Imprimir acórdão
Processo n.º 804/02
2ª Secção Relator: Cons. Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, neste Tribunal Constitucional:
A – O relatório
1. A e mulher, identificados nos autos, reclamam, ao abrigo do art.
76.º, n.º 4, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro – doravante designada, abreviadamente, por LTC – do despacho proferido pelo Relator, no Supremo Tribunal de Justiça, em 20 de Novembro de 2002 – fls. 572 e 573 dos autos –, que indeferiu o requerimento de interposição de recurso para este Tribunal Constitucional.
2. Os ora reclamantes, inconformados com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Maio de 2002 - que concedeu provimento ao recurso de revista n.º 1146/02, onde aqueles figuravam como recorridos – fls. 512 a
525), requereram, invocando o art. 669.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, als. a) e b) do Código de Processo Civil (CPC), 'o esclarecimento das obscuridades/ambiguidades' contidas no aresto e a sua reforma – cf. fls. 528 a 531.
O Relator conheceu sumariamente da reclamação, nos termos dos art.os
700.º, n.º 1, alíneas f) e g) e 705.º do CPC, julgando que não havia qualquer
'esclarecimento a prestar, nem reforma a efectuar' e, em consequência, desatendeu a reclamação apresentada – cf. fls. 540 e 541.
3. Desta última decisão, os recorridos reclamaram para a conferência
– cf. fls. 552 a 559 –, afirmando, essencialmente, que:
'..... o recurso de revista é inadmissível, porque os autores carecem de alçada dado que não recorreram da decisão reconvencional';
'a matéria fixada pela Relação do Porto é insindicável, quer ainda porque o Supremo não se pronunciou sobre a questão de falta de impugnação, em sede de réplica, pelos autores, relativamente à matéria relevante da contestação'
'a interpretação de inaplicabilidade dada pela 3ª Instância à norma do art.
669.º do CPC é ilegal e inconstitucional, porque ela existe precisamente para casos como o presente, em que o lapso judicial/ erro da recorribilidade da decisão da Relação deve ser reparado no sentido de ser decretada a irrecorribilidade (arts. 13.º, n.º1, 20.º, n.º 4 e 203.º da Constituição)'.
4. O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 30 de Outubro de
2002 – v. fls. 562 e 563 – desatendeu, por improcedente, tal reclamação, explicitando que:
'(…) a questão da admissibilidade do recurso não pode ser (re)colocada nesta fase processual, já depois de proferido o Acórdão.
Nunca, por via de esclarecimento ou reforma, possível apenas, nos casos determinados, concretamente previstos no artigo 669.º do CPC, se poderia agora valorar uma constatação da eventual recorribilidade da decisão da Relação.
Diga-se, no entanto, que o valor da acção, nunca contestado, se fixou definitivamente conforme ao disposto no artigo 315.º, do Código de Processo Civil. Valor que é calculado em função do prescrito pelos artigos 306.º, n.º2 e
308.º, n.º 2, também daquele Código, em valor, ao tempo, superior ao da alçada da Relação.
Em segundo lugar, pretendem os recorridos que a matéria de facto fixada pela Relação é insindicável, e que o STJ não a podia modificar, 'como veio a acontecer'. Não explicam os recorrentes em que ponto ou pontos é que a matéria de facto foi alterada – nem o conseguiriam fazer, pois não houve qualquer alteração à matéria de facto, como resulta da mera leitura do Acórdão
(conferir ponto 8, fls. 517).
Em ligação, não inteiramente clara com esta segunda questão, dizem os recorridos, em terceiro lugar, que o acórdão ‘sofre do vício de omissão de pronúncia, por não se ter analisado a questão da falta de impugnação, em sede de réplica, da matéria alegada pelos réus’.
Pois bem: manifestamente, não têm razão.
O acórdão tratou expressamente esse assunto, (ver: pontos 2 e 8, respectivamente, fls. 513 e 517) e chamou à colação o que a Relação decidiu, a propósito sobre a mesma matéria.
Por outro lado, nem sequer tinha obrigação de apreciar este segmento argumentativo/meramente afirmativo – não se tratando de uma questão a decidir, em sentido próprio, tão pouco, como tal foi definida nas alegações de recurso, que determinaram o âmbito material de conhecimento deste (ver pontos 6 e 7, fls.
519)'.
5. Inconformados com tal decisão, os ora reclamantes interpuseram recurso para o
'Tribunal Constitucional de Lisboa', afirmando que:
'Efectivamente, a interpretação de inaplicabilidade dada pela 3ª Instância à norma do art. 669.º do CPC é ilegal e inconstitucional, porque ela existe precisamente para casos como o presente, em que o lapso judicial/ erro da recorribilidade da decisão da Relação deve ser reparado no sentido de ser decretada a irrecorribilidade (arts. 13.º, n.º1, 20.º, n.º 4 e 203.º da Constituição). Veja-se que o valor da acção é de 310.000$00 e o da reconvenção é de 2250000$00, pelo que o valor da acção foi de 2.560.000$00, a partir de 22.11.96 (art. 308.º, n.º 2, do CPC) e até 15.11.01, data da prolação do Acórdão do TR Porto, que julgou improcedente a acção, cujo valor é de 310000$00. Os autores não recorreram da reconvenção, limitando o valor processual ao valor da acção/310.000$00. Assim, o recurso que movimentaram para o Supremo Tribunal e que tem apenas por objecto o reconhecimento do direito de preferência sobre o prédio dos autos e o pagamento de 310.000$00 relativo ao preço da arrematação, é inadmissível, atento o disposto no artigo 678.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e o valor da sucumbência nele consagrado. Os AA. na sua alegação limitaram a sua discordância aos referidos direito de preferência e à contrapartida do preço, pelo que o Supremo Tribunal não podia conhecer desse recurso, uma vez que é inadmissível – art. 678.º, n.º 1, do CPC – e devia ser julgado findo – art. 700, n.º 1, al. e) do CPC. E nada impede que a questão oficiosa da inadmissibilidade do recurso seja colocada nesta fase processual, porque o Acórdão não transitou em julgado e deve ser dado como inexistente juridicamente. Sempre, por qualquer via oficiosa – seja de esclarecimento, de reforma ou outra que o tribunal considere mais adequada – se pode valorar a constatação evidente, face ao valor da sucumbência, da irrecorribilidade da decisão da Relação. A norma especial da sucumbência do art. 678.º, n.º 1 do CPC prevalece sobre as regras gerais contidas nos arts. 315.º, 306.º, n.º 2 e 308.º, n.º 2 também daquele Código.'
6. O Supremo Tribunal de Justiça indeferiu tal requerimento de interposição de recurso com base nas seguintes considerações:
'1. Do que os recorridos/requerentes se queixam na revista, é do excesso de garantia judiciária dada às autoras/recorrentes, na revista. É isto mesmo! Havendo garantia a mais que a Constituição não permite, dizem!
2. Foi já explicado pela Relação (fls. 474, 2º vol. e fls. 349, 1º vol.) e justificado pelo Supremo (fl. 510, 3º vol.) a admissibilidade do recurso (de agravo e de revista). Não vamos repetir aqui o que se disse a fls. 540/541, a fls. 562/563, e no ponto
7, de fls. 519 (…).
3. É elementar lembrar que, nem a decisão da Relação, nem o Acórdão do Supremo, de que se reclama, se pronunciaram sobre qualquer norma cuja constitucionalidade tivesse sido questionada (assim, para citar o mais recente, veja-se o Acórdão do TC de 26/4/02, relatou Conselheiro Sousa Brito – ver sobre este aspecto, com publicação no nº 45, 1999, dos Acórdãos do TC, o Acórdão n.º 674/99, de 15 de Dez. 1999, pág. 597, em especial, ponto 40.
4. Sem deixar de assumir a possibilidade de errar, é minha convicção, nas circunstâncias presentes, que os requerentes não têm razão nenhuma, sendo inadmissível – agora sim – o recurso para o Tribunal Constitucional. Anoto que esta engenharia processual dos requerentes que, aliás, litigam com assistência judiciária, leva ao arrastamento da consolidação de uma decisão, já proferida em 23 de maio de 2002 (fls. 525).
(…).'
7. Notificados desse despacho, os 'recorrentes' reclamaram, ao abrigo do disposto no artigo 76.º, n.º 4, da LTC, para o Tribunal Constitucional, reproduzindo ipsis verbis a argumentação, supra transcrita, constante do requerimento de interposição do recurso.
8. O Ministério Público junto deste Tribunal proferiu parecer no sentido de negar provimento à reclamação apresentada, porquanto, no entendimento do Ex.mo Magistrado do Ministério Público, esta 'carece ostensivamente de qualquer fundamento', uma vez que:
'(…) Importa notar, desde logo, que o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade – justificadamente rejeitado pelo Supremo – não trata de especificar ou identificar minimamente qualquer questão de inconstitucionalidade normativa referente ao preceito que consta do art. 669.º, já que não identifica minimamente qual a dimensão normativa, aplicada pelo STJ, que pretende controverter sob o prisma da constitucionalidade. É aliás manifesto que o reclamante – na sua confusa argumentação – se limita a manifestar discordância com o facto de o Tribunal 'a quo' ter pretendido que o acórdão proferido não carecia de qualquer aclaração ou reforma, matéria que naturalmente é desprovida de carácter normativo'. Cumpre assim apreciar.
B – A fundamentação
9. A questão decidenda
É a de saber se deve ser deferida a reclamação do despacho do Relator do STJ que não admitiu o recurso para este Tribunal, com base nos fundamentos acima transcritos, e ordenada a sua reforma.
10. No caso sub judice, os ora reclamantes apenas se referiram, durante todo o processo, a uma eventual (sublinhe-se) 'questão de constitucionalidade' no articulado do requerimento da reclamação para a conferência – a que se refere o artigo 700.º, n.º 3 do CPC – requerimento esse que apresentaram, depois de verem desatendido por decisão sumária proferida pelo Relator, nos termos do art.º
700.º n.º 1, al. f) do CPC, um outro requerimento anterior de reclamação sobre a mesma matéria. Ali afirmaram que 'a interpretação de inaplicabilidade dada pela
3ª Instância à norma do art. 669.º do CPC é ilegal e inconstitucional, porque ela existe precisamente para os casos como o presente, em que o lapso/erro da recorribilidade da decisão da Relação deve ser reparado no sentido de ser decretada a irrecorribilidade (arts. 13.º, n.º 1, 20.º, n.º 4 e 203.º da Constituição)'.
11. São requisitos específicos do recurso de constitucionalidade – ao abrigo da al. b) do art. 70.º da LTC que é o preceito invocado pelos reclamantes como fundamento do seu recurso de constitucionalidade – que o tribunal haja efectivamente aplicado a norma, cuja constitucionalidade se problematiza como ratio decidendi da decisão e que a questão da constitucionalidade normativa haja sido suscitada durante o processo. Requisitos que, em bom rigor, não se verificam no caso sub judice, uma vez que os reclamantes não suscitaram em qualquer momento funcionalmente adequado do processo, qualquer problema de inconstitucionalidade normativa, susceptível de, como tal, ser apreciada por este Tribunal.
12. Na verdade, e em primeiro lugar, o que os reclamantes contestam perante este tribunal é a própria decisão, devidamente fundamentada, que entendeu não existir
'qualquer esclarecimento a prestar, nem reforma a efectuar' e, indirectamente, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, cujo esclarecimento foi requerido. O que
é claramente perceptível mediante a leitura do requerimento, já transcrito, de interposição de recurso para este Tribunal, onde os reclamantes argumentam explicitamente no sentido de contestar o próprio Acórdão do STJ, anterior ao pedido de 'esclarecimento'.
13. Ao sustentarem que a 'interpretação de inaplicabilidade dada pela 3ª instância à norma do art.º 669.º do CPC é ilegal e inconstitucional, porque ela existe precisamente para casos como o presente em que o lapso judicial/erro da recorribilidade da decisão da Relação deve ser reparado no sentido de ser decretada a irrecorribilidade (art.os 13.º/1, 20.º/4 e 203.º da Constituição)', os reclamantes estão, de facto, a questionar indirectamente, perante este Tribunal, o acórdão do STJ proferido em 23 de Maio de 2002 que concedeu a revista, em que figuravam como recorridos, e, por outro lado, a contradizer directamente - cingindo-nos à questão da irrecorribilidade do acórdão da Relação para o STJ, a coberto do art.º 669.º, que foi a trazida a este Tribunal através da reclamação nos termos do art.º 77.º da LTC - , a decisão da conferência que conheceu da reclamação, já antes decidida sumariamente pelo Relator nos mesmos termos, sob invocação do disposto nos art.os 700.º, n.º 1, als. f) e 705.º do CPC, em que se considerou que '... a questão da admissibilidade do recurso não pode ser (re)colocada nesta fase processual, já depois de proferido o acórdão. Nunca, por via de esclarecimento ou reforma, possível apenas, nos casos determinados, concretamente previstos no art. 669.º do CPC, se poderia agora valorar uma constatação da eventual irrecorribilidade da decisão da Relação. Diga-se, no entanto, que o valor da acção, nunca contestado, se fixou definitivamente conforme ao disposto no art.
315.º do CPC. Valor que é calculado em função do prescrito pelos artos. 306.º, n.º 2 e 308.º, n.º 2, também daquele Código, em valor, ao tempo, superior ao valor da alçada da Relação'.
14. Ora, como se afirmou – e repetidamente vem sendo explicitado por diversas decisões deste Tribunal Constitucional – o recurso de constitucionalidade não pode ter por objecto uma eventual
(in)constitucionalidade da decisão judicial – entendida enquanto acto de aplicação do direito –, mas apenas de normas que hajam sido aplicadas como ratio decidendi do respectivo juízo decisório. E é do acto de aplicação do direito, subtilmente escamoteado sob a equívoca fórmula de 'interpretação de inaplicabilidade', que os reclamantes pretendem recorrer para o Tribunal Constitucional.
Não está em causa, neste caso, a inconstitucionalidade da norma do art. 669.º do CPC, mesmo no que se refere a uma eventual interpretação que houvesse sustentado a sua efectiva (in)aplicabilidade, outrossim a própria decisão do Tribunal que considerou não estarem verificados os pressupostos de que a lei faz depender o esclarecimento e/ou a reforma das decisões judiciais, bem como o Acórdão cujo esclarecimento e/ou reforma foi requerido.
Basta relembrar, a esse propósito, o requerimento que os reclamantes dirigiram a este Tribunal (supra, ponto 5). A bem ver, a argumentação aí expendida incide, prática e essencialmente, sobre o decidido pelo STJ no acórdão que conheceu da reclamação antes decidida pelo Relator sobre a matéria da irrecorribilidade - entre outras cujo conteúdo não importa agora focar em face dos fundamentos alegados na reclamação para este Tribunal - e sobre o acórdão reclamado, de 23 de Maio de 2002, onde apenas se contesta a exactidão técnico-jurídica de tal juízo decisório – sem que, anteriormente ao incidente processual pós-decisório da apresentação da reclamação da decisão sumária para a conferência, se houvesse suscitado durante o processo qualquer problema de constitucionalidade.
15. Assim, ao pretender que o Tribunal Constitucional se pronuncie especificamente sobre o acto de aplicação do direito, controlando o mérito da decisão judicial questionada, o recurso que os ora reclamantes pretendem interpor para este Tribunal acaba por assumir contornos de um verdadeiro
'recurso de amparo', sem cabimento no âmbito da nossa jurisdição constitucional.
C – A decisão
16. Nestes termos indefere-se a reclamação. Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC. Lisboa, 26 de Fevereiro de 2003 Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Luís Nunes de Almeida