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Processo n.º 732/02
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional I. Relatório
1.Em 29 de Abril de 1999, no processo contra-ordenacional que instaurara, o Banco de Portugal deduziu acusação contra A., com sede na Praça
----------------, n.º ----, --------, por utilização na sua firma de um termo não consentido pelo artigo 11º, n.º 1, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro. Por decisão do Conselho de Administração do Banco de Portugal, a arguida veio a ser condenada “na multa de 2000 (dois mil) contos”, suspensa por um período de dois anos na condição de apresentação, no prazo de 90 dias a contar da notificação, “de prova inequívoca da alteração da denominação social em questão”. A arguida recorreu para o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, sendo os autos remetidos pela entidade administrativa para o Tribunal da Pequena Instância Criminal da Comarca de Lisboa, onde, por sentença de 13 de Fevereiro de 2001 do
2º Juízo, foi negado provimento ao recurso, e, de novo, veio a arguida a ser condenada na mesma multa, suspensa por um período de dois anos desde que, no prazo de 90 dias a contar do trânsito em julgado da decisão, juntasse “prova inequívoca da alteração da denominação social em questão.”
2.Inconformada, a arguida levou recurso ao Tribunal da Relação de Lisboa, suscitando a inconstitucionalidade do artigo 18º do Decreto-Lei n.º 23/86, de 18 de Fevereiro, e do artigo 11º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras. Por acórdão de 10 de Outubro de 2001 da conferência da Secção Criminal, o procedimento contra-ordenacional foi julgado extinto por prescrição. Porém, na sequência de requerimento de declaração de nulidade apresentado pelo Ministério Público, a conferência, por acórdão de 28 de Novembro de 2001, declarou nulo o anterior acórdão por falta de fundamentação de direito, e mandou prosseguir os autos para conhecer do mérito do recurso. A arguida requereu correcção de tal decisão porquanto entendeu que com a decisão de 10 de Outubro de 2001 o Tribunal da Relação de Lisboa esgotara o seu poder jurisdicional “no que respeita à questão de mérito em análise nos presentes autos, podendo apenas o Tribunal suprir tal nulidade, proferindo Acórdão nos termos do qual rectifique o Acórdão [anterior]”.
3.Por acórdão de 30 de Janeiro de 2002 a conferência da Secção Criminal daquele Tribunal da Relação indeferiu o requerido, entendendo nenhuma correcção haver a fazer à sua anterior decisão: tendo sido declarado nulo o acórdão de 10 de Outubro de 2001, daqui resultara “a subsistência da questão primordial de conhecimento do mérito do recurso interposto pela recorrente”. Em 10 de Julho de 2002 foi proferido acórdão da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, no qual, para o que ora importa, se escreveu:
“(...) Não pode dizer-se que as normas do art. 18º do Decreto-Lei n.º 23/86 e do art.
11º do Dec.-Lei n.º 298/92 sejam inconstitucionais por violarem os arts. 18º, nº
2, e 62º da CRP, pois não se trata de normas que restrinjam direitos fundamentais mas de normas restritivas do modo de constituir a denominação social de uma pessoa colectiva que não exerce determinada actividade económica, em nome do respeito pela verdade da denominação quanto à actividade que efectivamente exerce.
(...)”
4.Insatisfeita, interpôs então a recorrente o presente recurso de constitucionalidade, para apreciação das normas
“contidas no art. 18º do Decreto-Lei n.º 23/86, de 18 de Fevereiro (com as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.º 116/86, de 27 de Maio, e 302/87, de 4 de Agosto, revogado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro) e no artigo 11º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro (com as alterações introduzidas pelos Decretos-Lei n.ºs 246/95, de 14 de Setembro, 236/96, de 5 de Dezembro, 222/99, de 22 de Junho, 250/2000, de 13 de Outubro, e 285/2001, de 3 de Novembro)” Invocou violação
“do artigo 62º da Constituição da República Portuguesa, que garante o direito à propriedade privada, e artigo 18º, n.º 2, que estabelece as condições em que a lei pode restringir os direitos, liberdades e garantias.” Nas alegações aqui produzidas, concluiu assim a recorrente:
“1º No entender da Recorrente, e de acordo com o enquadramento exposto, as normas constantes do art. 18º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/86, de 18/02, e do art. 11º, n.º 1, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (doravante, ‘RGIC’), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 289/92, de 31/12, são materialmente inconstitucionais,
2º Na medida em que estabelecem restrições a um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias – direito adquirido pela Recorrente à titularidade/propriedade e utilização da firma ‘Telebanco’ –, restrições essas que não encontram adequada previsão constitucional, não têm como fundamento nenhum direito ou interesse constitucionalmente protegido que se lhe contraponha, e que, mesmo admitindo o contrário, o que apenas se faz por mero raciocínio lógico, sem conceder, nunca observariam a medida do mínimo imposto pelos princípios da necessidade e proporcionalidade.
3º Assim, na medida em que restringem, de forma que configuramos de constitucionalmente inadmissível, o direito constitucionalmente garantido à firma, ao impor limitações quanto aos vocábulos que dela devem constar, devem as normas em causa ser julgadas materialmente inconstitucionais, face ao número 2 do art. 18º, conjugado com o art. 62º, ambos da CRP, com todas as consequências legais conducentes, designadamente, à absolvição da Recorrente, baixando os autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, a fim de que este reforme a sua decisão em conformidade com o julgamento sobre a questão da inconstitucionalidade.” Por sua vez, o Banco de Portugal encerrou assim as suas alegações:
“1ª Não carece de apreciação a alegada inconstitucionalidade da disposição do art. 18º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 23/86, porque revogada está pelo art. 5º do Decreto-Lei n.º 298/92;
2ª É inequivocamente constitucional a norma do art. 11º, n.º 1, do Regime aprovado pelo mesmo Decreto-Lei n.º 298/92;
3ª Esta, com efeito, não restringe o direito fundamental de propriedade, nem aliás outro qualquer, mostrando-se antes consoante com o disposto no art. 101º da Lei Fundamental;
4ª Tal norma visa proteger o direito à firma, garantindo, designadamente, a não confundibilidade, tendo por objecto os interesses de terceiros de boa fé e, em geral, os de um mercado no qual têm expressão relevantes interesses públicos e particulares, quais sejam, no caso particular, os de segurança das poupanças e do funcionamento do sistema financeiro, cuja específica tutela constitui motivação do Regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro;
5ª Se necessário fosse, o que só à cautela se refere, poderia ainda registar-se que o Decreto-Lei n.º 298/92 foi editado com bastante credencial parlamentar, concretamente a Lei n.º 9/92, de 3 de Julho, de cujas disposições haveriam que sublinhar-se, na linha do anteriormente exposto, as alíneas a) e b) do art. 4º”. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
5.O presente recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional – abreviadamente Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro) –, tem por objecto, nos termos do respectivo requerimento, a apreciação da constitucionalidade das normas constantes do artigo 18º do Decreto-Lei n.º 23/86, de 18 de Fevereiro
(diploma que veio regular a constituição e condições de funcionamento de instituições de crédito com sede em Portugal, bem como a abertura e condições de funcionamento de filiais ou sucursais de instituições de crédito com sede no estrangeiro) e no artigo 11º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro. Importa, porém, delimitar com precisão o objecto do recurso, desde logo, porque o recorrido entendeu que “não carece de apreciação a alegada inconstitucionalidade da disposição do art. 18º, n.º 1, do Decreto-Lei nº
23/86”. Este artigo 18º era a única disposição da Secção V desse diploma, com a epígrafe “Uso de denominações”, e o seu n.º 1 preceituava:
«Artigo 18º
(Exclusividade)
1. Além das instituições de crédito do sector público, é vedado a qualquer entidade que não tenha obtido alguma das autorizações de que trata o presente capítulo quer a inclusão na respectiva denominação quer o simples uso no exercício da sua actividade do título ou das palavras “banco”, “banqueiro”, “de depósitos” ou outros que sugiram a ideia do exercício da actividade bancária.
(...)» Por sua vez, dispõe a norma do artigo 11º do referido Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, com a epígrafe “Verdade das firmas e denominações”:
“1 – Só as entidades habilitadas como instituição de crédito ou como sociedade financeira poderão incluir na sua firma ou denominação, ou usar no exercício da sua actividade, expressões que sugiram actividade própria das instituições de crédito ou das sociedades financeiras, designadamente «banco», «banqueiro», «de crédito», «de depósitos», «locação financeira», «leasing» e «factoring».
2 – Estas expressões serão sempre usadas por forma a não induzirem o público em erro quanto ao âmbito das operações que a entidade em causa possa praticar.” Ora, a relevância da primeira norma, de 1986, decorre apenas da circunstância de ser a norma vigente à data da constituição da sociedade (“B.”), que ocorreu em
14 de Agosto de 1992. Acontece, porém, não só que essa norma não está já em vigor, como também que já não existe a denominação social que foi adoptada ao abrigo de tal norma (mas antes a indicada “A.”), uma vez que em 12 de Março de
1998 essa sociedade alterou a sua denominação e o seu objecto, e portanto – decisivamente – que a denominação em causa na decisão recorrida era, não aquela primeira, mas a segunda (“A.”) – cfr., por exemplo, as diversas referências a esta denominação que se contêm no acórdão recorrido e a conclusão de que
“A expressão telebanco não sugere o exercício da actividade de telecomunicações mas o de actividade bancária mesmo que se possa ter em conta que a denominação da recorrida é A.”
É certo que tal norma foi invocada na decisão recorrida, tendo igualmente sido proferido quanto a ela um juízo de não inconstitucionalidade. Mas tendo-se a decisão do tribunal a quo pronunciado apenas sobre uma outra denominação da sociedade em causa, que foi adoptada apenas em 1998 – isto é, posteriormente à cessação de vigência dessa norma de 1986 (e ainda que sendo parcialmente idêntica, na parte que contém a expressão “Telebanco”, à anterior) –, há-de considerar-se que tal pronúncia do tribunal a quo em relação a tal norma do Decreto-Lei nº 23/86 foi um mero obiter dictum. Não tendo, assim, sido aplicada na decisão recorrida como ratio decidendi (e pese embora ter sido invocada), não pode a referida norma integrar o objecto do presente recurso. E isto, mesmo que tivesse sido invocado como parâmetro o princípio da protecção da confiança – não o foi, mas tal não obstaria a que o Tribunal Constitucional dele conhecesse, nos termos do artigo 79º-C da Lei do Tribunal Constitucional, aditado pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro –, e mesmo que estivesse em causa a aferição de uma eventual retroactividade (ainda que “inautêntica”, ou
“retrospectividade”) da norma do artigo 11º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras. É que, como se disse, na vigência desta operou-se uma transformação da denominação social, e mesmo do objecto da sociedade, sendo adoptada a denominação que esteve em causa na decisão recorrida
– tornando, portanto, dispensáveis considerações sobre denominações anteriores, ainda que parcialmente idênticas. Mesmo que no momento da constituição da sociedade, em Agosto de 1992, a denominação adoptada não tivesse de se conformar a uma regra idêntica à consagrada no artigo 11º do referido Regime Geral – e cfr. o citado artigo 18º, n.º 1, do diploma de 1986 –, no momento da alteração ao seu pacto social e da adopção da denominação que esteve em causa – isto é, em
1998 – não podia deixar de lhe obedecer.
6.Está em causa, portanto, a única norma aplicável ao caso, isto é, a do n.º 1 do artigo 11º do dito Regime Geral, já transcrita. Para a recorrente, tal norma restringe o direito de propriedade privada reconhecido no artigo 62º da Constituição, direito de propriedade, esse, que abrangeria o direito à titularidade da firma ou denominação social como direito análogo aos direitos, liberdades e garantias, sem que tal restrição dispusesse de previsão constitucional expressa e sem que se limitasse ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, como exigido no artigo 18º da Lei Fundamental. Para o recorrido, não se trata de normas restritivas mas sim de normas condicionadoras (remetendo para Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, que toma estas como as “que não afectam o conteúdo do direito” – 2ª ed., Coimbra, 2001, p. 217, remetendo em nota para o Acórdão n.º 866/96 deste Tribunal, publicado no Diário da República [DR], I série-A, de 18 de Dezembro de 1996, onde se considerou como condicionamento do direito de propriedade o ónus de consentimento do trânsito de caçadores em períodos de caça) do direito de propriedade, visando proteger o direito à firma e garantir a não confundibilidade e tutelar “relevantes interesses públicos e particulares, quais sejam, no caso particular, os de segurança das poupanças e do funcionamento do sistema financeiro”.
7.As considerações da recorrente pressupõem que o direito à titularidade da firma tenha protecção constitucional, o que admite ao reconduzi-lo a um direito de propriedade, ainda que especial. Com efeito, como se afirmou no Acórdão n.º 491/02, deste Tribunal,
“(...) Quanto ao objecto da garantia constitucional da propriedade privada, conforme se decidiu no Acórdão n.º 257/92, de 13 de Julho (in Acórdãos do Tribunal Constitucional [ATC], 22º vol., 1992, p. 753), o artigo 62º, n.º 1, da Constituição garante, ‘tanto o direito de propriedade – a propriedade stricto sensu e qualquer outro direito patrimonial – como o direito à propriedade, ou direito de acesso a uma propriedade’. Resulta, assim, claro que o direito de propriedade a que se refere aquele artigo da Constituição não abrange apenas a proprietas rerum, os direitos reais menores, a propriedade intelectual e a propriedade industrial, mas também outros direitos que normalmente não são incluídos sob a designação de «propriedade», tais como, designadamente, os direitos de crédito e os ‘direitos sociais’ – incluindo, portanto, partes sociais como as acções ou as quotas de sociedades
(na doutrina, no sentido de que o conceito constitucional de propriedade tem de ser equivalente a património, cfr. Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade do Estado e dever de indemnizar do legislador, Coimbra, 1998, pp. 548 e 559).” Para efeitos da análise que segue, poderá, pois, aceitar-se – independentemente do aprofundamento da exacta configuração do direito à firma enquanto objecto de protecção constitucional (designadamente, da questão de saber se tal protecção é de reconduzir apenas ao direito de propriedade, ou se avulta também uma componente personalística, relacionada com a identidade das pessoas colectivas)
–, que, enquanto “sinal distintivo do comércio” na titularidade de uma pessoa, e ao qual se associam determinados valores de exercício, o direito à firma, tal como os restantes direitos referidos no passo transcrito, que transcendem a estrita proprietas rerum regulada no Código Civil, é ainda abrangido pela protecção constitucional do direito de propriedade. E poderá ainda aceitar-se, por hipótese, que o direito à obtenção ou “aquisição” da firma participa também na protecção referida do “direito à propriedade, ou direito de acesso a uma propriedade’”. Importa notar, na verdade, que no presente caso está em causa, mais precisamente, o direito à constituição da firma e não o direito a uma manutenção da sua titularidade – não, como se salientou já, a protecção da confiança, ou, sequer, do direito à titularidade de uma firma, constituída anteriormente a uma determinada proibição legal relativa à sua constituição, quanto à sua manutenção
(como que contra uma sua ablação ou “expropriação”), mas o direito a constituir a firma com determinados vocábulos. Aliás, não poderia sequer estar em causa qualquer protecção da manutenção da firma contra uma sua posterior ablação, nem em relação à firma A. (que é a que esteve em causa na decisão recorrida, como já se salientou), pois ela foi constituída quando já vigorava a norma em questão, nem em relação à já referida anterior firma, parcialmente idêntica, da sociedade
(pois quando esta foi constituída também já vigorava a proibição constante da norma de 1986). Ora, a possibilidade de abranger ainda a possibilidade de constituição da firma na protecção constitucionalmente reconhecida ao direito de propriedade não resolve, só por si, a questão de saber se tal direito à constituição da firma pode beneficiar da específica protecção que é concedida aos direitos, liberdades e garantias, designadamente, pelo regime previsto no artigo 18º da Constituição, invocado pela recorrente. E esta específica protecção – como direito, liberdade e garantia ou como direito
“de natureza análoga a estes” - já se afigura de negar a um tal direito de
“aquisição” da firma.
8.Com efeito, como logo depois do passo já transcrito se salientou também no citado Acórdão n.º 491/02, “[r]elevante para o caso dos autos é, ainda, apurar em que medida a garantia constitucional da propriedade privada reveste a natureza de direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias”. Assim, sobre a protecção constitucional de um outro especial direito de propriedade (sobre meios de produção), afirmou-se já no Acórdão n.º 257/92, publicado no DR, II série, de 18 de Junho de 1993:
“(...) Há-de, porém, dizer-se que, não obstante o particular regime de que beneficia, o direito de propriedade privada está sujeito a diversas restrições. A este respeito, poderá afirmar-se que, além dos limites estabelecidos pela própria Constituição (no que respeita à propriedade de meios de produção), deve entender-se que o direito de propriedade está indirectamente sob reserva das restrições estabelecidas por lei, dado que a Constituição remete em vários lugares para a lei (cfr. arts. 82º, 87º e 99º). Aliás, o próprio artigo 62º inclui, ele mesmo, uma cláusula geral de expropriação por utilidade pública (nº
2) sendo este evidentemente um caso limite das possíveis restrições legais ao direito de propriedade privada. Por outro lado, a garantia do direito de propriedade não inclui, só por si, a garantia da liberdade de empresa, pois a Constituição estabelece uma clara distinção entre direito de propriedade e iniciativa económica privada (cfr. art.
85º). Em todo o caso, terá de se considerar que os limites constitucionais estabelecidos para a iniciativa económica privada implicam uma autorização constitucional para as necessárias restrições ao uso e fruição da propriedade. Finalmente, o próprio projecto económico, social e político da Constituição implica um estreitamento do âmbito de poderes tradicionalmente associados à propriedade privada e a admissão de restrições, quer a favor do Estado ou da colectividade, quer a favor de terceiros, das liberdade de uso, fruição e disposição (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1978, pp. 163 e 164). Com efeito, uma coisa é a promoção do acesso de todas as pessoas à propriedade, outra o acesso de todos a todos os bens ou a qualquer extensão de bens, assim como uma coisa é o acesso à propriedade e o direito de transmissão de bens em vida ou por morte, outra a não dependência dessa transmissão de quaisquer regras ou de quaisquer condições ou a não consideração na formulação das regras de outros interesses e valores. Quando o artigo 62º garante o direito à propriedade privada ‘nos termos da Constituição’ quer sublinhar que o direito de propriedade não é garantido em termos absolutos, mas dentro dos limites e nos termos previstos e definidos noutros lugares do texto constitucional.” (itálicos aditados) Posteriormente, salientou-se no Acórdão n.º 866/96 (ATC, vol. 34º, pp. 53 e ss.):
“(...) Não definindo o texto constitucional o que deva entender-se por direito de propriedade, nem sempre têm sido pacíficas as conclusões atingidas pelos seus intérpretes a propósito da dimensão e contornos daquele conceito, sendo, porém, seguro que a velha concepção clássica da propriedade, o jus fruendi ac abutendi individualista e liberal, foi, nomeadamente nas últimas décadas deste século, cedendo o passo a uma concepção nova daquele direito, em que avulta a sua função social. Como quer que seja, o direito de propriedade constitucionalmente consagrado não beneficia de uma garantia em termos absolutos, havendo de conter-se dentro dos limites e nos termos definidos noutros lugares do texto constitucional (...)
(...)” E sobre a qualificação do direito de propriedade – e, mais especificamente, da faculdade de apropriação –, para efeitos de aplicação do regime dos direitos, liberdades e garantias, afirmou-se no Acórdão n.º 187/01 (publicado no DR, II série, de 26 de Junho de 2001):
«O Tribunal Constitucional tem, na verdade, salientado repetidamente, já desde
1984, que o direito de propriedade, garantido pela Constituição, é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, beneficiando, nessa medida, nos termos do artigo 17º da Constituição, da força jurídica conferida pelo artigo 18º e estando o respectivo regime sujeito a reserva de lei parlamentar (v., na jurisprudência mais antiga, por exemplo, os Acórdãos n.ºs
1/84, 14/84 e 404/87, in [Acórdãos do Tribunal Constitucional – ATC], respectivamente vol. 2º, pp. 173 e ss. e pp. 339 e ss., e vol. 10º, pp. 391 e ss., sobre a extinção da colonia; e vejam-se também os Acórdãos n.ºs 257/92,
188/91 e 431/94, respectivamente in ATC, vol. 22º, pp. 741 e ss., vol. 19.º, pp.
267 e ss., e vol. 28.º, pp. 7 e ss). Importa, porém, discernir, dentro do direito de propriedade privada, o núcleo ou conjunto de faculdades que revestem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, uma vez que nem todas elas se podem considerar como tal (para a exclusão dos direitos de urbanizar, lotear e edificar, v. os Acórdãos n.ºs
329/99 e 517/99, publicados na II série do DR, respectivamente de 20 de Julho e
11 de Novembro de 1999).
(...) Do que, porém, já pode duvidar-se é que tal natureza análoga seja ainda de reconhecer a um genérico direito de apropriação – enquanto direito de acesso à propriedade – de todos os bens, incluindo empresas e outros meios de produção, tendo em conta, além do mais, que a constituição e aquisição de empresas representa fundamentalmente um exercício da liberdade de iniciativa económica privada, que, como vimos, a própria Lei Fundamental subordina aos ‘quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral’. O regime de tal liberdade não pode ser confundido com o do direito de propriedade
– mesmo enquanto este inclui uma dimensão de acesso à propriedade.
(...) Logo, portanto, quem, considerando o paralelo com o regime da liberdade de iniciativa económica privada, negar a natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias ao direito de propriedade, na dimensão ora em causa, negará igualmente a aplicação do regime do artigo 18º da Constituição, e, portanto, a verificação, no presente caso, de uma violação do princípio da 'proibição do excesso' consagrado no seu n.º 2. Seja, porém, como for quanto ao regime da dimensão do direito de propriedade enquanto direito de apropriação, em causa no presente caso, importa ainda considerar que, como já se referiu, tal direito apenas é garantido pelo artigo
62º, n.º 1, ‘nos termos da Constituição’. Está tal direito de propriedade, reconhecido e protegido pela Constituição, na verdade, bem afastado da concepção clássica do direito de propriedade, enquanto ius utendi, fruendi et abutendi – ou, na formulação impressiva do Código Civil francês (artigo 544), enquanto direito de usar e dispor das coisas ‘de la manière la plus absolue’». E no mesmo sentido pronunciaram-se, ainda, os Acórdãos n.º 341/86, de 10 de Dezembro, n.º 115/88, de 1 de Junho, e n.º 131/88, de 8 de Junho (in ATC, respectivamente, 8º vol., 1986, p. 519; e 11º vol., 1988, pp. 895 e 472). Pode, pois, concluir-se que o direito de apropriação – ou direito de acesso à propriedade – não é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, e que não beneficia, nessa medida, nos termos do artigo 17º da Constituição, da força jurídica conferida pelo artigo 18º. Logo por esta razão, as considerações da recorrente, ao invocar a existência de uma restrição ao direito de propriedade, resultante das limitações à constituição da firma, violadora do artigo 18º da Constituição, não podem considerar-se procedentes.
9.Mesmo, porém, aceitando-se a necessidade de submeter a um controlo da norma impugnada à luz do princípio da proporcionalidade – independentemente da qualificação como direito, liberdade e garantia, do direito por ela atingido, e da exacta qualificação desta afectação como verdadeira restrição ou como mero condicionamento desse direito (cfr. também o confronto com aquele princípio que, independentemente destas considerações, se efectuou no citado Acórdão n.º
187/01) –, não pode negar-se que o seu regime encontra apoio na salvaguarda de
“outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. Tal norma – recorde-se –, visando a protecção da “verdade das firmas e denominações”, restringe a entidades habilitadas como instituição de crédito ou como sociedade financeira a inclusão na sua firma ou denominação, ou o uso no exercício da sua actividade, de “expressões que sugiram actividade própria das instituições de crédito ou das sociedades financeiras, designadamente «banco»,
«banqueiro», «de crédito», «de depósitos», «locação financeira», «leasing» e
«factoring».” Este regime pode apoiar-se, quer no n.º 1 do artigo 60º (Direitos dos consumidores), quer na alínea h) do artigo 81º (Incumbências prioritárias do Estado), quer no artigo 102º (Banco de Portugal). Assim, nos termos do artigo 101º da Constituição (Sistema Financeiro) – que foi a norma invocada pelo recorrido – “o sistema financeiro é estruturado por lei, de modo a garantir (...) a segurança das poupanças”. Ora, é certo que, na medida em que a actividade da recorrente não tenha interferido com a segurança das poupanças, pode ser difícil encontrar aqui título para fundar o regime legal – não obstante os interesses tutelados pela restrição às designações de entidades não bancárias visarem tanto as actividades quanto as omissões. Mas o direito dos consumidores à informação e à protecção dos seus interesses económicos (artigo
60º da Constituição) e a incumbência do Estado de garantir a defesa dos interesses e os direitos dos consumidores (artigo 81º) – no presente caso, contra confusões resultantes da composição da firma – podem ser considerados como justificativos do regime em questão. Bem como, no plano da fiscalização, importa considerar a expressa previsão de que o Banco de Portugal “exerce as suas funções nos termos da lei” (artigo 102º), que o legitima constitucionalmente a agir contra as entidades que violem disposições como as do artigo 11º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, nos termos previstos nos respectivos artigos 12º, 210º, alínea c), e 213º. Precisadas desta forma as finalidades do regime do artigo 11º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras – que prolonga o que resultava do já referido artigo 18º do Decreto-Lei n.º 23/86 –, há que apurar se esse regime é conforme com elas, à luz do princípio da proporcionalidade (cfr., sobre o alcance do controlo de opções legislativas que este Tribunal pode efectuar, o já citado Acórdão n.º 187/01). Em primeiro lugar, pode dizer-se que a restrição para as entidades não bancárias
é o reverso da imposição de tais designações às entidades bancárias, sendo que o princípio da verdade da firma (a que o “direito português dá prevalência quase absoluta”, como reconhece o Parecer junto aos autos), em geral ao serviço da defesa e protecção dos consumidores e dos restantes agentes económicos, se torna aqui instrumental do direito dos consumidores à informação, do cumprimento de específicas incumbências do Estado e do Banco de Portugal, e da segurança das poupanças. As finalidades visadas com a limitação imposta à constituição da firma de entidades não bancárias não são, pois, desadequadamente prosseguidas por ela. Em segundo lugar, não é certo que outras medidas, restritivas ou não, permitissem servi-la de modo igualmente eficaz, tanto mais que tal solução tem tradições, tanto no direito interno, como noutros direitos nacionais, e que corresponde, mesmo, à solução salvaguardada pelo direito comunitário – cfr. o artigo 15º da Directiva 2000/12/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Março de 2000, relativa ao acesso à actividade das instituições de crédito e ao seu exercício (in Jornal Oficial, n.º L-126, de 26 de Maio de 2000, págs. 1-59). E, como se viu, não é função deste Tribunal substituir-se nessa valoração ao legislador, mas apenas averiguar a eventual existência de erro manifesto deste. Em terceiro lugar, quanto à “justa medida”, ou proporcionalidade em sentido estrito (entre os resultados obtidos e a carga coactiva que os logra obter), importa notar não só que a certeza, segurança, clareza e veracidade são valores fundamentais nas denominações das entidades bancárias, como que da obrigação de que para umas decorre da inclusão de certos elementos linguísticos nas suas firmas sociais, e para outras decorre da proibição da inclusão desses mesmos elementos nas suas firmas sociais, resulta um claro benefício de certeza e de segurança do comércio e da informação e protecção dos consumidores, em termos de se dever aceitar o juízo de proporcionalidade entre a intervenção legislativa em causa – ressalvada também, como se referiu, no citado regime comunitário sobre o acesso à actividade das instituições de crédito e o seu exercício – e os resultados por ela visados. O que é dizer que o regime impugnado se não apresenta como desconforme com o princípio da proporcionalidade, e que não deve ser julgado inconstitucional, havendo que negar provimento ao presente recurso. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 11º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro; b) Por conseguinte, negar provimento ao recurso; c) Condenar a recorrente em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa,10 de Março de 2004
Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos