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Proc. nº 296/2002
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que figura como recorrente A e como recorrido o Vereador da Administração Urbanística da Câmara Municipal de Loures, o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 46/2003, decidiu não julgar inconstitucional o artigo 35º, nºs 1 e 4, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, negando consequentemente provimento ao recurso (fls. 210 e ss.).
2. O recorrente vem agora arguir a nulidade do Acórdão nº 46/2003, nos seguintes termos: A, Recorrente no processo acima identificado, notificado do douto Acórdão de
29.01.2003, vem, nos termos do art. 668°, nº.1, d), e n° 2, do CPC, aplicável ex vi do art. 69° da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, arguir a nulidade do mesmo, nos termos e com os fundamentos seguintes:
1. Nos termos do art. 684°, n° 3, do CPC, o objecto do recurso é delimitado nas conclusões das alegações de recurso, tendo o Recorrente procedido à delimitação do objecto do recurso submetido à apreciação deste Venerando Tribunal e decidido pelo Acórdão sub judice através das Conclusões das suas Alegações de 11.07.2002.
2. No entanto, algumas das questões aí constantes não foram objecto de decisão por parte deste Acórdão, pelo que, salvo melhor opinião, parece que o mesmo padece de nulidade nos termos do art. 668°, n° 1, d), do CPC.
3. Na verdade, o Recorrente submeteu à apreciação deste Venerando Tribunal diferentes questões relacionadas com a violação do direito fundamental de acesso aos tribunais em condições de igualdade. No entanto, no n° 5 do Acórdão (págs. 9/10), que foi especialmente dedicado ao princípio da igualdade, esse princípio só foi analisado pondo em confronto os mandatários com domicílio profissional na comarca sede do tribunal e os mandatários com domicílio profissional noutras comarcas, sem que se tenha conhecido de outras relações de igualdade que foram questionadas pelo Recorrente. Deste modo, as questões não abordadas nem decididas por este Venerando Tribunal relacionadas com a violação do direito fundamental de acesso aos tribunais em condições de igualdade são as seguintes: a. O art. 35°, nºs. 1 e 5, da LPTA viola ainda o direito fundamental de acesso aos tribunais em condições de igualdade para todos os cidadãos e situações processuais sem suficientes relevantes factores distintivos, pois permite a alguns cidadãos e mandatários determinados meios de acesso aos tribunais que nega a outros sem que se verifiquem aqueles factores distintivos. Assim, um regime mais gravoso para os administrados/mandatários que litigam com a Administracão Pública nos tribunais administrativos do que aqueles que são remetidos pelo legislador, ainda no âmbito de relacões jurídico-administrativas, para os tribunais judiciais (v.g. expropriações) - cfr. Conclusão 68, (iii), das Alegações de 11.07.02, o sublinhado é nosso. b. O art. 35°, nºs. 1 e 5, da LPTA viola ainda o direito fundamental de acesso aos tribunais em condições de igualdade para todos os cidadãos e situações processuais sem suficientes/relevantes factores distintivos, pois permite a alguns cidadãos e mandatários determinados meios de acesso aos tribunais que nega a outros sem que se verifiquem aqueles factores distintivos. Assim, um regime mais gravoso para os administrados/mandatários do que para os cidadãos/mandatários que litigam entre si nos tribunais judiciais (cfr. Conclusão 68, (iv), das Alegações de 11.07.02 - o sublinhado é nosso). c. Porque não existem fundadas/relevantes razões materiais para distinguir, no âmbito da remessa de peças processuais para o Tribunal, o processo judicial comum do recurso contencioso, as acções e demais meios processuais do contencioso administrativo face ao recurso contencioso de actos administrativos (...), um regime com restrições e mais gravoso para os segundos viola a igualdade constitucional de acesso aos tribunais (cfr. Conclusão 88 das Alegações de 11.07.02 – o sublinhado é nosso). Relativamente a estes 3 tipos de relações a estabelecer, parece-nos que tem plena aplicação o que se deixou exposto na Conclusão 7ª das mesmas Alegações: uma vez que o princípio da igualdade, designadamente no acesso dos cidadãos aos tribunais, exige 'tratamento desigual de situações desiguais, mas substancial e objectivamente desiguais - «impostas pela diversidade das circunstâncias ou pela natureza das coisas» - e não criadas ou mantidas artificialmente pelo legislador' (JORGE MIRANDA) e a igualdade a atender não é uma mera igualdade formal mas uma igualdade conformada por vinculações jurídico-materiais (GOMES CANOTILHO), onde o arbítrio é vedado, este princípio, como se vem decidindo neste Tribunal Constitucional, proíbe diferenciações destituídas de fundamentação racional, à luz dos critérios axiológicos constitucionais (...), dai decorrendo que será exigível um tratamento diferenciado de duas categorias de situações quando existir justificação para tal num plano de justiça material'. Assim (cfr. Conclusão 12ª das mesmas Alegações), a situação jurídico-constitucional do Recorrente que ficou exposta é em tudo idêntica, segundo critérios materiais, à decidida pelo Acórdão deste Venerando Tribunal n°
161/00, de 22.03.2000, Processo n° 224/99, que decidiu julgar inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, a norma constante do n° 4 do artigo 78° do Decreto-Lei n° 267/85, de 16 de Julho, na parte em que manda contar o prazo para responder ao pedido de suspensão de eficácia a partir da data da expedição da notificação correspondente: o legislador está impedido de criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, sem fundamento e de forma excessiva ou desproporcionada, o acesso dos cidadãos aos tribunais em geral ou à justiça administrativa em particular.
