Imprimir acórdão
Processo n.º 889/03
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1.Em 14 de Julho de 2003, A. apresentou, no Tribunal Judicial do Funchal, recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa do despacho proferido em 2 de Julho de 2003 pelo Juiz do 3º Juízo Criminal do mesmo Tribunal, que determinou que passasse a aguardar os ulteriores termos do processo em prisão preventiva. Após diligências para integrar no processo elementos em falta, foi determinado pelo relator no Tribunal da Relação, em 8 de Outubro de 2003, que se solicitasse cópia do despacho relativo ao reexame da prisão preventiva, entretanto necessariamente proferido por força do disposto no artigo 213º, n.º 1, do Código de Processo Penal. No dia 16 de Outubro de 2003, o recorrente enviou requerimento ao processo chamando a atenção para o decurso do prazo de três meses aí previsto, pedindo imediata decisão sobre o objecto do recurso. Em 20 de Outubro de 2003, os autos foram conclusos ao Desembargador-relator com cópia do despacho que reexaminou a prisão preventiva do recorrente e decidiu mantê-la, por considerar inalterados “os pressupostos conducentes à aplicabilidade daquela” medida. Em consequência, o recurso veio a ser decidido, em conferência, no dia 15 de Novembro de 2003, no sentido da sua inutilidade superveniente (por maioria, com um voto de vencido).
2.Inconformado, o recorrente interpôs o presente recurso para o Tribunal Constitucional, podendo ler-se no respectivo requerimento:
“No caso dos autos o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação no dia
14/7/03 da decisão proferida no dia 2/7/03. Não obstante tratar-se de arguido preso, só decorridos quase 4 meses após a decisão da 1ª instância a Relação profere o despacho do qual ora se recorre. De facto tal situação, em conjunto com os diversos pedidos de elementos à 1ª instância, não pode deixar de causar estranheza ao recorrente, pois em recentes processos mediáticos a decisão foi proferida de um dia para o outro. O presente recurso tem como fundamento a inconstitucionalidade do art. 287º, al. e), do CPC, aplicado aos presentes autos por força do art. 4º do CPP, na interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida. Ora tal norma com a interpretação supra viola o disposto no art. 32º, n.º 1, da C.R.P.. Com efeito, considerar que um recurso sobre a mais gravosa das medidas de coacção, perderia o interesse, desde que a decisão fosse de novo reapreciada pela 1ª instância, poderia dar azo a que tal medida nunca pudesse ser impugnada em sede de recurso. Para tal, basta que o Tribunal de recurso, ‘atrase’ ou protele a decisão além dos três meses e vai daí o objecto, a questão de fundo nunca é analisada. Ora desta forma o direito constitucional ao recurso consagrado na última parte do n.º 1 do art. 32º da CRP, um dos direitos fundamentais, ficaria, manifestamente, esvaziado de conteúdo. A questão da inconstitucionalidade não foi anteriormente suscitada porquanto a interpretação dada à norma em questão pela decisão recorrida foi de todo imprevisível não podendo o recorrente, razoavelmente, contar aquando da interposição do recurso com a sua aplicação. Por outro lado, muito embora consta da decisão que a questão foi suscitada no exame preliminar, art.º 419º, n.º 3, do CPP, o facto é que o recorrente jamais foi notificado para se pronunciar sobre tal questão prévia e não lhe era exigível que antevisse a possibilidade de aplicação da norma ao caso concreto, de modo a exigir-lhe o ónus de suscitar a questão antes da decisão. Aliás, o entendimento jurisprudencial do Tribunal Constitucional é no sentido de que, em casos de detenção ou prisão preventiva, mantém interesse o recurso interposto da decisão condenatória de privação de liberdade, ainda que no subsequente desenrolar do processo criminal se venha a confirmar a medida de privação de liberdade. O recurso é admissível, está em tempo, é interposto por quem tem legitimidade
