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Processo n.º 195/2012
2.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 2.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A. e B., melhor identificados nos Autos, reclamam para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (doravante “LTC”), da decisão sumária proferida pelo relator que decidiu não conhecer das questões de constitucionalidade elencadas no requerimento de interposição de recurso.
Refutando esta decisão de não conhecimento do objecto do recurso, o reclamante argumentou do seguinte jeito:
“(...)
Com o devido respeito por opinião contrária, os Recorrentes entendem que questionaram expressamente a (in)constitucionalidade de uma norma, a saber, o art. 379, n.º
1, al. a), do C.P.P.,
E acrescentaram, ainda, o sentido interpretativo em que, no seu modesto entender, a mesma o é – cfr. itens 9.º e 10.º do requerimento dos Recorrentes de fls .....
Efectivamente, os Recorrentes não querem, até porque sabem que lhe está vedado, que este Tribunal apure e sindique 'a bondade e o mérito do julgamento efectuado in concreto
pelo tribunal a quo'.
-
Apenas pretendem que este Tribunal verifique da (des)conformidade do art. 379,º n.º 1, al. a), do C.P.P., na interpretação referida, com a Lei Constitucional.
Ademais, os Recorrentes esclarecem que não controverteram a ratio decidendi que foi acolhida pelo Tribunal da Relação do Porto (na decisão sobre a Reclamação que deu origem ao recurso para este Tribunal) apenas porque não foram notificados para alegar nesta sede (e, portanto, não tiverem oportunidade processual de o fazer).
(...)”.
2. Notificado para o efeito, o Representante do Ministério Público pugnou pelo indeferimento da reclamação.
II. Fundamentação
3. A decisão reclamada tem o seguinte teor:
“(...)
1. A. e B., melhor identificados nos autos, recorrem para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), pretendendo ver fiscalizada a “questão de inconstitucionalidade (...) suscitada no requerimento de arguição de nulidade” do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12 de outubro de 2011, que decidira “declarar nulo o acórdão recorrido [da 2.ª Vara Criminal do Porto], por inobservância do disposto nos art.ºs 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, o qual deverá ser reformado pelo mesmo Tribunal, de forma a suprir o apontado vício de falta de fundamentação”.
2. O recurso foi admitido pelo tribunal a quo, sendo que tal decisão, em face do disposto no n.º 3 do artigo 76.º da LTC, não vincula o Tribunal Constitucional. Assim, uma vez que o presente caso se enquadra na hipótese delineada no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, passa a decidir-se nos termos e com os seguintes fundamentos.
3. No caso sub judicio, como resulta dos autos, os recorrentes deduziram reclamação contra o referido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12 de outubro de 2011, através de requerimento com o seguinte teor:
“(...)
1°
Por um lado, os Recorrentes não arguiram qualquer nulidade do Acórdão recorrido (nem sequer, indiretamente).
2º
Efetivamente, os Recorrentes apenas se limitaram a requerer a modificação da decisão sobre a matéria de facto, com o consequente pedido de absolvição.
3°
Sendo a conclusão (ora sob o n.º) 2.18 plasmada pelos Recorrentes nas suas alegações, tão-somente um corolário dessa mesma pretensão.
4º
Por outro lado, salvo melhor opinião e não desconhecendo a existência de jurisprudência de sentido contrário, a aludida nulidade não é de conhecimento oficioso.
5º
Desta forma, com o devido respeito por opinião diversa, é manifesto que este Tribunal, ao considerar que os Recorrentes o fizeram (arguiram a dita nulidade), se pronunciou sobre questões de que não podia tomar conhecimento, tendo tal pronúncia por efeito a nulidade do Acórdão em questão, a qual se requer seja decretada, com todas as consequências legais – art.º 379, n.º 1, al. c), parte final, do C.P.P., “ex-vi” art.º 425, nº 4, do mesmo diploma legal,
Ainda,
6º
Se bem se entendeu o plasmado no Acórdão, resulta do mesmo que, apesar da desnecessidade de se “recorrer” ao conhecimento oficioso - urna vez que este Tribunal considerou que a aludida nulidade foi arguida -, se necessário fosse, a mesma poderia ser objeto daquela apreciação (oficiosa).
7º
O que nos conduziria ao mesmo resultado.
8º
Ora, também nesta eventualidade não poderíamos deixar de manifestar posição discordante.
9°
Até porque, a verificar-se qualquer das situações acima aduzidas - consideração de arguição de nulidade ou possibilidade de conhecimento oficioso da mesma nulidade - sempre estaríamos perante uma violação da Constituição - art.º 32, n.º 1, da C.R.P. -,
10º
Sendo, portanto, inconstitucional a interpretação segundo a qual a nulidade prevista no art.º 379, n.º 1, al. a), do C.P.P., pode ser considerada como tendo sido arguida quando a dita arguição não resulta expressamente das alegações de recurso, nem resulta do contexto das mesmas, ainda para mais, quando não pretendida pelo Recorrentes.
(...)”.
4. Tal reclamação foi indeferida, por Acórdão de 4 de janeiro de 2012, no qual se refere que, apesar de no recurso não se ter referido expressis verbis que a sentença era nula, os recorrentes “alegaram fundamentos que consubstanciavam uma tal nulidade”, considerando, nessa ótica, que o Tribunal de recurso não se encontra “sujeito ao nomen iuris invocado pelos sujeitos processuais”, mas aos fundamentos alegados; deixando igualmente consignado, para além dessa realidade, que a nulidade circunstancialmente em causa sempre seria de conhecimento oficioso.
Vejamos.
5. Como é consabido, o objeto do recurso de constitucionalidade só pode ser constituído por uma questão de (in)constitucionalidade da(s) norma(s) jurídica(s) de que a decisão recorrida haja feito efetiva aplicação ou tenha constituído o fundamento normativo do aí decidido, à qual – ou às quais – se impute a violação de preceitos ou princípios constitucionais.
Por isso se reconhece que os recursos de constitucionalidade, embora interpostos de decisões de outros tribunais, visam controlar o juízo que nelas se contém sobre a violação ou não violação da Constituição por normas mobilizadas na decisão recorrida como sua ratio decidendi ou seu fundamento normativo, não podendo visar as próprias decisões jurisdicionais, identificando-se, nessa medida, o conceito de norma jurídica como elemento definidor do objeto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objeto de tal recurso – cf., nestes exatos termos, o Acórdão n.º 361/98 e, entre muitos outros, os Acórdãos n.os 286/93, 336/97, 702/96, 336/97, 27/98 e 223/03, todos disponíveis para consulta em www.tribunalconstitucional.pt –, não podendo sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, mesmo quando esta faça aplicação direta de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efetuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao ato judicial de “aplicação” a violação (direta) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efetuado in concreto pelo tribunal a quo.
Nessa ótica, há que distinguir, para efeitos de definição do objeto do recurso de constitucionalidade, as situações em que se controverte a concreta decisão, considerada como resultado de um momento de aplicação dos preceitos legais – a isso se reconduzindo as situações em que “embora sob a capa formal da invocação da inconstitucionalidade de certo preceito legal tal como foi aplicado pela decisão recorrida - o que realmente se pretende controverter é a concreta e casuística valoração pelo julgador das múltiplas e específicas circunstâncias do caso sub judicio (…); [designadamente] a adequação e correção do juízo de valoração das provas e fixação da matéria de facto provada na sentença (...) ou a estrita qualificação jurídica dos factos relevantes para a aplicação do direito […];” (cf. CARLOS LOPES DO REGO, «O objeto idóneo dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional», in Jurisprudência Constitucional, n.º 3, p. 8) –, daquelas em que está essencialmente em causa o momento normativo da concreta realização do direito, traçado pela determinação do critério jurídico à luz do qual deve ser valorado o problema, escapando, como se disse, ao controlo do Tribunal a qualificação e a valoração da matéria de facto que com aquele momento converge no juízo decisório.
6. Resulta do requerimento de interposição de recurso que o mesmo tem por objeto “questão de inconstitucionalidade (...) suscitada no requerimento de arguição de nulidade” do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12 de outubro de 2011.
Perscrutando, porém, o teor de tal reclamação, supra transcrita, constata-se que não foi aí suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa.
De facto, nesse articulado e na única ocasião em que se refere ter existido uma “violação da Constituição” – cf. as menções efetuadas nos artigos 9.º e 10.º da referida reclamação –, os recorrentes apenas controvertem sentidos ou juízos decisórios na medida em que estes concluam ter existido, in casu, “arguição de nulidade ou possibilidade de conhecimento oficioso da mesma nulidade”.
Ora, essa matéria não constitui, como se referiu, objeto idóneo do recurso de constitucionalidade, não cabendo ao Tribunal Constitucional sindicar o resultado decorrente da valoração, pela instância jurisdicional recorrida, de um conjunto de circunstâncias de facto e a decisão de aplicação daí resultante.
Mais precisamente, não pode requerer-se a este Tribunal que sindique, sub species constitutionis, a decisão da Relação de ter considerado arguida, face aos fundamentos invocados pelos recorrentes, a referida nulidade ou se esta constituía, ou não, matéria de conhecimento oficioso.
Destarte, não se obnubilando que os recorrentes consideraram ser inconstitucional a interpretação segundo a qual a nulidade prevista no art.º 379, n.º 1, al. a), do C.P.P., pode ser considerada como tendo sido arguida quando a dita arguição não resulta expressamente das alegações de recurso, nem resulta do contexto das mesmas, ainda para mais, quando não pretendida pelo Recorrentes, afigura-se manifesto que, apesar da referência ao preceito do Código de Processo Penal, o que verdadeiramente aí se impugna é a desconformidade da Constituição com a própria decisão judicial na medida em que esta conclua, em concreto e face às circunstâncias alegadas, ter existido arguição de nulidade da decisão recorrida.
Para além disso, importa ainda referir que os recorrentes não controvertem sequer a ratio decidendi que foi acolhida pelo Tribunal recorrido para suportar a decisão de que nulidade da decisão da 1.ª instância foi efetivamente arguida pelos recorrentes que invocaram, em recurso, os fundamentos que consubstanciavam uma tal nulidade.
Não se encontram, pois, verificados os requisitos determinantes do conhecimento do recurso.
7. Termos em que, face a tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objeto do recurso.
(...)”.
Vejamos.
5. Compulsados os argumentos aduzidos pelos reclamantes e o teor da decisão reclamada, afigura-se que a presente reclamação é improcedente.
Na realidade é muito duvidoso que os reclamantes tenham chegado a formular um critério normativo.
Todavia a poder ser considerado um critério normativo, sempre se terá que considerar que as circunstâncias de facto projectadas no critério questionado pelos recorrentes não foram as assumidas pela decisão recorrida, tendo a decisão reclamada, por esse motivo, dado por assente que os recorrentes não controverteram a ratio decidendi do Acórdão recorrido, ratio essa traduzida na consideração judicis de que foi efectivamente arguida a nulidade, pelos recorrentes, quando invocaram em sede de recurso os fundamentos que consubstanciam uma tal nulidade.
Na sequência, mas ainda quanto a este ponto, importa acrescentar que se trata de uma matéria que, por dizer respeito aos pressupostos com base nos quais se há-de ponderar a admissibilidade do recurso, não pode deixar de constar do próprio requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, não sendo procedentes os argumentos ensaiados na reclamação segundo os quais os reclamantes que “não tiveram oportunidade processual para o fazer”, uma vez que não foram notificados para alegar no recurso de constitucionalidade.
De facto, como se disse, está aí em causa um pressuposto determinante do conhecimento do recurso de constitucionalidade, que, como tal, não pode deixar de ser equacionado no próprio requerimento que funda o recurso.
Depois, e logicamente, como o recurso para o Tribunal Constitucional ocorre depois de proferida a decisão recorrida é óbvio que aquela oportunidade existe logo no momento em que o recurso é interposto.
III. Decisão
6. Assim, atento o disposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão sumária reclamada.
Custas pelos reclamantes, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 12 de Julho de 2012. – José da Cunha Barbosa – Joaquim de Sousa Ribeiro – Rui Manuel Moura Ramos