4. Por outro lado, agora relativamente à questão colocada nas Conclusões 9ª, 10ª e 11ª das mesmas Alegações (revogação do art. 35°, nºs. 1 e 5, da LPTA pelo art.
150°, do CPC), o Acórdão sub judice considerou que 'a apreciação dessa questão pressupõe a interpretação do art. 150º do Código de Processo Civil, questão que não se insere nos poderes cognitivos do Tribunal'. Salvo o devido respeito, parece-nos que este entendimento não pode proceder. Na verdade, pode retirar-se do quadro constitucional português a seguinte dimensão essencial na hermenêutica dos elementos normativos infra-constitucionais: interpretação conforme à Constituição e interpretação integrativa da lei com a Constituição, no sentido de que, 'em caso de dúvida, deve prevalecer a interpretação que, conforme os casos, restrinja Ora, a questão que o Recorrente colocou a este Venerando Tribunal foi a de poderem ser adoptados 2 entendimentos relativamente ao art. 35°, nºs. 1 e 5, da LPTA: ou essa solução ainda vigora na ordem jurídica portuguesa, situação que o Recorrente entende inconstitucional, ou, fazendo valer a interpretação integrativa da lei com a Constituição, se considera que foi revogada pelo regime do art. 150 do CPC. Deste modo, a. antes de efectuar um juízo de (in)constitucionalidade, parece-nos que o Tribunal Constitucional não poderá deixar de apurar o sentido da norma cuja constitucional idade vem questionada, designadamente no sentido de averiguar se essa norma ainda vigora na ordem jurídica; b. porque a Constituição constitui um elemento hermenêutico decisivo na interpretação normativa a efectuar, os princípios e direitos fundamentais envolvidos podem determinar que, na dúvida, perante dois cenários possíveis
(revogação ou vigência), se considere que a norma em causa se deva considerar revogada, isto é, novamente com JORGE MlRANDA, 'deve prevalecer a interpretação que, conforme os casos, restrinja menos o direito fundamental, lhe dê maior protecção, amplie mais o seu âmbito, o satisfaça em maior grau'. Assim, porque o Acórdão sub judice também não se pronunciou quanto à questão suscitada pelo Recorrente nas Conclusões 9ª, 10ª e 11ª das suas Alegações de recurso, parece-nos que também aqui estaremos perante uma situação de nulidade por omissão de pronúncia que deverá ser suprida (art. 668°, n° 1, d), do C PC). Neste termos, Requer-se a este Venerando Tribunal se digne suprir a nulidade do Acórdão de
29.01.2003, conhecendo das questões que ficaram referidas sobre que não se pronunciou. O recorrido pronunciou-se no sentido da improcedência da arguição de nulidade. Cumpre apreciar e decidir.
3. O requerente sustenta que o Acórdão nº 46/2003 enferma de nulidade, na medida em que o Tribunal Constitucional não terá apreciado questões que devia ter apreciado, que terão sido suscitadas nas alegações de recurso. Tais questões traduzem-se, em síntese, na circunstância de existirem sectores normativos, nomeadamente no âmbito do processo civil, que consagram solução diversa da que é impugnada. Na perspectiva do requerente, a invocação de tal argumentação imporia uma análise, na perspectiva da igualdade, diversa da que o Tribunal Constitucional efectuou no aresto impugnado, análise que alegadamente não foi realizada. Ora, da análise do Acórdão nº 46/2003 resulta claramente que o Tribunal Constitucional ponderou de modo expresso a existência de soluções diversas noutros sectores normativos. Com efeito, no ponto 5 afirmou-se o seguinte:
É verdade que o Código de Processo Civil consagra, a par da entrega da petição na secretaria, a possibilidade de envio da petição sob registo postal para o tribunal, independentemente da localização do escritório do signatário. Esta solução tem evidentes vantagens, uma vez que diversifica e simplifica os modos de entrega das peças processuais nos tribunais competentes. Contudo, a solução da questão de constitucionalidade objecto do presente recurso não assenta numa mera averiguação da existência de regras mais adequadas do que aquela que é apreciada. Com efeito, uma dada norma pode não conter a melhor solução configurável, não tendo de ser por essa circunstância necessariamente inconstitucional. Ora, a diferença de tratamento conferido a quem tem escritório na comarca sede do tribunal ao qual a petição é endereçada (que pode enviar a petição via postal) tem um fundamento objectivo: os advogados domiciliados fora da comarca sede do tribunal encontrar-se-iam numa situação de desvantagem, dado a entrega da peça processual na secretaria implicar uma deslocação que, em alguns casos, poderia ser significativa e redutora do próprio prazo processual. Por outro lado, o envio sob registo postal da peça processual coloca os advogados domiciliados fora da comarca sede numa situação de paridade em relação aos domiciliados na comarca, limitando as necessidades de deslocação às instalações dos correios. Apesar de outras soluções poderem ser concebidas, a verdade é que quem tem o domicílio profissional dentro da comarca não é, em geral, excessivamente onerado com a deslocação à Secretaria do Tribunal. O Tribunal Constitucional ponderou, pois, nos termos expostos, a consagração de soluções diversas e considerou que, não obstante a possibilidade de existirem soluções mais adequadas, o fundamento da norma em questão legitima a solução em causa quando confrontado com o princípio da igualdade, e esse fundamento é a localização geográfica do escritório do signatário da peça processual. A presente arguição de nulidade evidencia que o requerente confunde in casu a explicitação do fundamento substancial da solução normativa impugnada, que legitima tal solução na perspectiva da igualdade, com aquilo a que chama 'tipos de relações a estabelecer' (procurando fazer referência a questões pretensamente autónomas), não se dando conta que, no contexto argumentativo do Acórdão impugnado, tal fundamento explica a solução em causa, mesmo tendo presente que em outros sectores do Ordenamento Jurídico vigoram soluções diversas. Por outro lado, não procede a invocação do Acórdão do Tribunal Constitucional nº
161/2000. Na verdade, tal aresto foi ponderado no Acórdão nº 46/2003, nada havendo agora a acrescentar ao que então ficou dito. Improcede, portanto, a arguição de nulidade quanto a esta parte.
4. O requerente insurge-se, também, contra a matéria abordada no ponto 7 do Acórdão nº 46/2003. Ora, no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade, ao Tribunal Constitucional compete apreciar se a norma ou dimensão normativa efectivamente aplicada pelo Tribunal Constitucional é ou não inconstitucional, não lhe cabendo efectuar operações de interpretação tendentes a averiguar, no plano infraconstitucional, se uma dada norma foi ou não revogada
(a não ser que tal questão seja suscitada como questão de constitucionalidade normativa, o que manifestamente não é o caso, dado, desde logo, a circunstância de o requerente não ter feito constar do requerimento de interposição do recurso a norma do artigo 150º do Código de Processo Civil). No Acórdão nº 46/2003, o Tribunal Constitucional procedeu à apreciação da conformidade à Constituição da norma do artigo 35º, nºs 1 e 4, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos na dimensão efectivamente aplicada nos autos e impugnada pelo recorrente. Nenhuma outra apreciação lhe competia efectuar. Improcede, portanto, a arguição de nulidade também quanto a esta parte.
5. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente arguição de nulidade, confirmando o Acórdão nº 46/2003.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs. Lisboa, 19 de Março de 2003 Maria Fernanda Palma Benjamim Rodrigues Luís Nunes de Almeida