(...)”. Admitido o recurso, foi proferido despacho pelo relator no Tribunal Constitucional, em 17 de Dezembro de 2003, para se obter informação sobre “se foi ou não interposto recurso do despacho de 30 de Setembro de 2003”, que reexaminara a medida de coacção de prisão preventiva, tendo chegado, em 19 de Dezembro de 2003, resposta, em sentido negativo, do Tribunal Judicial do Funchal. As alegações do recorrente, entradas em 15 de Janeiro de 2004, limitaram-se a reproduzir o requerimento de interposição do recurso e a remeter “para as alegações de recurso” – depreende-se que as dirigidas ao Tribunal da Relação de Lisboa (nas quais no entanto, como se viu, a questão de constitucionalidade –
única que ora importa – não tinha sido debatida). Nas suas contra-alegações, discreteou deste modo o Ministério Público:
“A questão de utilidade do recurso interposto da decisão que comina ao arguido, ouvido em primeiro interrogatório, a medida de coacção de prisão preventiva não
é nova na jurisprudência do Tribunal Constitucional – tendo-se inclusivamente colocado no âmbito da utilidade do próprio recurso de constitucionalidade, interposto da decisão da Relação que haja confirmado tal medida de coacção. No nosso entendimento, importa distinguir três possíveis situações processuais: a) A primeira delas, é a que foi objecto do Acórdão n.º 418/03, caracterizada pelo facto de ter ocorrido uma reapreciação antecipada (cuja legalidade é questionada pelo recorrente) da medida de coacção de prisão preventiva – sendo evidente, como se sustentou na alegação produzida em tal processo, que seria violadora do “direito ao recurso” a interpretação normativa (fundada, designadamente, na aplicação subsidiária do artigo 287º, alínea e), do Código de Processo Civil) que considerasse precludido o interesse em agir do recorrente. Não é, porém, este o caso dos autos, já que o despacho recorrido data de 2/7/03 e a prisão preventiva foi reexaminada precisamente no termo do prazo previsto no artigo 213º, n.º 1, do Código de Processo Penal; b) A segunda situação é a que corresponde ao caso tratado no Acórdão n.º 296/03, em que se considerou precludido o interesse em agir do recorrente num caso em que o arguido se conformou com o despacho que – no termo do prazo legal – procedeu à reapreciação da prisão preventiva, mantendo-a por se considerar não terem ocorrido factos ou circunstâncias supervenientes relevantes. Na verdade, nesta concreta situação processual é inquestionável o efeito consumptivo da decisão que transitou em julgado, por inércia do próprio recorrente que a não impugnou, deixando assente – e cobrindo – a legalidade da respectiva prisão preventiva.
É esta precisamente a situação dos autos, face à informação prestada a fls. 116 dos autos, pelo que se deverá aderir à orientação subjacente ao Acórdão n.°
296/03 – o que conduzirá a um juízo de não inconstitucionalidade da interpretação normativa feita pela Relação. c) Tal circunstância dispensa-nos de abordar a questão da constitucionalidade da terceira situação processual verificável nesta sede: aquela em que a prisão preventiva é reapreciada no termo do prazo legal, estabelecido pela lei processual penal, sendo mantida com base em despacho substancialmente inovatório, o qual é objecto de impugnação tempestiva pelo arguido – podendo naturalmente discutir-se se o primitivo recurso mantém interesse para o recorrente, apesar da aparente “consumpção” do despacho através dele impugnado, fundamentalmente com vista a deixar assegurada a via de uma acção indemnizatória pela privação “ilegal” da liberdade. Na verdade, não sendo esta a situação procedimental dos autos – e movendo-nos no
âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade – não teria qualquer utilidade a apreciação desta questão.»
E concluiu deste modo:
«1º - Não viola o direito ao recurso, ínsito no princípio das garantias de defesa do arguido, a interpretação normativa do requisito do “interesse em agir” que considera precludido o interesse do recorrente na apreciação do recurso interposto da decisão que – na sequência do primeiro interrogatório – lhe aplicou a medida de prisão preventiva, quando – sujeita tal medida à reapreciação trimestral e mantida por se entender que os respectivos pressupostos se não alteraram minimamente – o arguido se conformou com tal decisão “nova”, deixando-a transitar em julgado.
2º - Termos em que deverá improceder o presente recurso.» Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos A) Questões prévias
3.O presente recurso foi interposto ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, sendo requisitos necessários para se poder tomar conhecimento desta espécie de recurso, para além do esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam, que a norma impugnada tenha sido aplicada como ratio decidendi pelo tribunal a quo e que a questão da sua inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo. Como já ocorreu noutros casos, relativamente à norma em questão, no presente caso não foi suscitada durante o processo – isto é, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo sobre a matéria a que a questão de constitucionalidade respeita – a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 287º, alínea e), do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente em processo penal. Estamos, porém, perante uma daquelas situações excepcionais em que o cumprimento de tal ónus não pode ser exigido ao recorrente. Pode, na verdade, reiterar-se o entendimento do Acórdão n.º 418/2003 (ainda inédito, mas a publicar oportunamente), onde se escreveu a propósito:
“15. Resulta claramente da Lei do Tribunal Constitucional [artigo 70°, n.° 1, alínea b)] que as questões de constitucionalidade normativa que são objecto do recurso de constitucionalidade devem ser suscitadas antes da prolação da decisão recorrida, de modo a que o tribunal a quo se possa pronunciar sobre elas. Esta exigência só não é válida se estivermos perante uma decisão surpresa, relativamente à qual não seja possível a arguição prévia por falta da indispensável oportunidade processual (cfr., entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 136/85 – D.R., II Série, de 21 de Janeiro de 1986; 391/89 – D.R., II Série, de 10 de Setembro de 1989; 47/90 – D.R., II Série, de 6 de Julho de 1990; 51/90
– D.R., II Série, de 12 de Julho de 1990). No caso sub judicio, a questão de constitucionalidade agora em análise foi suscitada apenas no próprio recurso de constitucionalidade. Seria exigível ao recorrente que colocasse esta questão em fase anterior, isto é, no momento da interposição do recurso para a Relação? A resposta a uma tal questão deve distinguir o plano abstracto, dos critérios jurisprudenciais cognoscíveis sobre a inutilidade superveniente do recurso de despacho que aplicou a prisão preventiva em face de decisões posteriores de manutenção daquela medida de coacção, do plano concreto, da previsibilidade, no momento da interposição do recurso, de vir a ser proferido novo despacho de manutenção daquela medida de coacção antes de estar decidido esse mesmo recurso. Ora, se relativamente ao primeiro plano seria admissível considerar que os critérios jurisprudenciais eram previsíveis, já no que se refere ao segundo plano a resposta há-de ser diferente. Com efeito, constituiria um ónus processual desproporcionado exigir aos recorrentes que antecipassem, no momento da interposição do recurso do despacho que aplicou a prisão preventiva, que tal recurso poderia vir a ser apreciado num momento em que já havia sido proferido novo despacho de manutenção daquela medida. Mesmo que haja um certo número de decisões que considere supervenientemente inútil a apreciação do recurso do despacho que aplica a prisão preventiva quando o novo despacho de manutenção dessa medida já tenha sido proferido, não é exigível a configuração prévia dessa hipótese para efeitos do recurso de constitucionalidade. Na verdade, não só o novo despacho será proferido, em regra, nos termos do artigo 213°, n.º 1, do Código de Processo Penal, num prazo posterior à apreciação necessariamente urgente do recurso, como também a exigência de previsão da antecipação do despacho de manutenção da medida de coacção no âmbito do próprio recurso do despacho inicial corresponderia à imposição absurda de ter de se suscitar uma questão de constitucionalidade relativa a uma situação futura, hipotética e pouco normal. E essa imposição confrontaria, além disso, o recorrente com o paradoxo processual de, ao mesmo tempo, pressupor a vigência do despacho impugnado e a sua revogação. Por conseguinte, abstraindo de quaisquer considerações sobre a constitucionalidade de uma interpretação do n.º 1 do artigo 213° do Código de Processo Penal que admita a antecipação temporal do reexame dos pressupostos da prisão preventiva com o objectivo exclusivo de a manter, não é exigível a arguição prévia da constitucionalidade da solução do não conhecimento do recurso por inutilidade superveniente nessa hipótese. Assim, o Tribunal Constitucional considera que a questão de constitucionalidade não teria de ser suscitada antes do recurso para o Tribunal Constitucional, sendo tal situação abrangida pelos critérios formulados nos arestos anteriormente citados.”
4.Outra questão, aliás também abordada no acórdão que se citou, é a de saber “se o presente recurso de constitucionalidade relativo à aplicação originária da prisão preventiva mantém, ele próprio, a utilidade, atendendo ao facto de ter sido entretanto proferido novo despacho de manutenção da prisão preventiva.” O recorrente refere-se, no requerimento de recurso, a um “entendimento jurisprudencial do Tribunal Constitucional” no sentido “de que, em casos de detenção ou prisão preventiva, mantém o interesse o recurso interposto da decisão condenatória de privação de liberdade, ainda que no subsequente desenrolar do processo criminal se venha a confirmar a medida de privação de liberdade.” Em casos em que o recorrente não viera posteriormente a interpor recurso desta decisão de manutenção da medida de coacção, a qual não seria, pois, afectada pela decisão do recurso de constitucionalidade, decidiu-se, porém, quer no caso do Acórdão n.º 296/03, quer no do Acórdão n.º 722/97 (publicado no Diário da República, II Série, de 13 de Fevereiro de 1998 e disponível também em
www.tribunalconstitucional.pt), no sentido da inutilidade superveniente do recurso de constitucionalidade. É que, como se referiu no Acórdão n.º 296/03
(também ainda inédito, mas a publicar oportunamente), que, nesta parte, reafirma o entendimento reiterado do Tribunal Constitucional sobre a instrumentalidade do recurso de constitucionalidade, este tem “que produzir um efeito útil e é isso que permite considerar relevante o interesse em agir do recorrente.” E, como se notou também:
«No que respeita à revisibilidade ou reexame dos pressupostos da prisão preventiva, dispõe o artigo 213º, n.º 1, do CPP que “o juiz procede oficiosamente, de três em três meses, ao reexame da subsistência dos pressupostos da prisão preventiva, decidindo se ela é de manter ou deve ser substituída ou revogada”. O despacho que o juiz então profere resulta de um exame actual, ou actualizado, dos pressupostos da prisão preventiva e, se mantiver esta medida coactiva, a situação posterior do arguido fica definida, autonomamente, por aquele despacho. Por outras palavras, o despacho inicial que decreta a prisão preventiva esgota os seus efeitos (como que “caduca”) à data da prolação do despacho previsto no artigo 213º, n.º 1, do CPP, quer este mantenha a prisão, a substitua ou a revogue.» Importa notar, porém, que, no presente caso, tal como no decidido pelo referido Acórdão n.º 418/2003 – e diferentemente do que acontecia, quer no caso do Acórdão n.º 296/03, quer no do Acórdão n.º 722/97, já citados –, não está em causa, em virtude da falta de interposição de recurso do despacho que posteriormente manteve a medida de coacção aplicada ao recorrente, qualquer eventual inutilidade superveniente do próprio recurso de constitucionalidade, por este não se poder reflectir na decisão proferida pelo tribunal a quo – decisão, esta, que, ela sim, se recusou, com fundamento em inutilidade superveniente, a tomar conhecimento do recurso para ele interposto. Na verdade, o que se pretende com o presente recurso é, antes, a apreciação da constitucionalidade da norma que permitiu ao tribunal recorrido decidir no sentido da inutilidade superveniente do recurso que para ele fora interposto – o artigo 287º, alínea e), do Código de Processo Civil, aplicável ao processo penal por força do artigo 4º do Código de Processo Penal. Ora, é claro que uma eventual decisão do presente recurso no sentido da inconstitucionalidade desta norma se reflectiria sobre a decisão do Tribunal da Relação de não conhecimento do recurso, obrigando à sua reforma. Não se verifica, pois, qualquer inutilidade superveniente do recurso de constitucionalidade – e isto, note-se, independentemente da questão de saber se o recorrente não interpôs recurso do despacho que veio a manter a prisão preventiva que lhe fora aplicada. E há, assim, que passar ao seu conhecimento. B) Questão de constitucionalidade
5.Tendo concluído que há que passar ao conhecimento do presente recurso de constitucionalidade, por a existência de um posterior despacho, não impugnado, de manutenção da prisão preventiva, o não tornar inútil, importa notar, porém, que se verifica um paralelismo (como referido pelo Ministério Público na passagem que se transcreveu das suas alegações) entre o presente caso e os casos referidos, decididos pelos Acórdãos n.ºs 296/03 e 722/97, quanto ao entendimento segundo o qual não é de tomar conhecimento, com fundamento em inutilidade superveniente, de um recurso, interposto pelo arguido, da decisão que lhe aplicou a medida de coacção de prisão preventiva – seja do recurso para o Tribunal da Relação, seja, como nestes casos, do próprio recurso de constitucionalidade – quando o recorrente deixou de interpor recurso do despacho que posteriormente lhe manteve a prisão preventiva. Este foi, na verdade, o entendimento seguido pelo Tribunal Constitucional, quanto à utilidade do próprio recurso de constitucionalidade para ele interposto, nos citados arestos, em casos em que o recorrente não tinha interposto recurso do despacho de manutenção da prisão preventiva, sendo de presumir – embora a questão não tenha sido analisada ex professo – que não foi considerado desconforme à Constituição, desde logo, porque, como tem repetidas vezes reconhecido, também o Tribunal Constitucional está vinculado à proibição da aplicação de normas que infrinjam o disposto na Constituição da República, ou os princípios nela consignados, constante do seu artigo 204º. Assim, recentemente, o já citado acórdão n.º 296/03, verificando que o recorrente não interpusera recurso do despacho que mantivera a prisão preventiva que lhe fora aplicada, concluiu pela inutilidade superveniente do recurso, remetendo para orientação já anteriormente professada por este Tribunal, exposta do seguinte modo no citado Acórdão n.º 722/97:
«Desde o Acórdão n.º 90/84 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional,
4º vol., págs. 267 e seguintes) está firmado o entendimento jurisprudencial de que, em casos de detenção ou prisão preventiva, mantém interesse o recurso de constitucionalidade interposto da decisão ordenatória de privação da liberdade, ainda que no subsequente desenrolar do processo de extradição ou criminal se venha a confirmar ou modificar essa medida de privação de liberdade. Como se escreveu nesse acórdão, existindo o direito fundamental a pedir uma indemnização contra o Estado em caso de prisão ilegal (art. 27º, n.º 5, da Constituição), se o Tribunal Constitucional viesse a abster-se de conhecer do recurso, por considerar este inútil, “estaria afinal a precludir o exercício pelo recorrente
[...] do direito que lhe é reconhecido por aquele preceito constitucional”. Importa, por isso, analisar se existe algum “interesse residual” no conhecimento do presente recurso, utilizando a formulação constante das alegações do Ministério Público. Ora, encarada a situação dos autos, não são claramente aplicáveis os fundamentos daquela jurisprudência ao presente recurso. Com efeito, o Código de Processo Penal impõe o reexame oficioso da subsistência dos pressupostos da medida de coacção prisão preventiva em prazos curtos, podendo o juiz determinar a manutenção, substituição ou revogação da própria medida (artigo 213º, n.º 1). Por outro lado, de todas as decisões que aplicarem ou mantiverem medidas de coacção cabe recurso, a julgar no prazo máximo de 30 dias a partir do momento em que os autos foram recebidos (artigo 219º). Com estas soluções, “o legislador pretendeu acentuar que as medidas aplicadas não devem manter-se para além do necessário e, por isso, disciplinar a reapreciação da situação dos arguidos sujeitos a medida de coacção, impondo-a periodicamente nos casos mais graves e permitindo-a sempre, quer oficiosamente, quer a requerimento” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, pág. 252). No caso sub judicio, a recorrente impugnou o despacho ordenatório da prisão preventiva em 20 de Maio de 1997, foi condenada a pena de prisão por acórdão de
27 do mesmo mês e ano, mas não impugnou o despacho que manteve essa medida de coacção em 12 de Junho de 1997. Resulta daqui que a recorrente renunciou ao seu direito de impugnação do novo despacho, abstendo-se de interpor recurso em tempo, embora não tivesse desistido do presente recurso, alegando mesmo após a última data indicada. Na presente situação não pode, por isso, deixar de considerar-se que a ora recorrente se acabou por conformar com a medida de coacção que foi mantida após a condenação em primeira instância, não se vendo que interesse prático atendível poderá justificar a prossecução do presente recurso quanto a uma decisão que já foi “consumida” por decisão judicial subsequente não impugnada de forma autónoma, não podendo de forma plausível supor-se que a arguida pretende ainda exercer qualquer direito de indemnização contra o Estado por força da prisão preventiva que lhe foi aplicada após a remessa dos autos ao tribunal criminal competente, dada a aceitação da ulterior manutenção da mesma medida de coacção, isto é, quando mostrou que não o pretende fazer a partir do momento em que foi condenada em primeira instância, não obstante não se ter conformado com a decisão condenatória. A falta de resposta à questão prévia suscitada é igualmente coerente com o referido comportamento processual.» Apreciando esta posição, explicitou-se o critério distintivo no referido Acórdão n.º 296/03, que decidiu no sentido da inutilidade superveniente do recurso de constitucionalidade:
“Como se vê, no acórdão de que se acaba de transcrever o passo mais relevante, o Tribunal começa por evocar a sua jurisprudência nos casos de recurso de despacho que decreta a prisão preventiva quando no momento de o decidir foi já proferido novo despacho que mantém aquela medida coactiva. Entendeu, a propósito, o Tribunal Constitucional que se mantinha um interesse residual do recorrente, considerando a eventualidade de o arguido poder vir a intentar a acção de indemnização contra o Estado por prisão preventiva ilegal. O Acórdão n.º 722/97, não discutindo esta jurisprudência, entendeu, porém, que os seus fundamentos não eram aplicáveis ao caso. E não eram, porque então se verificava uma circunstância especial – a não impugnação da decisão que mantivera a prisão preventiva. Ora, no caso agora em apreço, essa mesma circunstância se verifica, uma vez que o recorrente também não impugnou o despacho (...) que manteve a prisão preventiva. E tal faz situar a questão a resolver nos mesmos termos em que ela foi apreciada no Acórdão n.º 722/97, sendo significativo o silêncio do recorrente, quanto à invocação deste aresto na fundamentação da questão prévia suscitada pelo Ministério Público. Assim, sem necessidade de discutir a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre os casos em que não se verifica a referida circunstância, entende o Tribunal que é de acolher a fundamentação que conduziu à procedência de idêntica questão prévia no citado Acórdão n.º 722/97 e ao julgamento da inutilidade superveniente do recurso.”
6.Como se verifica pela informação constante a fls. 116 dos autos, também no presente caso – apesar de, repete-se, não estar em causa a utilidade do próprio recurso de constitucionalidade, e sim a norma que fundou uma decisão de inutilidade do recurso para o Tribunal da Relação – o recorrente não interpôs recurso do despacho que, posteriormente, em reapreciação da medida de coacção de prisão preventiva no prazo legalmente previsto (em 30 de Setembro de 2003, isto
é, três meses depois da decisão que a aplicara), lhe manteve a medida de coacção de prisão preventiva, tendo sido com esse fundamento que o acórdão recorrido, de
5 de Novembro de 2003, concluiu pela extinção do recurso por inutilidade superveniente. Tal como se notou na passagem transcrita do Acórdão n.º 722/97, também no presente caso, portanto, o recorrente “renunciou ao seu direito de impugnação do novo despacho, abstendo-se de interpor recurso em tempo”, ficando a decisão que aplicara a medida de coacção “ ‘consumida’ por decisão judicial subsequente não impugnada de forma autónoma”, decisão subsequente, esta, que é aquela com base na qual o recorrente se encontra preso. Pode, assim, concluir-se que a apreciação do recurso do despacho que aplicara a prisão preventiva, entretanto substituído pelo despacho de manutenção desta medida, não se poderia revestir de utilidade para o arguido quanto à definição da sua situação processual – mais precisamente, para a sua libertação –, pois que esta resultava já então (depois de 30 de Setembro de 2003), não do despacho recorrido, mas de outro posterior não impugnado. Note-se, aliás, que, no presente caso, o despacho de manutenção da prisão preventiva não se limitou a efectuar uma mera remissão para o anterior despacho que aplicara a medida de coacção – embora também não aduza novos fundamentos de direito ou altere a qualificação dos pressupostos para tal medida, diversos dos que anteriormente haviam justificado a sua aplicação –, e que foi proferido no prazo de três meses previsto no artigo 213º, n.º 1, do Código de Processo Penal, para o reexame dos pressupostos da prisão preventiva (sem qualquer antecipação, portanto). E cumpre dizer, ainda, que não é de considerar procedente a afirmação de que a norma em apreço possibilitaria que o recurso da decisão que aplica a medida de coacção nunca fosse apreciado, pelo protelamento indevido, pelo tribunal ad quem, da reapreciação do recurso, até à prolação de nova decisão que
(eventualmente) mantenha a medida. É que – e independentemente de outras considerações quanto à relevância de argumento fundado na hipótese de actuação processual dolosa do tribunal de recurso – bastaria ao recorrente, para evitar tal “risco” (e para além da possibilidade de pedir a aceleração processual perante o Conselho Superior da Magistratura, nos termos do artigo 108º, n.ºs 1 e
2, alínea b), do Código de Processo Penal, em caso de ultrapassagem pela Relação do prazo de 30 dias para decidir o recurso, previsto no artigo 219º do mesmo Código), interpor também recurso deste posterior despacho (e, se o considerasse necessário, comunicá-lo imediatamente ao tribunal ad quem). O que, porém, no presente caso (como no do Acórdão n.º 296/03), não fez, impedindo que a apreciação do recurso do despacho que aplicara a medida de coacção pudesse revestir-se de utilidade para a subsistência desta. Também no presente caso, não se vê, pois, que interesse prático atendível poderia justificar a prossecução do recurso interposto para o Tribunal da Relação de uma decisão já entretanto “consumida” por decisão subsequente não impugnada. Quanto ao interesse na libertação do recorrente, não subsistia, pois a prisão preventiva não decorria já do despacho recorrido, mas de outro, posterior, não impugnado. E um hipotético interesse no eventual exercício de qualquer direito de indemnização também não impedia o Tribunal da Relação de concluir, sem violação do direito ao recurso constitucionalmente garantido no processo criminal, no sentido da inutilidade superveniente do recurso, por o recorrente ter deixado transitar em julgado a decisão que mantivera a prisão preventiva – tal como o Tribunal Constitucional concluiu nos casos dos citados n.ºs 296/03 e 722/97 (e diversamente do que acontecia no caso do Acórdão n.º 90/84, já citado, em que estava em causa uma questão prévia relativa à utilidade do julgamento do recurso de constitucionalidade, sendo que a recorrente expressamente sustentara que pretendia continuar esse recurso com finalidades indemnizatórias). Na verdade, não pode, de forma plausível, supor-se que o recorrente interpunha o recurso do despacho que aplicara a prisão preventiva para a eventualidade de vir eventualmente a exercer, em acção própria e perante o tribunal competente, um tal direito de indemnização contra o Estado, quando o recorrente aceitara, sem recorrer, a posterior manutenção da mesma medida de coacção e não forneceu qualquer indicação naquele sentido (nem sequer, aliás, o veio a fazer no recurso de constitucionalidade, sempre se referindo apenas à revogação do despacho que mantivera as medidas de coacção).
7.Conclui-se, assim, que a norma do artigo 287º, alínea e), do Código de Processo Civil, aplicável ao processo penal por força do artigo 4º do Código de Processo Penal, entendida no sentido de se tornar supervenientemente inútil o recurso da decisão que aplicou a medida de coacção de prisão preventiva, quando esta foi posteriormente mantida por decisão autónoma, que reapreciou os respectivos pressupostos no prazo previsto no artigo 213º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e que não impugnada, não viola o direito ao recurso. Pelo que deve ser negado provimento ao presente recurso. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso e condenar o recorrente em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 18 de Fevereiro de
2004
Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma (vencida, nos termos da declaração de voto junta) Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto Votei vencida o presente Acórdão por duas razões fundamentais: A primeira razão consiste numa discordância quanto à presunção de renúncia à efectivação de um eventual direito a indemnização com fundamento em o arguido, ora recorrente, não ter recorrido do despacho de manutenção da prisão preventiva. Com efeito, o facto de o arguido, preso preventivamente, não ter desistido do recurso do primeiro despacho de decretação da prisão preventiva e ter, até, vindo a recorrer do acórdão que considerou supervenientemente inútil o seu recurso são razões suficientes para concluir que tal renúncia não pode ser presumida no presente caso.
É certo que o Tribunal Constitucional, no presente Acórdão abandona uma perspectiva de automática inferência da renúncia ao direito à indemnização da ausência do recurso do segundo despacho, apontando para a necessidade de elementos que tornem reconhecível uma manifestação de interesse quanto ao direito à indemnização, porém continuo a pensar que o recorrente não terá de manifestar qualquer interesse específico senão o de que o recurso seja apreciado. Só em face de um eventual provimento de tal recurso é que o recorrente poderá ponderar deduzir um pedido indemnizatório ou não. A segunda razão diz respeito ao eventual efeito do êxito do recurso do primeiro despacho sobre a validade do próprio despacho de manutenção da prisão preventiva. Na verdade, se este último for total ou parcialmente remissivo vem a sucumbir nos seus fundamentos, se o despacho apreciou factos novos e tiver fundamentos autónomos não há que extrair qualquer ilação da ausência de recurso quanto a ele para a utilidade da apreciação do primeiro recurso. Finalmente, pressuposto desta argumentação é a “prejudicialidade” da apreciação do recurso em processo penal quanto à análise dos pressupostos da prisão preventiva para efeitos de efectivação ulterior de um direito a indemnização. Está, assim, em causa com o critério normativo sub judicio uma violação do direito ao recurso garantido pelo artigo 32º, nº 1, da Constituição, na dimensão que abrange os seus efeitos para ulterior efectivação de um eventual direito a indemnização.
Maria Fernanda Palma