, além do que ficou dito, não deixará de ser pertinente a objecção de que o n.° 1 do art. 170º CP eleva à categoria de crime e pune condutas de simples comparticipação em actos lícitos e livres. Em bom rigor, o fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição não são mais do que comparticipação numa conduta alheia que, repete-se, além de lícita é desenvolvida com liberdade, o que levanta a questão de saber se alguém pode ser incriminado por auxiliar outrem a exercer um direito próprio. Ao incriminar o fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição de pessoa livre e autodeterminada, o n.º 1 do art. 170º ofende o princípio da fragmentariedade ou subsidiariedade do direito penal e ainda os direitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada, à identidade pessoal e à liberdade, consagrados nos arts. 26º, n.º 1, e 27º, n.º 1, CRP, e o direito ao trabalho, consagrado nos arts. 47º e 58º CRP, direitos estes que nada impede sejam exercidos com o auxílio e participação, mesmo interessada e lucrativa, de terceiros. No que respeita, em particular, ao direito ao trabalho, o Recorrente sustenta que (sendo exercida por pessoas livres e autodeterminadas, como fica sempre pressuposto) a prostituição é, até por definição, uma actividade laboral, não sendo lícito, numa sociedade laica, plural e democrática reprimi-la ou impedi-la, muito menos com os instrumentos associados à ilicitude criminal, sob pena de confundir o Código Penal com o Catecismo. CONCLUSÃO:
1. O n.º 1 do art. 170º do Código Penal, com a redacção em vigor a partir da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, viola o disposto no n.º 2 do art. 18º, n.º 1 do art. 26º, n.º 1 do art. 27º, art. 47º e art. 48º da Constituição da República Portuguesa e está, por isso, ferido de inconstitucionalidade material,
2. o que deve ser declarado por este Tribunal Constitucional.
3. Ao aplicar a norma dele constante, o douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça violou o disposto no art. 204º da Lei Fundamental.» Nas suas contra-alegações, o representante do Ministério Público junto deste Tribunal concluiu que:
“1 – No crime de lenocínio previsto e punido no artigo 170º, n.º 1 do Código Penal protegem-se bens jurídicos pessoais relacionados com a autonomia e liberdade, contra a utilização da sexualidade como modo de subsistência, protecção directamente fundada no princípio da dignidade da pessoa humana.
2 – A criminalização deste tipo de condutas não é violadora do princípio da proporcionalidade expressa no artigo 18º, n.º 2 da Constituição, nem de qualquer outro princípio ou norma nela consagrados.
3- Termos em que não deverá proceder o presente recurso.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3.A questão de constitucionalidade cuja apreciação é objecto do presente recurso de constitucionalidade – isto é, a da conformidade com a Constituição da República Portuguesa do artigo 170º, n.º 1, do Código Penal, que pune o crime de lenocínio – foi recentemente apreciada por este Tribunal, por esta mesma Secção, tendo concluído, no acórdão n.º 144/04, por unanimidade, pela inexistência de inconstitucionalidade. Neste acórdão foram tratadas alegadas violações, pela norma em causa, do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18º, n.º 2, e dos artigos
41º (liberdade de consciência) e 47º, n.º 1 (liberdade de profissão), da Constituição da República, distinguindo-se as questões de constitucionalidade de quaisquer apreciações, no plano político-criminal, sobre a mesma norma, e concluindo-se, depois de identificar o bem jurídico protegido por esta, que o legislador não está constitucionalmente proibido de adoptar um tipo criminal como o que ela prevê – e isto, tomando-se já em conta, nesse aresto, a redacção do artigo 170º, n.º 1, do Código Penal, na versão resultante das alterações introduzidas pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro. Ora, pode desde logo observar-se – embora tal não seja decisivo – que, se o Tribunal Constitucional entendesse que existia desconformidade da norma em causa com outros parâmetros constitucionais, para além dos então analisados – como por exemplo os artigos 26º, n.º 1, e 27º, n.º 1, conjugados com o artigo 18º, n.º 2, da Constituição –, lhe teria sido possível pronunciar-se pela inconstitucionalidade, nos termos do artigo 79º-C, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional. Verifica-se, porém, além disso, que a fundamentação expendida nesse acórdão n.º
144/04 é inteiramente transponível para o presente processo, e, designadamente, para o confronto da norma em causa com os outros parâmetros invocados pelo agora recorrente: os artigos 58º (direito ao trabalho), 26º, n.º 1 (direitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada e à identidade pessoal) e 27º, n.º 1
(direito à liberdade) da Constituição da República. Não se vê que, pelo confronto com estes direitos constitucionalmente consagrados, haja de chegar-se a solução diversa daquela por que se concluiu nesse aresto, no qual se confrontou já a norma em questão, designadamente, com o artigo 18º da Constituição (confronto no qual se centra também o parecer jurídico junto aos autos), concluindo pela inexistência de inconstitucionalidade. Assim, no presente caso há apenas que, remetendo para os fundamentos desse acórdão n.º 144/04 (de que se junta cópia), reiterar o juízo de não inconstitucionalidade do artigo 170º, n.º 1, do Código Penal, na redacção resultante da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, e, consequentemente, negar provimento ao recurso. III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide: a) Negar provimento ao presente recurso e confirmar a decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita; b) Condenar o recorrente em custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 23 de Março de 2004
Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos