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Processo n.º 504/01
2ª Secção
Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A. intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, em 15 de Dezembro de 1999, providência cautelar não especificada, por apenso à respectiva acção principal, contra B. para suspender a deliberação da assembleia de credores relativamente à redução e subsequente aumento de capital da requerida, fazer cessar a operação de subscrição de capital feita ao abrigo da impugnada deliberação, e obstar à realização da escritura pública de redução e aumento de capital, logo suscitando a inconstitucionalidade material e orgânica das normas dos artigos 38º, 55º, 56º e 90º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, alterado pelo Decreto-Lei n.º 315/98, de 20 de Outubro.
Estas pretensões foram indeferidas liminarmente, por despacho do Juiz do processo de 21 de Dezembro de 1999, com o fundamento em que, tendo já sido interposto, pelo requerente, recurso judicial da medida de recuperação decidida pela Assembleia de Credores e homologada por sentença, ao qual a lei atribui efeito meramente devolutivo, o deferimento delas implicaria a obtenção de resultado semelhante à alteração do efeito do recurso.
2.O demandante recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo então acrescentado ao rol de normas constitucionalmente impugnadas as dos artigos 87º, 88º, n.º 2, alíneas a) e b), e 94º do mesmo Código, e ainda as dos n.º 1 do artigo 234º-A e n.º 2 do artigo 2º, e dos artigos 381º e segs. do Código de Processo Civil.
Por acórdão de 16 de Maio de 2000, o dito Tribunal da Relação negou provimento ao recurso, confirmando o despacho recorrido, e condenou o recorrente como litigante de má-fé, nos termos dos artigos 456º, n.ºs. 1 e 2, alínea d), e 457º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, na multa de 10 unidades de conta e no reembolso das despesas que tal comportamento tivesse originado à agravada.
3.Veio então o recorrente interpor dois recursos para o Supremo Tribunal de Justiça,
“ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 754º, aplicável ex vi o disposto no n.º 3 do mesmo artigo e na al. a) do n.º 1 do art. 734º, do CPC, quanto à decisão que negou provimento ao agravo e confirmou o despacho recorrido.
. ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 456º do CPC, quanto à decisão que lhe imputou litigância de má-fé e o condenou em multa e em indemnização nos termos do disposto na al. a) do n.º 1 do art. 457º do CPC.”
Por despacho de 13 de Junho de 2000 a Ex.ª Desembargadora-relatora admitiu o segundo recurso, nos termos dos artigos 754º, n.º 1, e 456º, n.º 3, do Código de Processo Civil, e não admitiu o primeiro, nos termos do artigo 754º, n.º 2, do mesmo Código.
O recorrente produziu alegações em relação ao recurso admitido e à matéria referente ao não admitido, mantendo a alegação de inconstitucionalidade dos artigos 38º, n.º 1, 55º, 56º, n.º 3, 2ª parte, 87º, 88º, n.º 2, alínea d) ,e 94º, n.º 1, do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, e do n.º 1 do artigo 234º-A do Código de Processo Civil, acrescentando ainda a impugnação de outros dois artigos deste Código: os artigos 456º e 457º.
O recurso veio a ser decidido, após outras vicissitudes, pelo acórdão de 22 de Maio de 2001 do Supremo Tribunal de Justiça, mas apenas na parte em que fora admitido, e que dizia respeito à condenação do recorrente como litigante de má-fé, vindo a revogar a decisão condenatória proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra.
4.Entretanto, o recorrente reclamara do despacho de 13 de Junho de 2000, na parte em que não admitira o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão do Tribunal da Relação que negara provimento ao agravo, e que confirmara o despacho de 21 de Dezembro de 1999 do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro.
O despacho de sustentação, proferido em 11 de Julho de 2000 pela Ex.ª Desembargadora-relatora, alterou o fundamento da decisão, passando a invocar o disposto no artigo 387º-A do Código de Processo Civil, em vez do artigo 754º, n.º 2, do mesmo Código, e foi igualmente este o dispositivo invocado para desatender a reclamação no despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Outubro de 2000, apesar de tal norma ter sido impugnada, no plano da conformidade constitucional, pelo recorrente.
Veio então o demandante a interpor recurso desta última decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da sua Lei, com fundamento em inconstitucionalidade da invocada norma do artigo 387º-A do Código de Processo Civil.
Produzidas as alegações, este Tribunal decidiu, pelo Acórdão n.º 132/2001, de 27 de Março de 2001, incluído nos autos, negar provimento ao recurso, não julgando tal norma inconstitucional.
5.Transitado em julgado este aresto, e confirmada, portanto, a irrecorribilidade ordinária da decisão de 16 de Maio de 2000 do Tribunal da Relação de Coimbra neste ponto, invocou o recorrente o disposto no n.º 2 do artigo 75º da Lei do Tribunal Constitucional, para interpor recurso de constitucionalidade desta decisão, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º desta Lei, para obter apreciação da conformidade constitucional das seguintes normas:
a) a extraída do artigo 56º, n.º 2 do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, tal como resultante do Decreto-Lei n.º 315/98, de 20 de Outubro, “segundo a qual a homologação da deliberação da assembleia de credores que decida a redução do capital da sociedade objecto de acção intentada por um dos seus credores ao abrigo do art. 17º do dito Código, é eficaz antes de transitada em julgado”;
b) a extraída do artigo 56º, n.º 3, do mesmo diploma, “segundo a qual o recurso interposto da decisão homologatória nele prevista só pode ter efeito meramente devolutivo”;
c) a extraída do mesmo preceito, “segundo a qual constitui acto ilícito do sócio, o requerer a suspensão da deliberação de credores da sociedade a que pertence, no sentido de reduzir o capital social desta”;
d) a norma extraída do artigo 381º, n.º 1, do Código de Processo Civil, “segundo a qual é inequívoca a inviabilidade da pretensão de suspensão de deliberação de credores de uma sociedade (...) ainda que cause lesão grave e dificilmente reparável aos seus sócios, sem dela se conhecer;”
e) a extraída do artigo 87º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, tal como resultante do Decreto-Lei n.º 315/98, de 20 de Outubro, “segundo a qual são os credores e não os titulares do capital social, que têm nas mãos a possibilidade de reduzir o capital social de uma sociedade que tenha sido alvo de acção intentada por um dos seus credores ao abrigo do disposto no art. 17º do dito Código”;
f) a extraída dos artigos 88º, n.º 2, al. d), em conjugação com a extraída dos artigos 38º, n.º 1, e 55º, do mesmo diploma, “segundo a qual são os credores e não os titulares do capital de uma sociedade, que têm nas mãos a possibilidade de reduzir o capital social da mesma (...) com força vinculante para estes (...)”;
g) a extraída do artigo 90º, n.º 5, do mesmo diploma, “segundo a qual compete ao gestor judicial a outorga da escritura de redução do capital social de uma sociedade accionada por um dos seus credores ao abrigo do disposto no art. 17º do mesmo Código (...)”;
h) a extraída do artigo 94º, n.º 1, do mesmo diploma, “segundo a qual a deliberação de uma assembleia de credores no sentido de reduzir o capital social de uma sociedade accionada por um dos seus credores nos termos do artigo 17º do mesmo Código, depois de ter sido objecto de despacho judicial homologatório, não transitado, retira aos respectivos sócios o direito de requerer providência cautelar de suspensão dessa deliberação, e os faz incorrer em ilícito do art. 446º, n.º 2, al. c), do CPC, requerendo o respectivo procedimento”;
i) a extraída do art. 94º, n.º 3, do mesmo diploma “segundo a qual incumbe ao gestor judicial outorgar escritura de redução de capital social da sociedade, por mero efeito de deliberação de credores, tomada em acção intentada por um deles ao abrigo do art. 17º do mesmo Código, sem que tal deliberação tenha sido registada e publicada (...) e sem que tenha ocorrido trânsito em julgado da decisão judicial homologatória correspondente”;
j) a extraída do artigo 234º-A, n.º 1, do Código de Processo Civil, “segundo a qual é manifestamente improcedente petição de procedimento cautelar requerido ao abrigo e nos termos dos art.ºs 381º, n.º 1 e ss., do CPC, por sócio de sociedade accionada por um dos seus credores ao abrigo do art.º 17º do CPEREF, em virtude do efeito meramente devolutivo provisoriamente atribuído a recurso de apelação por ele interposto de decisão homologatória de deliberação de alguns dos seus credores”.
6.No Tribunal Constitucional, foi proferido despacho a delimitar o objecto do recurso, com o seguinte teor:
«1. No termo dos recursos destinados a ver reconhecido o direito de interpor recurso ordinário da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16 de Maio de 2000, veio A. intentar recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (por lapso escreveu “art. 75º -A, n.º 1, al. b)”), para obter apreciação da conformidade constitucional das seguintes normas, em determinadas interpretações:
– art. 56º, n.º2, do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, tal como resultante do Decreto-Lei n.º 315/98, de 20 de Outubro;
– art. 56º, n.º3 do mesmo diploma (em duas diferentes acepções);
– art. 381º, n.º 1, do Código de Processo Civil;
– art. 87º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, tal como resultante do Decreto-Lei n.º 315/98, de 20 de Outubro;
– art. 88º, n.º 2, al. d), do mesmo diploma;
– art. 90º, n.º5, do mesmo diploma;
– art. 94º, n.º 1, do mesmo diploma;
– art. 94º, n.º 3, do mesmo diploma.
Porque a decisão recorrida – o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16 de Maio de 2000 que confirmou o despacho de 21 de Dezembro do Tribunal Judicial de Aveiro – não fez aplicação de algumas das normas ou dimensões normativas invocadas, há que, preliminarmente, proceder à delimitação das questões de constitucionalidade que podem ser referidas a normas aplicadas pela decisão recorrida. É que só em relação àquelas que constituam ratio decidendi dela, e verificados que estejam os restantes requisitos específicos do tipo de recurso interposto, pode exercer-se a jurisdição deste tribunal – cfr., v.g., Acórdãos n.ºs 120/92 e 192/92, ambos publicados no Diário da República, II Série, de 18 de Agosto de 1992 e 449/93, publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Abril de 1994, onde se escreveu, designadamente:
“Muito embora haja sido suscitada durante o processo a questão a inconstitucionalidade de certa norma, sempre que a decisão proferida a final não haja utilizado como seu fundamento legal, isto é, quando tal decisão tenha sido tirada com referência a outra ou outras disposições normativas, o recurso da constitucionalidade que se dirija à específica fiscalização concreta dessa mesma norma não pode ser admitido por força da ausência de um seu pressuposto de admissibilidade.”
2. Vejamos então as normas indicadas (por ordem quase inversa).
A norma do artigo 94º, n.º 3, do Código dos Procedimentos Especiais de Recuparação da Empresa e da Falência dispõe, sob a epígrafe “Efeitos da deliberação da assembleia de credores”, que “incumbe ao gestor judicial promover o registo dos actos que dele necessitem e praticar ou requerer todos os actos necessários à perfeita execução da deliberação homologada, competindo ao juiz o esclarecimento das dúvidas suscitadas pela execução da providência.”
Ora, tal norma, que determina uma das consequências jurídicas da deliberação da assembleia de credores, não foi, nem podia ter sido, aplicada numa decisão confirmatória da decisão de um pedido de suspensão da deliberação da assembleia de credores, tomada com fundamento na incompatibilidade entre tal providência cautelar não especificada e o efeito legalmente fixado para o recurso judicial da medida de recuperação da empresa tomada pela assembleia de credores.
O mesmo se diga da norma do artigo 90º, n.º 5, do mesmo Código, que, sob a epígrafe “Aumento de capital”, prevê que “A escritura do aumento de capital é outorgada pelo gestor judicial.”
Trata-se igualmente de matéria alheia a uma decisão que se limitou a não admitir a providência cautelar de suspensão do que seria a causa do efeito previsto nesta norma, de modo algum sendo aplicada na decisão do tribunal recorrido (como não fora na decisão da 1ª instância).
Note-se, aliás, que uma e outra norma não estão a ser impugnadas – neste momento – no recurso dirigido à medida de recuperação da empresa tomada pela assembleia de credores, mas sim nos autos de providência cautelar nele enxertada.
3. A norma do artigo 94º, n.º 1, do mesmo Código, sob a epígrafe já referida, determina que “A deliberação da assembleia de credores que aprove uma ou mais providências de reestruturação financeira, depois de homologada, não só vale nas relações entre os credores e a empresa, mas também relativamente a terceiros.”
Também tal norma não foi, porém, explícita ou implicitamente invocada na decisão confirmatória da decisão da 1ª instância, como o poderia ser se se discutisse a obrigatoriedade, ou não, de o sócio acatar as deliberações da assembleia.
Nos presentes autos, o que se discutia era simplesmente o cabimento de uma providência cautelar de suspensão de uma deliberação da assembleia de credores anteriormente impugnada através de recurso. Nessa medida, a presente norma é alheia à fundamentação da decisão impugnada;
4 O artigo 87º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, contendo embora uma proposição jurídica definitória, poderia eventualmente ser impugnado como norma no sentido adiantado pelo ora recorrente – “segundo a qual são os credores e não os titulares do capital de uma sociedade que têm nas mãos a possibilidade de reduzir o capital social da mesma (...)” –, se bem que tal decorra, em termos de efeito jurídico, da igualmente impugnada (em idêntico sentido) norma da alínea d) do n.º 2 do artigo 88º do mesmo Código.
Em todo o caso, à apreciação de uma e/ou, outra, no presente recurso de constitucionalidade, obsta a circunstância de nenhuma delas ter sido convocada nas decisões dos autos de providência cautelar não especificada nem ser caso de, nessa sede, as convocar, face à decisão de indeferimento liminar tomada e confirmada na decisão recorrida: não se tratava de ajuizar se os credores podiam fazê-lo, mas de determinar se, tendo-o feito e tendo sido disso interposto recurso, era de admitir uma providência cautelar que com tal interferia.
Não se decidiu, pois, coisa alguma quanto aos poderes dos credores na assembleia respectiva: decidiu-se, tão-só, quanto às possibilidades de reacção dos sócios. O que é coisa bem diferente e convocou normas diversas.
5. A norma do artigo 56º, n.º 3, do mesmo diploma – que tem por epígrafe “Homologação da deliberação e recurso da decisão” – foi impugnada em duas diferentes dimensões interpretativas.
Numa delas – “segundo [o] qual constitui acto ilícito do sócio, o requerer a suspensão de deliberação de credores de sociedade a que pertencia no sentido de reduzir o capital social desta, por tal significar que o objectivo pretendido pelo mesmo requerente [é] o de ultrapassar o obstáculo que a lei coloca de tornar imediatamente executável tal medida” –, não pode detectar-se qualquer correspondência com o texto (sequer com um seu “sentido possível”) da norma impugnada, segundo a qual “O recurso sobe nos próprios autos, com efeito suspensivo, quando a decisão impugnada não homologue a deliberação; subirá com efeito meramente devolutivo nos restantes casos.”
A mais disso – que já seria suficiente para afastar este sentido imputado à norma do objecto do recurso de constitucionalidade, pois a norma em causa não o comporta –, acresce o facto de a suposta ilicitude a que se refere o ora recorrente só poder ser entendida à luz da decisão condenatória proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra. Ora, tal condenação por litigância de má-fé, sustentada nessa actuação tida por ilícita, foi, porém, revogada pelo Supremo Tribunal de Justiça, pelo que, ainda que pudesse ser imputada ao Tribunal recorrido, não constituía decisão definitiva dentro da ordem de tribunais e foi ultrapassada nesta.
Também por isso, e atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade (cfr., v.g. os Acórdãos n.ºs 169/92, 453/93, publicados, respectivamente, nos Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de 1992 e 6 de Maio de 1994), não há que conhecer da constitucionalidade desta norma no sentido acabado de indicar.
6. A norma do artigo 56º, n.º 2, sob a mesma epígrafe referida no parágrafo anterior, determina que “A homologação [da deliberação da assembleia sobre o meio de recuperação aprovado] depende apenas da observância das normas legais aplicáveis, dela cabendo recurso somente para o tribunal da relação.”
Ora, tal norma vem impugnada num sentido que, a mais de não coincidente com o seu teor literal, não pode ser reconduzido sequer a um seu sentido possível (cabendo aliás directamente a outras disposições, como o n.º 3 desse mesmo artigo ou o artigo 94º, já referido): o de que “a homologação da deliberação da assembleia de credores que decida a redução de capital (...) é eficaz antes de transitada em julgado (...)”.
Como em relação ao sentido impugnado do artigo 56º, n.º 3, referido no parágrafo anterior, acresce aqui outro fundamento para o não conhecimento desta questão: o da não aplicação desta norma na decisão recorrida.
É que não estava em causa, na providência cautelar e, consequentemente, na sua decisão, a verificação das normas legais aplicáveis para homologar a decisão da assembleia de credores, nem a determinação do tribunal competente para o recurso de tal decisão de homologação. Recurso esse, aliás, que foi interposto, e onde as questões de constitucionalidade quanto a esta norma podem ser – ou ter sido – discutidas.
7. A norma do artigo 381º, n.º 1, do Código de Processo Civil vem igualmente impugnada, na sua constitucionalidade, enquanto, segundo o recorrente, seja interpretada no sentido de que “é inequívoca a inviabilidade da pretensão de suspensão de deliberação de credores de uma sociedade, de redução do respectivo capital social não justificada por balanço aprovado pela respectiva assembleia geral de accionistas ainda que cause lesão grave e dificilmente reparável aos seus sócios, sem dela conhecer”, tendo a inconstitucionalidade de tal norma sido suscitada durante o processo.
Tal artigo 381º, n.º 1, dispõe, porém, que “Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado”.
É bom de ver, pela simples leitura da norma, que ela não comporta a interpretação que lhe é imputada pelo recorrente (de inviabilidade, sem dela se conhecer, da pretensão de suspensão de deliberação de credores de uma sociedade, de redução do respectivo capital social não justificada por balanço aprovado pela respectiva assembleia geral de accionistas, ainda que causando lesão grave e dificilmente reparável aos seus sócios), também não tendo, por outro lado, sido aplicada pelo tribunal recorrido com tal interpretação. Na verdade, na decisão recorrida não se considerou que a redução do capital social não era justificada pelo balanço e que causou lesão grave e dificilmente reparável aos seus sócios, apesar disso recusando o conhecimento do pedido (coisa diversa, evidentemente, é saber se na verdade a redução do capital social não foi justificada pelo balanço, e se causou lesão grave e dificilmente reparável aos seus sócios; aqui estaria já em causa a avaliação dos factos por uma decisão judicial, cuja constitucionalidade não compete a este Tribunal controlar). Este Tribunal também não pode, pois, tomar conhecimento do pedido de apreciação da constitucionalidade de tal norma ou dimensão normativa.
8. Assim, delimito o objecto do recurso à norma do artigo 56º, n.º 3 do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, na interpretação segundo a qual “o recurso interposto de decisão homologatória nele prevista só pode ter efeito meramente devolutivo e faz precludir o direito de o sócio (...) requerer procedimento cautelar do art. 381º e ss. do CPC, de suspensão de deliberação dos credores visando a redução, em termos aniquilatórios da participação social de que é titular” (suprimiu-se a referência, na interpretação enunciada pelo recorrente, ao facto de o sócio, segundo aquele alega, ser pela deliberação “lesado nos seus direitos fundamentais de associação, de livre iniciativa económica e de propriedade privada, e de acesso ao direito e aos tribunais”, pois tal tem já a ver com a fundamentação do juízo a fazer sobre a norma). Para alegações, com o objecto do recurso delimitado nos termos indicados.”
7.Em resposta a este despacho, o recorrente veio suscitar questões prévias e apresentar as suas alegações em relação à referida norma do artigo 56º, n.º 3, 2ª parte, do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, e, também, em relação à norma do artigo 234º-A, n.º 1, do Código de Processo Civil, “segundo a qual é manifestamente improcedente petição de procedimento cautelar requerido ao abrigo e nos termos dos art.ºs 381º, n.º 1 e ss., do CPC, por sócio de sociedade accionada por um dos seus credores ao abrigo do art.º 17º do CPEREF, em virtude do efeito meramente devolutivo provisoriamente atribuído a recurso de apelação por ele interposto de decisão homologatória de deliberação de alguns dos seus credores”. Tal resposta concluiu assim:
“I – QUESTÕES PRÉVIAS
1. A 1ª instância não conheceu liminarmente de nenhum dos pressupostos da providência requerida, nem de nenhuma das questões de inconstitucionalidade suscitadas; conheceu apenas de factos e de razões de direito estranhos aos pressupostos da providência.
2. Nas alegações de recurso para a Relação, o agravante arguiu inconstitucionalidades normativas relativamente às deliberações cuja suspensão foi pedida, e inconstitucionalidade das normas dos art.ºs 234º-A, n.º 1, do CPC, e 56º, n.º 3, 2ª parte, do CPEREF, aplicadas pela 1ª instância.
3. No acórdão da Relação de que emerge o presente recurso, foi feita aplicação das normas já anteriormente aplicadas pela 1ª instância, arguidas de inconstitucionalidade.
4. O despacho do Ex.mo Conselheiro Relator delimitativo do objecto do recurso, não fez precludir o direito de o recorrente alegar sobre a norma do art.º 234º-A, n.º1, do CPC, atenta a inobservância do disposto nos art.ºs 3º, n.º 3, e 704º, n.º 1, do CPC, e a omissão de pronúncia sobre aquela norma referida no requerimento de interposição de recurso.
II – RELATIVAMENTE À NORMA EXTRAÍDA DO ART.º 234º-a, N.º1, DO CPC
A norma extraída do art.º 234º-A, n.º 1, do CPC, com referência à primeira parte da al. b) do n.º 4 do art.º 234º do mesmo Código, segundo a qual o tribunal, após haver reconhecido que o requerente havia sido prejudicado pela decisão homologatória de deliberação integrante dos pressupostos do procedimento cautelar, pode julgar manifestamente improcedente providência cautelar requerida ao abrigo do disposto nos art.ºs 381º e ss, do CPC, sem conhecer liminarmente dos pressupostos invocados e das questões de inconstitucionalidade suscitadas no requerimento inicial, e, ao invés, conhecendo de factos e razões de direito estranhos aos mesmos pressupostos, é manifestamente inconstitucional por violar as normas e os princípios consignados nos art.ºs 2º, 3º, n.º3, 13º, 20º, n.ºs 1,4 e 5, 202º, n.º 2, e 204º da Constituição.
III – RELATIVAMENTE À NORMA EXTRAÍDA DO ART.º 56º, N.º3, 2ª PARTE DO CPEREF
A norma extraída do art.º 56º, n.º3, 2ª parte, do CPEREF, segundo a qual o efeito do recurso interposto ao abrigo do disposto no art.º 680º, n.º2, em vez de ser suspensivo nos termos do disposto no art.º 692º, n.º 1, ambos do CPC, é meramente devolutivo e faz precludir o direito de o sócio requerer procedimento cautelar ao abrigo do disposto nos art.ºs 381º e ss, deste último diploma legal, de suspensão de deliberação dos credores visando a redução, em termos aniquilatórios da participação social de que é titular, é materialmente inconstitucional por violar os princípios e as normas consignados nos art.ºs 2º, 9º, als. b) e d), 13º, n.º 2, 18º, n.º1, 20º, n.ºs 1, 4 e 5, 26º, n.º 1, 46º, n.º 1, 61º, n.º 1, e 62º, n.º 1, da CRP.”
Por sua vez, a recorrida concluiu deste modo:
“1ª Todas as questões prévias suscitadas pelo recorrente ficaram prejudicadas pelo douto despacho do Mmo. Conselheiro-Relator de 11.10.2001, de delimitação do objecto do recurso, que circunscreveu este último à norma do art. 56º, n.º 3, do C.P.E.R.E.F..
2ª Ainda que assim não fosse, nenhuma das questões prévias levantadas mereceria provimento.
3ª A norma do art. 56º, n.º 3, 2ª parte, do C.P.E.R.E.F. não padece de quaisquer vestígios de inconstitucionalidade e está antes ao serviço de uma finalidade constitucionalmente relevante, tutelada nos arts. 56º e 61º da Constituição.
4ª O facto de o recurso ser interposto ao abrigo do art. 680º, n.º 2, do C.P.C., não justifica qualquer tratamento diferenciado relativamente à questão da constitucionalidade da norma do art. 56º, n.º 3, 2ª parte do C.P.E.R.E.F..
5ª A atribuição de efeito meramente devolutivo da sentença homologatória da deliberação da assembleia de credores que aprova a providência de recuperação, é sinal inequívoco do propósito legal de não entravar a salvação efectiva das empresas recuperáveis, em homenagem ao interesse geral da economia, bem como aos interesses dos credores e dos trabalhadores, interesses estes dotados de dignidade constitucional e tutelados, designadamente, pelas referidas normas dos arts. 58º e 61º da Constituição.
6ª Seria defraudar grosseiramente o espírito informador da disposição do art. 56º, n.º 3, 2ª parte do C.P.E.R.E.F. – e seria, por conseguinte, ofensivo de tais regras constitucionais – obter-se o resultado que tal norma pretende evitar lançando mão de uma providência cautelar que tivesse por objecto impedir a prática dos actos de execução da providência aprovada pela assembleia de credores.
7ª A providência requerida pelo Recorrente consubstancia, pois, uma forma ilegal de entravar a marcha do processo de recuperação da Recorrida e de inutilizar a sentença homologatória da deliberação da assembleia de credores.
8ª Não estão em causa no presente processo, por isso, quaisquer direitos dotados de especial tutela constitucional que porventura justificasse uma qualquer derrogação do regime instituído no art. 56º, n.º 3, 2ª parte do C.P.E.R.E.F..
9ª Também a norma do art. 234º-A, n.º 1 do C.P.C., não enferma de inconstitucionalidade, e designadamente do vício apontado pelo recorrente, estando ao serviço de fins úteis e legítimos e dignos de tutela constitucional.
10ª Uma vez verificada a ilegalidade da providência requerida, causa bastante do seu indeferimento liminar, ficam automaticamente consumidas todas as demais questões que nela pudessem ser suscitadas.
11º É plenamente respeitado o preceito do art. 20º da Constituição quando, através de uma decisão liminar, se indefere o requerimento de uma providência cautelar que em caso algum poderia proceder.
12ª A decisão de indeferimento liminar, estando também ao serviço do princípio da economia processual que proibe a prática de actos inúteis, favorece até a plena realização do objectivo constitucional da obtenção de uma decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
8.No requerimento de interposição do presente recurso, interposto ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, o recorrente indicava nada menos que dez normas, todas elas alegadamente correspondentes a dimensões normativas dos preceitos indicados.
No despacho transcrito, proferido neste Tribunal, procedeu à delimitação do objecto do recurso, por lapso não se tendo, todavia, incluído neste objecto também a citada norma extraída do artigo 234º-A, n.º 1, do Código de Processo Civil – norma, esta que, efectivamente, foi impugnada no requerimento de recurso. Esta norma conta-se entre as normas que o recorrente impugnou, e verificam-se também em relação a ela os requisitos para se tomar conhecimento do recurso.
Pode, pois, considerar-se delimitado o objecto do presente recurso à apreciação da constitucionalidade das referidas normas do artigo 56º, n.º 3, 2ª parte, do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, do artigo 234º-A, n.º 1, do Código de Processo Civil.
9.Começando pela norma extraída do artigo 234º-A, n.º 1, do Código de Processo Civil, a questão de constitucionalidade suscitada em relação a ela – na parte em que consente que o juiz, em vez de ordenar a citação, indefira liminarmente um procedimento cautelar quando se lhe afigure que o pedido é manifestamente improcedente – vem configurada como uma questão de inconstitucionalidade normativa, e não como uma impugnação da sua aplicação no caso concreto. Isto, porque o recorrente entende que os artigos 2º, 3º, n.º 3, 13º, 20º, n.ºs. 1, 4 e 5, 202º, n.º 2, e 204º da Constituição impõem que na aplicação de tal norma – isto é, no juízo sobre a manifesta improcedência – se conheça “liminarmente dos pressupostos invocados e das questões de inconstitucionalidade suscitadas no requerimento inicial”, não podendo tal juízo de improcedência liminar basear-se em “factos e razões de direito estranhas aos mesmos pressupostos”.
Recorde-se que o fundamento do indeferimento liminar de tal procedimento cautelar foi o de que por via deste se lograria resultado semelhante ao que se obteria se o recurso da decisão que homologou a deliberação da assembleia de credores tivesse efeito suspensivo, quando o legislador estabeleceu, no n.º 3 do artigo 56º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (a norma cuja inconstitucionalidade se apreciará a seguir), que só os recursos de decisões não homologatórias teriam efeito suspensivo. De facto, apreciando esta decisão do juiz da 1ª instância, escreveu-se no acórdão recorrido:
“...ao propor o presente procedimento cautelar dependente da acção de recuperação, visando a suspensão daquelas medidas aprovadas pelos credores, não podemos deixar de concluir como se fez no despacho recorrido, que o objectivo pretendido pelo agravante é o de ultrapassar o obstáculo que a própria lei coloca de tornar imediatamente executáveis as medidas de recuperação adoptadas, assim as bloqueando e impedindo a operação de subscrição de capital em curso, e esvaziando, por um meio enviesado, o conteúdo da norma ínsita na 2ª parte do n.º 3 daquele art. 56º.
Semelhante objectivo, por contrário à lei, é de todo inadmissível. Suspender as medidas de recuperação económica através de providência cautelar, era o mesmo que atribuir ao recurso efeito suspensivo, que o legislador não previu nem quis. Daí que seja inequívoca a inviabilidade da pretensão apresentada pelo recorrente, para atingir, por outra via, um efeito que a lei não prevê.”
O que o recorrente reputa inconstitucional é que este juízo de manifesta improcedência se possa basear em razões exógenas aos pressupostos invocados no procedimento cautelar, designadamente quando tal implique a omissão do juízo de conformidade constitucional que nessa providência cautelar era solicitado. Para o recorrente, o juízo de manifesta improcedência só poderia resultar de razões endógenas aos pressupostos invocados no procedimento cautelar, ou da falta de sentido das questões de constitucionalidade suscitadas: “Pedido manifestamente improcedente é o pedido que manifestamente não decorre dos pressupostos da providência.”
10.Não se vê, porém, fundamento para a distinção defendida pelo recorrente, e, menos ainda, fundamento constitucional para impor tal entendimento do juízo de manifesta improcedência.
Designadamente, não resulta tal fundamento, seguramente, dos (múltiplos) parâmetros constitucionais invocados – ou seja, do conteúdo do artigo 2º da Constituição (princípio do Estado de direito democrático), nem da imposição da conformidade constitucional das leis e demais actos do Estado (n.º 3 do artigo 3º da Constituição), nem do princípio da igualdade (artigo 13º da Lei Fundamental), nem do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional (artigo 20º, n.ºs. 1, 4 e 5), nem dos princípios sobre a função jurisdicional (artigo 202º), ou da proibição de aplicação de normas inconstitucionais nos feitos submetidos a julgamento (artigo 204º) – apesar da (escassa) argumentação que o recorrente invocou nas suas alegações perante o Tribunal da Relação (a ff. 133-134), e que não alargou substancialmente nas suas alegações perante este Tribunal (a ff. 442-462).
Aliás, até porque está já em curso a apreciação judicial da decisão que homologou a deliberação da assembleia definitiva de credores em processo de recuperação de empresas, o recurso a uma providência cautelar não especificada, apostada em obstar à concretização prática dessa decisão judicial, seria contraditório com o efeito atribuído ao recurso. O que não quer dizer que, não tendo havido recurso da decisão homologatória da deliberação da assembleia de credores, a solução fosse diferente – questão sobre a qual as partes divergem e que não compete a este Tribunal decidir. Certo é que com tal recurso em apreciação, não pode o recorrente invocar estar em causa a violação da garantia de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, pelo indeferimento liminar do procedimento cautelar.
É verdade que a fixação de um efeito não suspensivo para este recurso implica, segundo a interpretação adoptada pelas instâncias, a preclusão do direito a uma decisão judicial de mérito destinada a suspender, pela via da providência cautelar, a ameaça de lesão de direitos decorrentes da execução imediata da decisão recorrida. Mas isto é o que pode acontecer em todos os casos em que o efeito dos recursos seja meramente devolutivo, e não implica “violação dos princípios da igualdade e do Estado de Direito consignados nos art.º 13º e 2º da CRP”, como não implica “violação da garantia de acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, consignada no n.º 1 do art.º 20º da CRP”, nem “violação da norma de garantia de obtenção de decisão jurisdicional mediante processo equitativo, consignada no n.º4 desse preceito constitucional”, como pretende o recorrente.
Aliás, a invocação da inconstitucionalidade “qualificada” que caberia ao caso por a providência cautelar ter sido requerida “contra ameaças ou violações dos direitos fundamentais (...) designadamente do direito de propriedade privada e do direito de associação, tutelados nos termos do n.º 5 da mesma disposição constitucional” não considera a específica natureza da propriedade sobre participações sociais, no contexto “interno”, e, designadamente, no confronto com deliberações da assembleia geral. Especificidade, esta, que foi assim descrita no Acórdão n.º 491/2002 (publicado no DR, II Série, de 22 de Janeiro de 2003):
«“a participação social (‘Mitgliedschaft’, ‘socialité’, ‘membership’) – enquanto posição jurídica complexa e sui generis inerente à qualidade de membro de uma corporação social (designando genericamente o conjunto de direitos, obrigações, expectativas jurídicas, ónus e faculdades em que cada sócio é investido no seio e em face daquela) – constitui sempre uma propriedade mediatizada pela interposição de uma entidade corporativa dotada de personalidade e organização jurídicas próprias” (cfr. José Engrácia Antunes, A aquisição tendente ao domínio total, cit., Coimbra, 2001, pp. 62 e ss. e 147). A participação social apareceria, pois, configurada como objecto de uma propriedade inevitavelmente (“visceralmente”, na expressão do autor citado) mediatizada ou pela interposição do ente social, com a sua organização própria, comportando-se de modo diametralmente diverso no plano das relações jurídicas externas e internas. No plano destas últimas, o poder de disposição poderá ter apenas o alcance que resulta do próprio quadro legal-estatutário instituinte da corporação social que está na sua génese. Designadamente, sendo a corporação organizada, no caso das chamadas sociedades de capitais, com base em princípios estruturantes da maioria (artigos 250º, n.º 3, e 386º, n.º 1, do CSC), o exercício e o conteúdo das faculdades inerentes à titularidade de acções ou quotas jamais poderão deixar de se conformar com as concretas vicissitudes emergentes da vontade colectiva maioritariamente formada, e, consequentemente, com as particulares extensões ou compressões que daí possam resultar. Existem, assim, inúmeras operações jurídico-societárias que podem conduzir, directa ou indirectamente, a uma afectação substancial, ou mesmo à eliminação, dessa “propriedade corporativa” – como acontece nos casos de aumento e redução de capital, fusão, cisão, transformação, dissolução –, pelo que, se aquela devesse ser concebida à imagem realista dos direitos de propriedade, é óbvio que o funcionamento destas organizações e a conformação da vontade colectiva estariam condenados necessariamente à regra do consentimento unânime de todos os sócios (autor e ob. cits., pp. 74-81 e 147-148).»
E desconsidera também que já em outras ocasiões este Tribunal, a propósito justamente da perda da titularidade de participações sociais, admitiu a sua alienação no quadro da gestão controlada, como medida de recuperação da empresa, mesmo contra a vontade dos seus titulares.
Assim, no Acórdão n.º 391/02 (publicado no DR, II Série, de 19 de Fevereiro de 2003) escreveu-se que a Constituição admite limitações ao direito à propriedade para além do caso de expropriação por utilidade pública, e que, no caso, seria antes a não concretização da alienação, impedindo a recuperação económica da empresa, que “implicaria uma afectação do próprio direito de propriedade dos titulares das acções (no caso, o seu valor económico).”
11.No fundo, a argumentação do recorrente assenta numa petição de princípio: partindo do pressuposto de que a Constituição lhe garante, no caso, o “procedimento cautelar requerido a fls. 2 a 9 dos autos ao abrigo do disposto nos arts. 381º e ss, do CPC”, para a tutela de um direito de natureza análogo a um direito do Título II da Parte I da Constituição, insurge-se contra a sua não concessão, omitindo, porém, a demonstração da natureza de tal direito e esquecendo que nem sequer foi estabelecido que estivessem preenchidos os requisitos previstos no artigo 399º (designadamente, a existência de “lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito”) e no artigo 401º (designadamente, que o dano que se queria evitar com a providência excedesse o prejuízo dela resultante) para que tal providência pudesse ser decretada – e que, portanto, não poderia partir de um direito a uma providência cautelar (não especificada) como base de argumentação.
E, mesmo que verificados os pressupostos que dariam lugar ao decretamento da providência, era preciso demonstrar primeiro se havia lugar a ela, qualquer que fosse a natureza do direito a tutelar, sendo certo que o recorrente entende que sim, e as instâncias entenderam que não.
Ora, a argumentação em prol da inconstitucionalidade deste último entendimento não pode, obviamente, estribar-se na convicção do recorrente da existência de uma imposição constitucional de um procedimento cautelar não especificado, e não previsto como aplicável ao caso, nem na Constituição nem na lei, à margem das garantias judiciais expressamente previstas nesta e dos requisitos estabelecidos, em geral, para os procedimentos cautelares.
12.Também não colhe, por outro lado, a alegada nova razão consistente em que “interpretar o preceito da 2ª parte do n.º 3 do art.º 56º do CPEREF, como impeditivo da tutela cautelar dos arts. 381º e ss., do CPC” importaria “supressão da garantia constitucional da tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças aos direitos fundamentais do sócio da requerida, desencadeada por credores mancomunados na falsificação de documentos de escrita da mesma, tendo em vista a exclusão daquele grémio societário”.
Por um lado, não é isto que está em causa; o sócio pode, querendo, continuar sócio da sociedade, já que no processo de redução e subsequente aumento do capital pode adquirir o número mínimo de acções para não ser excluído. Por outro lado, está já em curso de apreciação a legalidade da deliberação social, homologada por decisão, que o determinou. E por outro lado, ainda, há outras formas de reacção jurisdicional contra o conluio e a falsificação de documentos. Finalmente, e como já se decidiu a propósito da norma do artigo 490º do Código das Sociedades Comerciais ( no citado Acórdão n.º 491/02 ), a posição de sócio não goza de intangibilidade quando concorre com direitos e interesses da sociedade ou da maioria dos sócios.
13.Pretende o recorrente que a norma do artigo 56º, n.º 3, do Código dos Processos de Recuperação da Empresa e de Falência é inconstitucional, mas, mais uma vez, com base em argumentos genéricos: porque o recurso (da decisão de homologação de deliberação dos credores) foi interposto ao abrigo do n.º 2 do artigo 680º do Código de Processo Civil (i.e.: por pessoa directa e efectivamente prejudicada pela decisão, embora não parte na causa), seguir-se-ia que tal recurso “concretiza a garantia constitucional de acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, independentemente da natureza dos direitos e interesses afectados pela decisão”, e que, quando esses direitos “sejam os do título II, Parte I, da Constituição, ou tenham natureza análoga, beneficiários do regime dos direitos liberdades e garantias ex vi seu art. 17º (...) consubstancia procedimento judicial destinado à obtenção de tutela efectiva e em tempo útil contra ameaça ou violação desses direitos.”
O que implicaria – mas trata-se verdadeiramente de um non sequitur – que “Só por isso, tal recurso não pode deixar de ter efeito suspensivo.”
Mais uma vez, porém, o recorrente parte da afirmação do efeito que pretende demonstrar: “tem de reconhecer-se que o regime processual de subida e efeito suspensivo da apelação inerente ao recurso interposto (cf. art. 692º, n.º 1, do CPC) concretiza aquela garantia constitucional de acesso ao direito e de tutela efectiva dos direitos ameaçados”. E fá-lo contra o regime expressamente previsto na lei (artigo 56º, n.º 3, 2ª parte), com o argumento de que “o respeito por direitos da mesma natureza no âmbito do CPEREF, encontra-se expresso na norma da 1ª parte do mesmo preceito legal” – ao estatuir efeito suspensivo para as decisões homologatórias da decisão da assembleia de credores sobre o meio de recuperação aprovado –e de que haver dois diferentes regimes violaria o princípio da igualdade.
Ora, é manifesto que os interesses tutelados pela homologação da deliberação da assembleia de credores quanto ao meio de recuperação aprovado são totalmente diversos dos que resultam da sua não homologação, já que a esta se segue a falência (cfr. n.º 4 do artigo 56º do referido Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência).
E é também claro que não há comparabilidade, para efeitos do princípio da igualdade entre o efeito da falência da empresa e o da exclusão de um sócio da sociedade. O interesse que reclama a fixação do efeito suspensivo no primeiro caso é o mesmo que determinou a opção do legislador pelo efeito devolutivo do segundo: a intenção de preservar uma unidade económica que os credores consideram viável.
Não tem, pois, sentido afirmar, como o fez o recorrente, que “para direitos iguais medidas iguais”, pois o interesse de um ou mais sócios em não ver os seus direitos sociais diminuídos (ou mesmo extintos) numa operação de redução do capital social, decidida pela assembleia de credores como forma de assegurar a recuperação da empresa e homologada por sentença judicial, nada tem de semelhante com o interesse de todos os sócios, da empresa, e da sociedade em geral, em evitar a falência da empresa.
Acresce, a mais dessa inapropriada invocação do princípio da igualdade e do apriorismo de uma como que “inata”, e indemonstrada, tutela judicial efectiva ilimitada – quando, obviamente, esta tem de obedecer às condições legalmente estabelecidas para o seu exercício, numa matéria em que a discricionaridade legislativa é larga –, que faltam argumentos para justificar esse juízo de inconstitucionalidade sobre a opção do legislador, apesar da invocação de múltiplos e numerosos parâmetros constitucionais (aliás só nas conclusões das alegações, e não nestas).
Certo é, porém, que nem o artigo 2º da Constituição da República (Estado de direito democrático), nem o artigo 9º (Tarefas fundamentais do Estado), alíneas b) e d), nem o artigo 13º (Princípio da igualdade), n.º 2, nem o artigo 18º (Força jurídica dos preceitos constitucionais respeitantes a direitos, liberdade e garantias), n.ºs 1, 4 e 5, nem o artigo 26º (Outros direitos pessoais), n.º 1, nem o artigo 46º (Liberdade de associação), n.º 1; nem o artigo 61º (Iniciativa privada, cooperativa e autogestionária) n.º1, ou o artigo 62º (Direito de propriedade privada), n.º 1, da Constituição, conduzem à inconstitucionalidade que é assacada ao regime processual do efeito do recurso que é estabelecido no n.º 3 do artigo 56º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência.
Conclui-se, pois, que nem a norma que fixa o efeito do recurso da decisão judicial de homologação da deliberação da assembleia de credores que fixa o meio de recuperação da empresa em crise – o n.º 3 do artigo 56º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência –, nem a norma que permite indeferir liminarmente uma providência cautelar para suster a execução das medidas de concretização dessa deliberação homologada, com base na sua manifesta improcedência – o n.º 1 do artigo 234º-A do Código de Processo Civil –, padecem de qualquer das inconstitucionalidades que lhe foram imputadas.
Pelo que o presente recurso não pode obter provimento.
III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao presente recurso e confirmar a decisão recorrida no que à questão de constitucionalidade respeita, bem como condenar o recorrente em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 7 de Janeiro de 2004
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos