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Proc. nº 127/03 TC – 1ª Secção Rel.: Consº Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1- A, com os sinais dos autos, reclama para este Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 76º nº 4 da LTC, do despacho que, no Tribunal da Relação de Évora, lhe não admitiu o recurso interposto, nos termos do artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC, para o Tribunal Constitucional, com fundamento em não ter sido suscitada, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma do artigo 671º nº 1 do CPC.
Na sua reclamação, o reclamante começa por sustentar que suscitou a questão de inconstitucionalidade quer na 1ª instância, quer na Relação e em diversos requerimentos.
Mas ainda que se entenda que tal não ocorreu, defende ainda o reclamante que o recurso deve ser admitido, por, em síntese, a fundamentação do despacho impugnado para a Relação de évorater assentado no disposto no artigo
666º nº 1 do CPC, aplicável por via do artigo 4º do CPP e só naquele acórdão se ter feito aplicação do artigo 671º nº 1 do CPC, por força do mesmo artigo 4º do CPP, 'o que não era previsível, em absoluto'; por outro lado, ao responder ao Ministério Público junto da Relação de Évora que sustentara que a pretendida declaração de extinção do procedimento criminal só poderia ter lugar até ao trânsito em julgado da decisão final (ou seja, do acórdão do STJ que condenou o recorrente que transitou em julgado em 18/12/87) o reclamante sustentou 'que a apreciação do caso em julgado em direito penal não deve ser feita em termos que colidam com o disposto no artigo 29º nº 6 da Constituição, tendo invocado o princípio do Estado de Direito, o da Responsabilidade do Estado, o direito ao Bom Nome, e outros, constantes da Constituição – suscitando também, indubitavelmente, a questão de constitucionalidade nesse contexto e nessa oportunidade'
No seu parecer, disse o Ministério Público:
'Independentemente da questão – formal – da suscitação procedimentalmente adequada da questão de constitucionalidade por parte do recorrente, é evidente que tal questão se configura como manifestamente infundada, pelo que sempre se imporia a rejeição do recurso de fiscalização concreta: como é óbvio, não pode pretender inferir-se dos princípios constitucionais a possibilidade de rediscussão, a todo o tempo, de sentença criminal alegadamente 'injusta', de modo a – com prejuízo da estabilidade do caso julgado, instituto objecto de protecção constitucional – 'corrigir' – de forma insólita, através da suscitação de um pedido de nulidade de sentença transitada há vários anos (!) – a decisão de mérito nela adoptada, que os sujeitos processuais não curaram de impugnar tempestivamente e de forma adequada.'
Cumpre decidir.
2 - Importa à resolução da presente reclamação ter presente as principais vicissitudes processuais anteriores ao acórdão de que se pretendeu interpor recurso para o Tribunal Constitucional.
Assim:
- O recorrente foi definitivamente condenado por acórdão do STJ, de
27/11/97.
- Invocando a prescrição do procedimento criminal, o recorrente interpôs recurso de revisão de sentença, revisão que foi negada por acórdão do STJ, de 12/11/98, por se considerar o pedido manifestamente infundado.
- O recorrente arguiu a nulidade deste último acórdão, o que veio a ser indeferido por acórdão de 4/2/99, com fundamento em que o recorrente tinha tido oportunidade para reclamar ou arguir nulidade na sequência do acórdão de
27/11/97, o que não fizera, e que o recurso de revisão não é o meio próprio para conhecer da prescrição do procedimento criminal.
- Interposto recurso para o Tribunal Constitucional, este não conheceu do objecto do recurso por não ter sido suscitada a questão de constitucionalidade durante o processo.
- Veio, então, o recorrente requerer, em 19/9/2001, ao Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – onde fora condenado em 1ª instância – a declaração de extinção de procedimento criminal por prescrição, no que foi desatendido.
- Depois de indeferida a aclaração, o recorrente interpôs recurso para a Relação de Évora, dizendo nas respectivas conclusões:
'1 – Os Autos documentam, conforme o Arguido expôs, que o Procedimento Criminal estava já sobejamente abrangido pelo Prazo de Prescrição, pelo que não poderia ter sido proferida a decisão condenatória.
2 – O conhecimento da Prescrição do Procedimento Criminal tem carácter oficioso, não necessitando de ser requerido ou referido na contestação.
3 – A Constituição da República Portuguesa tem por base o respeito pela dignidade humana e dá primazia imperativa à garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais.
4 – O sentido programático da Lei Fundamental, no entendimento pacífico da mais avalizada Doutrina Nacional e Estrangeira, bem como de sólida Jurisprudência firmada, é no sentido de que ele 'rege' a actividade legislativa e se impõe como 'comando interpretaivo' a todos os que fazem a aplicação do Direito.
5 – O 'trânsito em julgado' de uma decisão penal não é argumento que legitime a sua imutabilidade quando está em causa o valor da Liberdade e o respeito e protecção dos Direitos de Personalidade.
6 – Uma decisão justa é aquela que o é de facto e de direito e apenas essa não pode ser atacada, como prevê, a contrario, o nº 6 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa.
7 – A doutrina do artigo 449º do Código de Processo Penal consagra princípios actuantes que permitem a sua conjugação com a correcção plena do
'erro judiciário', na sequência lógica do comando inserto na Constituição, abrangendo o erro grave na aplicação do Direito, não se vislumbrando, neste citado preceito, por argumento de maioria de razão, comando legal que imponha a obrigatoriedade de não conhecer essa, possivelmente, rara anomalia.
8 – Não se mostra exequível a decisão condenatória, pelo que é evidente que o Arguido apenas pretende acautelar a situação que decorre de uma condenação injusta que a Lei não permite e que ofende o seu Bom Nome e os demais aspectos de Respeito Social a que tem direito como Cidadão'
- Em contra-alegações e segundo o relato do acórdão que veio a ser proferido, o Ministério Público defendeu, entre o mais, que não era de atender aos motivos invocados pelo recorrente, por ter transitado em julgado, em
18/12/97, o acórdão do STJ de 27/11/97, com força obrigatória dentro e fora do processo, citando, a propósito o disposto no artigo 671º do CPC, por força do artigo 4º do Código de Processo Penal.
- No parecer que emitiu, o Ministério Público junto do tribunal da Relação de Évora entendeu que o recurso não merecia provimento pelas razões sustentadas em contra-alegações, defendendo que 'a declaração de extinção do procedimento criminal só poderá ter lugar até ao trânsito em julgado da decisão final' e que 'tendo o acórdão do STJ que condenou o recorrente pela prática do referido crime, transitado em julgado em 18/12/97, mostra-se esgotado o poder jurisdicional do juiz para apreciar o pedido do recorrente.'
- Notificado deste parecer o recorrente alegou, fundamentalmente que
'o dogma do caso julgado deverá ser apreciado no campo do Direito Penal', 'a Constituição da República Portuguesa, no nº 6 do seu artigo 29º consagra explicitamente os Princípios da Reparação do Erro Judiciário e da Proibição da Condenação Injusta' e que 'o dogma do caso julgado deverá ser sempre inoperante perante a Injustiça'.
- O recurso foi julgado manifestamente infundado.
- No acórdão respectivo, depois de se ter distinguido a prescrição do procedimento criminal da prescrição das penas e medidas de segurança, escreveu-se:
'15.3 Transitada em julgado a decisão que aplicou a pena não há que falar em procedimento criminal, cujo objecto se esgotou com o trânsito em julgado da sentença condenatória.
15.4 Isto levar-nos-ia a concluir, sem mais, que carece de fundamento a pretensão do recorrente, de ver extinto o procedimento criminal, numa altura em que foi já julgado, por decisão transitada em julgado.'
Antecedido da expressão 'Não deixaremos de acrescentar', o aresto refere ainda que, não regulando o CPP expressamente os efeitos do caso julgado, vigoram nesta sede as disposições do CPC, por força do artigo 4º do CPP, o que significa que, nos termos do 'artigo 671º nº 1 do CPP', transitada em julgado a sentença, a decisão nela contida torna-se imodificável, salvo nos casos do recurso de revisão previsto no artigo 449º do CPP, revisão que, no caso, fora já negada; fora correcta a decisão do despacho recorrido 'sob pena de violação do caso julgado, que a lei não permite.'
E acrescenta-se:
'15.7 Não vale a invocação do artº 29º nº 6 da Constituição da República Portuguesa, onde se estabelece que 'os cidadãos injustamente condenados têm direito nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos'–esse direito foi facultado e exercido pelo aqui recorrente e dele não cabe aqui conhecer, face à decisão que sobre ele recaiu, proferida pelo STJ.'
É deste acórdão que o recorrente interpôe recurso para o Tribunal Constitucional nos termos do artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC, pretendendo a apreciação da constitucionalidade da norma constante do artigo 671º nº 1 do CPC
(entendendo o recorrente o lapso manifesto do acórdão recorrido ao referir o CPP) enquanto aplicada por força do artigo 4º do CPP.
3 – É manifesto que o reclamante nunca suscitou a questão da inconstitucionalidade da norma ínsita no artigo 671º nº 1 do CPC.
Com efeito, nunca esta norma é sequer referida ao longo do processo pelo recorrente.
Sucede é que na explanação da tese (no mínimo, inédita) que desde o início vem sustentando - e que, em síntese, se traduz na defesa de que não há caso julgado de sentenças condenatórias em processo penal, mesmo que os arguidos, antes do trânsito em julgado, tenham disposto da oportunidade de ter suscitado as questões de direito que entendem mal decididas – o recorrente sistematicamente alude ao disposto no artigo 29º nº 6 da CRP, nele vendo a imposição constitucional de haver sempre um meio de reparar as 'condenações injustas'.
Não pode, no entanto, entender-se que se mostra, assim, suscitada de modo processualmente adequado a questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 671º nº 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 4º do CPP.
E é por isso que, numa segunda linha, o reclamante defende que a aplicação daquela norma surge de forma imprevisível no acórdão recorrido, sem que antes ele tenha tido oportunidade de suscitar a sua inconstitucionalidade, na forma como foi interpretada.
Apela, assim, implicitamente, o reclamante para uma jurisprudência firmada neste Tribunal no sentido de que o recorrente não está sujeito ao ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade quando a norma em causa é aplicada na decisão recorrida de forma surpreendente (decisões surpresa) e que a parte legitimamente não poderia prever.
Mas, no caso, o reclamante teve oportunidade de suscitar a questão de constitucionalidade, não surgindo a aplicação do artigo 671º nº 1 do CPC como decisão-surpresa.
Na verdade, como se deixou relatado, o Ministério Público, nas suas contra-alegações para a Relação, fez apelo a essa norma para justificar o bem fundado do despacho então impugnado. E se, nessa altura, o reclamante não poderia suscitar a questão, a verdade é que, notificado do parecer emitido pelo Ministério Público na Relação de Évora – onde se sufragava a tese defendida pelo Magistrado do MP em 1ª instância, e, logo, a aplicação do disposto no artigo
671º nº 1 do CPC – deveria, então, o reclamante confrontar aquele Tribunal com a questão da inconstitucionalidade da citada norma, o que não fez.
Neste condicionalismo, defendendo uma das partes a aplicação dessa norma, era plausível que o acórdão a pudesse igualmente aplicar, tendo tido o reclamante – como se disse – oportunidade de suscitação prévia da questão de constitucionalidade em termos processualmente adequados.
Não merece, assim, censura o despacho reclamado.
4 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs. Lisboa, 18 de Março de 2003 Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa