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Proc. nº 559/2003
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A. e mulher, B., assistentes nos autos de recurso penal nº 101/2002 do Tribunal da Relação d-- ---------------, em que o arguido C. veio a ser absolvido da acusação e do pedido indemnizatório por decisão de 23 de Setembro de 2002 (tendo, assim, sido revogada a sentença condenatória proferida em primeira instância, em 8 de Fevereiro de 2002), requereram ao Supremo Tribunal de Justiça, em 23 de Outubro de 2002 – após a arguição da nulidade daquele acórdão e antes da Conferência destinada a apreciar tal arguição –, a recusa do Juiz Desembargador D. (relator nos referidos autos). Invocaram como fundamento do pedido de recusa terem tido conhecimento, entre 15 e 18 de Outubro de 2002, que o referido Desembargador seria cliente do escritório de advogados que patrocinava o arguido. O Supremo Tribunal de Justiça indeferiu liminarmente, em Conferência, o pedido de recusa do relator, por ser intempestivo, já que os requerentes o apresentaram depois de ter sido prolatado o acórdão do Tribunal da Relação d--
-----------------. Após esta decisão, os requerentes interpuseram recurso para o Plenário da Secção, invocando, para além do mais, que o entendimento do artigo 44º do Código de Processo Penal perfilhado pela decisão recorrida, no sentido de considerar intempestivo o pedido de recusa de juiz após a prolação do acórdão “atenta contra os princípios constitucionais do acesso ao direito e aos tribunais, da garantia da imparcialidade de jurisdição, da garantia da independência dos tribunais e dos juízes, do direito a um processo justo e equitativo e da igualdade dos cidadãos perante a lei”. Segundo os requerentes, estariam, assim, violados os artigos 13º, 20º, nºs 1 e 4, 32º, nºs 7 e 9, 202º, nºs 1 e 2, 203º e
266, nº 2, da Constituição.
2. Em 5 de Junho de 2003, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu acórdão em que se pronunciou globalmente sobre a questão suscitada nos seguintes termos:
Antes de mais, há que apreciar a questão da admissibilidade do recuso suscitada pelo Ministério Público na sua resposta à motivação dos recorrentes. No que concerne ao recurso, o princípio geral, consagrado no art. 399º do C.P.P., é o da recorribilidade das decisões, sejam elas acórdãos, sentenças ou despachos. Só assim não será quando, nos termos daquele normativo, a irrecorribilidade estiver expressamente (nesta matéria, tão importante, não pode haver lugar a dúvidas) prevista na lei. Este princípio geral não fica contrariado pelo facto de, em certos casos, o C.P.P. se referir à recorribilidade das decisões. A lei procede desta forma, nuns casos, para evitar dúvidas sobre tal recorribilidade e sobre o tribunal “ad quem” – v. os arts. 42º, nº 1, 240º, al. a), e 310º, nº 2, do C.P.P. –, e, noutros casos, porque o recurso tem um regime específico – v. o art. 219º do mesmo Código. Ora, “in casu”, estamos perante um recurso de uma decisão proferida em 1ª instância pela 5ª secção criminal deste Supremo Tribunal (a decisão sobre o pedido de recusa de um Juiz Desembargador da Relação d-- --------------), nos termos do art. 45º, nº 1, al. a), do C.P.P. Portanto, de tal decisão cabe recurso, cujo julgamento compete ao pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, de acordo com o disposto no art. 11º, nº 2, al. a), do C.P.P. Logo, este Código, porque não prevê expressamente a irrecorribilidade das decisões proferidas a respeito de pedidos de recusa de juízes, permite tal recorribilidade de acordo com a regra geral ínsita no art. 399º do C.P.P. e concretizada no art. 11º, nº 2, al. b), deste diploma, a respeito da competência do Supremo Tribunal de Justiça (e ainda no art. 37º, nº 1, da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro). A mesma recorribilidade está também essencialmente prevista, embora de forma indirecta, no art. 45º, nº 4, do C.P.P. ao remeter para a aplicação do disposto no art. 42º, nº 3, atribuindo efeito suspensivo ao recurso, que, neste caso, só pode ser o recurso da decisão que julga o pedido de recusa do juiz (v. os acs. do STJ, de 27-5-99 e de 7-11-02, in “Sumários STJ”, 31-90 e 65-69). Por conseguinte, o presente recurso é admissível, improcedendo a questão prévia suscitada a tal respeito pelo Ministério Público. Nas conclusões A a E, os recorrentes vieram arguir a nulidade do acórdão recorrido, nos termos do art. 379º, nº 1, al. a), do C.P.P., por omissão de pronúncia, a respeito da tempestividade do pedido de recusa, sobre a arguição de nulidade do acórdão absolutório da Relação d--- ----------------, dado que, tendo este tribunal de reunir em conferência para proferir novo acórdão sobre aquela arguição, ficou condicionada pela realização desta conferência a decisão sobre a tempestividade do referido pedido. Segundo os recorrentes, o acórdão recorrido omitiu ainda a pronúncia sobre os factos em que se baseou o requerimento de recusa, conhecidos após a arguição de nulidade do acórdão absolutório, mas antes da conferência que irá julgar essa arguição. Ora, ao indeferir o pedido de recusa, por ter sido apresentado após a prolação do acórdão decisório (absolutório) da Relação d-- ------------, o acórdão recorrido excluiu, obviamente, a possibilidade de tal pedido ser apresentado em momento posterior, nomeadamente depois da arguição da nulidade do acórdão decisório e antes da realização da conferência destinada a apreciar aquela arguição. Portanto, a questão posta pelos recorrentes foi objecto de pronúncia e de decisão por banda do acórdão recorrido, não se verificando a nulidade que invocaram, pelo que, quanto a esta questão, o recurso é manifestamente improcedente. Nas conclusões F a N, os recorrentes vieram sustentar a tempestividade do requerimento de recusa, na medida em que este foi apresentado antes de se iniciar a conferência que julgará a arguição da nulidade do acórdão absolutório suscitada pelos recorrentes. Sobre esta matéria dispõe o art. 44º do C.P.P. o seguinte:
“O requerimento de recusa e o pedido de escusa são admissíveis até ao início da audiência, até ao início da conferência nos recursos, ou até ao início do debate instrutório. Só o são posteriormente, até à sentença, ou até à decisão instrutória, quando os factos invocados como fundamento tiverem tido lugar, ou tiverem sido conhecidos pelo invocante, após o início da audiência ou do debate.” Adiantamos, desde já, que a questão da tempestividade do pedido de recusa foi bem decidida pelo acórdão recorrido. No entanto, entendemos dever ser outra a respectiva fundamentação. Efectivamente, a nosso ver, extrai-se claramente do transcrito art. 44º do C.P.P. que os recursos têm um momento próprio até ao qual a recusa tem de ser requerida, o qual é o do início da conferência, referido na 1ª parte daquele art. No caso de se tratar de decisões de tribunais de 1ª instância (sentenças ou decisões instrutórias) a recusa pode ser requerida até à sua prolação quando os factos invocados como fundamento tiverem tido lugar, ou tiverem sido conhecidos pelo invocante, após o início da audiência ou do debate instrutório, nos termos da 2ª parte do referido art. 44º, os quais são os momentos até aos quais, de acordo com a 1ª parte do mesmo artigo, é admissível o requerimento de recusa, como regra geral. Portanto, a 2ª parte do art. 44º do C.P.P. não se aplica aos recursos (sentença e decisão instrutória rimam com audiência e debate instrutório, respectivamente). Ora, nos recursos há sempre lugar a conferência, seja a referida no art. 419º do C.P.P. (que decide as questões suscitadas pelo relator em exame preliminar – v. o nº 3 – e que julga o recurso nos casos referidos no nº 4), seja a que reúne para deliberar após a audiência, nos termos do art. 424º do mesmo Código. O referido art. 419º e especialmente a al. d) do seu nº 4, ao contrário do que alegam os recorrentes, não se aplica à arguição de nulidade do acórdão, mas sim a julgamento do recurso em conferência quando houver alegações escritas (a lei diz quando não houver lugar a alegações orais), nos termos dos arts. 417º, nºs 5 e 7, e 418º, nº 1, do C.P.P. No entanto, é certo que a arguição de nulidade do acórdão é decidida em conferência, de acordo com o disposto no art. 716º, nº 2, do Cód. Proc. Civil, aplicável “ex vi” do art. 4º do C.P.P. No entanto, a arguição de nulidade do acórdão é um incidente posterior à decisão do recurso, que o art. 44º do C.P.P. não teve, claramente, em vista, pois se tivesse, então, teria ainda de ter em conta também os pedidos de rectificação e de aclaração do acórdão – v. o art. 380º do C.P.P., aplicável “ex vi” do art.
425º, nº 4, do mesmo diploma. Se a lei, para os efeitos do art. 44º do C.P.P., tivesse tido em vista as conferências realizadas após o acórdão final para decidir os pedidos de rectificação ou de aclaração ou a arguição de nulidade, tê-lo-ia dito expressamente, e não o fez. Aliás, aquele art. não permite, em nenhum caso, a dedução do pedido de recusa, após a prolação da decisão final (no caso do debate instrutório é a decisão instrutória). Por conseguinte, “in casu”, a recusa só podia ter sido requerida até à conferência a que se reporta (implicitamente, é óbvio, na medida em que os tribunais superiores são tribunais colectivos) o art. 424º, nº 1, do C.P.P.
(mais concretamente, o requerimento de recusa só era admissível até ao início da referida conferência). Como tal recusa só foi pedida após a prolação do acórdão decisório da Relação d-- --------------, é evidente que o foi fora de prazo, pelo que, quanto à questão da tempestividade de tal pedido, o recurso também é manifestamente improcedente. Nas conclusões O a R, os recorrentes pretendem que se decida acerca da viabilidade do requerimento de recusa. Ora, é evidente que a decisão desta questão está prejudicada face à decidida intempestividade daquele requerimento – v. o art. 660º, nº 2, do C.P.Civil “ex vi” do art. 4º do C.P.P. De todo o modo, trata-se de matéria de que não se poderia conhecer, pois não foi decidida pelo acórdão recorrido. E é certo e sabido que os recursos visam modificar as decisões impugnadas e não criar decisões sobre matéria nova – v. Simas Santos e Leal Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 5ª ed., 73.
Também no que se refere à questão de constitucionalidade, disse o Supremo Tribunal de Justiça o seguinte:
Nas conclusões S a V, vieram os recorrentes suscitar a inconstitucionalidade do entendimento firmado no acórdão recorrido. No entanto, a tal propósito, os recorrentes limitaram-se a fazer afirmações genéricas e não fundamentadas. Por outro lado, nem sequer indicaram as normas cuja inconstitucionalidade deveria ser apreciada. E era nas conclusões que o deviam ter feito – v. o art. 412º, nº 1, do C.P.P. Logo, a matéria tratada nestas conclusões é manifestamente improcedente. Por conseguinte, o recurso é manifestamente improcedente, pelo que tem de ser rejeitado nos termos do art. 420º, nº 1, do C.P.P.
3. Deste acórdão foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional por A. e mulher, B., ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
1. Na prolação do acórdão ora recorrido, o STJ foi chamado a pronunciar-se sobre a tempestividade de um pedido de recusa de um Juiz Desembargador que exerceu funções de relator no acórdão proferido em 23/09/2002 pela Relação d-
-------------, no âmbito do processo crime n° 101/2002 da 1ª secção (processo com origem no 2° juízo criminal d-- -----------, aí tendo o n° 10/2001).
2. Pelo dito acórdão de 23/09/2002, a Relação d- ------------ absolveu o médico C., que vinha condenado pelo crime de homicídio por negligência na pessoa do filho dos ora Recorrentes (então, com 18 meses de vida), crime esse praticado no exercício profissional da medicina.
3. Apesar de o arguido vir assim condenado, apesar de o arguido não ter pugnado
(em recurso) pela sua absolvição, apesar o Ministério Público ter emitido parecer no sentido da agravamento da pena de prisão fixada em 1ª instância, apesar de tudo isso, e apesar de tudo mais que consta dos autos,
4. A Relação d- ---------------, por acórdão relatado pelo Juiz Desembargador D., decidiu absolver o médico arguido.
5. Perante essa inesperada, insólita, incompreensível e errada decisão, os ora Recorrentes arguiram (em 02/10/2002) a nulidade da mesma.
6. No entanto, poucos dias depois dessa arguição e bem antes de apreciada pela Relação d-- -------------- a nulidade aí invocada, chegou ao conhecimento do signatário determinada factualidade, tão grave quão esclarecedora acerca da motivação daquela decisão absolutória.
7. Ficou a saber-se, em termos já relatados nestes autos, que o Juiz Desembargador relator do acórdão era, simultaneamente, cliente (em inúmeras acções judiciais) do escritório de advogados que patrocina o médico arguido e absolvido.
8. Tal factualidade, só nesse momento conhecida, tomou compreensível o que era, em condições normais, incompreensível: - a razão de ser daquela absolvição só pode ter sido a falta de condições do Juiz Desembargador relator para decidir com imparcialidade e isenção um recurso em que era parte um arguido condenado patrocinado pelo mesmo escritório de advogados que patrocina o próprio Juiz Desembargador .
9. Perante isso, apressaram-se os ora Recorrentes a suscitar junto do STJ o pedido de recusa do Juiz Desembargador relator, o que foi feito bem antes de, na Relação d-- -------------, reunir a conferência que iria decidir a arguição de nulidade do acórdão absolutório.
10. Por singelo acórdão de 21/11/2002, o STJ indeferiu o pedido de recusa, com o fundamento de tinha sido deduzido fora de prazo, tendo em vista o art. 44° do CPP.
11. Notificados, os Recorrente interpuseram recurso para o plenário da secção.
12. Nesse âmbito, o Ministério Público, embora questionando a possibilidade processual de interposição do recurso, sustentou que, a ser apreciado, tal recurso merecia provimento, no sentido de que o pedido de recusa, face às circunstâncias do caso, deveria ser tido como atempado.
13. Não obstante, o STJ proferiu o acórdão ora recorrido, aí decidindo que, no caso vertente, o pedido de recusa foi extemporâneo, pois só era admissível até ao início da conferência que antecedeu o acórdão absolutório propriamente dito.
14. Segundo o aresto ora recorrido, em matéria de recursos, o pedido de recusa não pode ser feito depois de iniciada a conferência.
15. Embora afirme usar argumentação distinta do acórdão inicial, a verdade é que o último acórdão do STJ alinhou pela mesmo ponto de vista, ao fazer coincidir o limite do pedido de recusa com o início da conferência e ao referir que, em matéria de recursos, jamais seria admissível um pedido de recusa posterior à prolação do acórdão que haja decidido o recurso.
16. Os Recorrentes não podem conformar-se com a decisão em si considerada, nem sequer com a sua fundamentação.
17. Daí o presente recurso para o Tribunal Constitucional.
Para os efeitos fixados no art. 75°-A da Lei do Tribunal Constitucional, passam os Recorrentes a indicar o seguinte:
A) Princípios e normas constitucionais violados No entender dos Recorrentes, o acórdão recorrido, bem assim o que este confirmou, é fruto de uma interpretação inconstitucional. Inconstitucional porque viola o princípio constitucional da garantia da imparcialidade da jurisdição, Inconstitucional porque viola o princípio constitucional da garantia da independência dos tribunais e dos juízes, Inconstitucional porque viola o princípio constitucional do direito a um processo justo e equitativo, Inconstitucional porque viola o princípio constitucional da igualdade dos cidadãos perante a lei, Inconstitucional porque atenta contra os princípios consagrados nos artigos 13°,
20°.1 e 4, 32°.1, 202°.1 e 2, 203° e 266°.2 da Constituição da República Portuguesa.
B) Norma cuja interpretação é inconstitucional No caso vertente, a decisão recorrida, bem assim a que esta confirma, deriva de uma interpretação inconstitucional do art. 44° do CPP.
C) Peça em que foi suscitada a inconstitucionalidade A inconstitucionalidade a que respeita este recurso foi suscitada pelos Recorrentes logo nas suas alegações do recurso que interpuseram do primeiro acórdão do STJ, que julgou extemporâneo o pedido de recusa do Juiz Desembargador visado.
Os recorrentes produziram, posteriormente, alegações no Tribunal Constitucional, tendo concluído deste modo:
l.ª) O princípio fundamental do Estado de direito, consagrado no art. 2° da Constituição, é concretizado nos princípios da constitucionalidade, da independência dos tribunais e dos juízes, da imparcialidade da jurisdição, do justo procedimento e da igualdade de aplicação do direito aos cidadãos através dos tribunais, tal como decorre dos arts. 3°, 13°, 20°,1 e 4, 202°,1 e 2, 203° e
266°,2 da Constituição.
2.ª) O instituto da recusa do juiz, consagrado no art. 43° do CPP, serve para impedir o juiz de funcionar em determinado processo, quando exista uma motivo sério e grave susceptível de gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade,
3.ª) Quando a imparcialidade do juiz ou a confiança da comunidade nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de “administrar a justiça em nome do povo”, sendo certo que a ponderação sobre essa (im)parcialidade deve ser regida por critérios objectivos e sob o ponto de vista da comunidade.
4.ª) A interpretação e aplicação do art. 44° do CPP, que regula os prazos para o requerimento de recusa, deve ser feita tendo em conta que está sempre em jogo a preocupação constitucional de garantir a imparcialidade das decisões judiciais,
5.ª) A recusa de um juiz implica, necessária e previamente, a rigorosa identificação desse juiz.
6.ª) O processamento dos recursos penais não facilita, nem favorece, a identificação do juiz relator,
7.ª) Quando os recursos são decididos em conferência (art. 419° do CPP), as partes só ficam a saber quem é o juiz relator ao serem notificadas do acórdão, pois que antes disso não são informadas (notificadas) acerca do juiz a quem o processo foi distribuído,
8.ª) Mesmo quando os processos prosseguem para serem decididos após audiência
(arts. 423° e 424° do CPP), se tivermos em conta o modo como as audiências decorrem nos nossos tribunais superiores, com a presença simultânea de todos os juízes da secção, é evidente que nem aí as partes têm condições para uma rigorosa identificação do relator.
9.ª) Tal identificação só é cabal e completa quando o acórdão é notificado à partes. Só aí, e face a tal identificação, é que as partes poderão ter condições para suscitar matéria justificativa da recusa do juiz.
10.ª) O art. 44° do CPP não regula expressamente a audiência em recurso nos tribunais superiores, e essa omissão não pode ser suprida pela aplicação das disposições que regulam a audiência em 1ª instância, dado que não há paralelismo ou analogia entre o processamento e as formalidades de uma e outra das audiências.
11.ª) Vista essa omissão, a solução a encontrar há-de ter em devida conta o facto de o instituto da recusa do juiz ser um modo de concretização do princípio constitucional da independência e imparcialidade da jurisdição, sendo de rejeitar qualquer interpretação que, só por si e desde logo, restrinja ou invalide o exercício do direito de requerer a recusa.
12.ª) Assim, é inconstitucional o art. 44° do CPP se interpretado no sentido de que, nos recursos, e salvo quando se demonstre que a parte conhecia já a identidade do juiz relator, o requerimento de recusa só pode ser apresentado até ao início da conferência (art. 419° do CPP), ou até ao início da audiência (art.
423° do CPP) ou até à prolação do acórdão (art. 425° do CPP).
13.ª) A interpretação do art. 44° do CPP mais conforme à Constituição e aos preceitos constitucionais indicados na conclusão 1.ª é a de que, nos recursos, e salvo quando se demonstre que a parte conhecia já a identidade do juiz relator, o requerimento de recusa pode ser apresentado até ao trânsito da decisão.
14.ª) Aliás, o caso vertente, face aos termos do recurso interposto pelo arguido condenado (que nem sequer pediu a sua absolvição) e à promoção do Ministério Público (que propôs o agravamento da pena de prisão), demonstra que o quadro de falta de isenção e imparcialidade do juiz desembargador relator só ficou patente com o incompreensível e inaceitável teor do acórdão (absolutório). Antes disso, nada fazia supor tal desfecho.
15.ª) Acresce que o caso vertente contém ainda a particularidade de o requerimento de recusa ter sido apresentado após a arguição da nulidade do acórdão que absolveu o arguido (já que só então houve conhecimento dos factos que justificaram o pedido de recusa), mas ainda bem antes de reunir a conferência destinada a apreciar essa arguição de nulidade (art. 716°.2 do CPC ex vi art. 4° do CPP).
16.ª) Considerando que essa nulidade foi oposta a uma decisão proferida em recurso e considerando que o acórdão destinado a apreciar a nulidade invocada não é de menor importância do que o primeiro (como processo não admite recurso para o Supremo Tribunal, esse segundo acórdão é a última oportunidade para uma decisão justa e imparcial pela Relação), temos de entender esse segundo acórdão como uma decisão proferida “em recurso”, que deve ser rodeada de todas as garantias de isenção e imparcialidade.
17.ª) Por isso, e visto que esse novo acórdão iria ser relatado pelo juiz que relatou o anterior, sempre deveria entender-se que o requerimento de recusa foi tempestivo, pois foi deduzido antes da “conferência” destinada a julgar a questão da nulidade.
18.ª) Nessa medida, é ainda inconstitucional o art. 44° do CPP se interpretado no sentido de que, nos recursos, e salvo quando se demonstre que a parte conhecia já a identidade do juiz relator, o requerimento de recusa é extemporâneo se apresentado após a arguição da nulidade do acórdão que decidiu o recurso (e com fundamento em factos conhecidos também depois dessa arguição), mas antes de reunir a conferência destinada à apreciação da nulidade invocada.
19.ª) Na interpretação que fez do art. 44° do CPP - interpretação que é grave e injustificadamente restritiva do direito de requerer a recusa -, o Supremo Tribunal de Justiça violou o disposto nos arts. 13°,20°.1 e 4,32°.1, 202°.1 e
2,203° e 266°.2 da Constituição (sendo certo que a dita inconstitucionalidade está patente tanto no acórdão recorrido, como no que o antecedeu).
O Ministério Público junto do Tribunal Constitucional apresentou contra-alegações, propugnando a improcedência do recurso e formulando as seguintes conclusões:
1° - A exigência constitucional a uma administração de justiça independente, isenta e imparcial, no âmbito de um processo leal e equitativo, não é incompatível com a existência de um prazo, a partir do qual já não é possível suscitar a recusa do juiz.
2° - A norma do artigo 44° do Código de Processo Penal ao não permitir que o pedido de recusa se possa efectivar, tendo já sido proferida decisão final, em qualquer das fases do processo, não enferma de inconstitucionalidade.
3° - O afastamento do juiz suspeito, visando impedir a decisão, perde a oportunidade e o sentido, se invocada posteriormente a esta, sem prejuízo dos sujeitos processuais poderem recorrer a outros mecanismos, caso do recurso de revisão ou da efectivação da responsabilidade criminal, civil e disciplinar, desde que para tanto estejam reunidos os respectivos pressupostos.
4° - Termos em que deve improceder o presente recurso.
Tudo visto, cumpre decidir.
II Fundamentação
5. A norma do Código de Processo Penal cuja constitucionalidade é invocada prevê o seguinte: Artigo 44º
(Prazos) O requerimento de recusa e o pedido de escusa são admissíveis até ao início da audiência, até ao início da conferência nos recursos, ou até ao início do debate instrutório. Só o são posteriormente, até à sentença, ou até à decisão instrutória, quando os factos invocados como fundamento tiverem tido lugar, ou tiverem sido conhecidos pelo invocante, após o início da audiência ou do debate.
6. A interpretação do preceito levada a cabo pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão recorrido exclui o momento da arguição de nulidade do acórdão
(anterior, claro está, à conferência que a decide) como momento relevante para efeito de suscitação da recusa do juiz. A interpretação do artigo 44º do Código de Processo Penal feita pelo Supremo Tribunal de Justiça indica que, no caso de decisões de tribunais de primeira instância (sentenças e decisões instrutórias), a recusa pode ser requerida até à prolação destas decisões, quando os factos invocados como fundamento tiverem tido lugar ou tiverem sido conhecidos por quem os invoca, após o início da audiência ou do debate instrutório. No que se refere aos recursos, havendo lugar a conferência, a recusa do juiz é suscitada até que essa conferência seja efectuada. Ora, a arguição de nulidade estaria fora desta lógica. O artigo 44º, ao referir-se à conferência, não abarcaria a conferência que decide tal incidente. Esta última não será abrangida sequer pelo artigo 419º do Código de Processo Penal, já que tal preceito apenas se refere ao julgamento do recurso, mas sim pelo artigo 716º, nº 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo
4º do Código de Processo Penal. Em suma, a arguição de nulidade de um acórdão, na interpretação que foi ratio decidendi do acórdão recorrido, é um incidente posterior à decisão do recurso que o artigo 44º não terá pretendido abranger, como aconteceria também com os pedidos de rectificação e de aclaração de um acórdão. Sem uma referência expressa na lei a tal incidente, não haveria que interpretar a expressão
“conferência” senão como a que integra o procedimento deliberativo dos recursos.
7. Não estando em causa no âmbito do recurso de constitucionalidade o controlo da correcção da interpretação do direito processual penal que o Supremo Tribunal de Justiça realizou, a qual é, aliás, perfeitamente sustentável de acordo com os elementos literal e sistemático, a pergunta que aqui tem relevância é a de saber se oferece qualquer dúvida de constitucionalidade não se admitir a possibilidade de pedir a recusa do juiz apenas no momento anterior à decisão sobre o incidente de arguição de nulidade do acórdão quando o fundamento invocado assente em factos só cognoscíveis pelo demandante naquele momento. Para responder a tal questão, há que partir da indagação sobre os fundamentos constitucionais da recusa do juiz. Ora, o instituto da recusa do juiz é destinado, conforme resulta do artigo 43º, nº 1, do Código de Processo Penal, a impedir a intervenção de um juiz no processo quando tal intervenção suscitar “o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”. O valor constitucional que o instituto jurídico de recusa serve
é, inequivocamente, o da garantia de imparcialidade do juiz. Tal garantia ancora-se, desde logo, na garantia de acesso ao direito, consagrada, genericamente, no artigo 20º, nº 1, da Constituição e, mais concretamente, no direito a um processo equitativo, configurado como garantia de defesa no sentido do artigo 32º, nº 1. Radica também implicitamente, na própria definição constitucional da função jurisdicional: “a administração da Justiça em nome do povo” (artigo 202º, nº 1, da Constituição).
8. Sendo esses os parâmetros constitucionais, qual é a resposta no caso proposto? A questão é tão-somente esta: se os factos que poderiam suscitar o risco de parcialidade são conhecidos apenas antes da decisão sobre uma arguição de nulidade suscitada, não será afectado o valor da imparcialidade, se já não puder ser conhecida a questão que motiva o pedido de recusa? Como se viu, o Código de Processo Penal estabelece restrições à possibilidade de suscitar a recusa de juiz, estabelecendo momentos a partir dos quais a recusa não pode ser invocada – o início da audiência, o início da conferência e o início do debate instrutório – quanto a factos conhecidos anteriormente. Pretende-se, assim, não só evitar a utilização surpreendente e abusiva, conforme as conveniências do demandante, da recusa como, fundamentalmente, uma
“utilização inútil”. Por outro lado, admite ainda o referido artigo 44º a recusa do juiz quanto a factos conhecidos após o início da audiência e do debate instrutório, quando tais factos tiverem sido conhecidos supervenientemente (após o início da audiência ou do debate instrutório). Também aí a “lógica” subjacente é a de se impedir que um juiz suspeito de parcialidade chegue a decidir o processo ou determine o curso ulterior do processo numa da suas fases fundamentais. Mas já o conhecimento de factos que justificariam a recusa posterior à sentença, mesmo que anterior ao trânsito em julgado, não é pertinente. Por já ter sido tomada a decisão, a recusa não seria já adequada a evitar o risco de parcialidade. No que se refere à fase de recurso, vigora a mesma “lógica”, sendo possível a recusa de juiz até ao início da conferência. Se os factos forem conhecidos posteriormente, já não se evitaria adequadamente o risco de uma decisão parcial. Estando-se perante um tribunal colectivo, em que o juiz suspeito de parcialidade já poderia ter influenciado a decisão do recurso, entende-se que o risco da parcialidade não será evitável com uma possível decisão favorável do pedido de recusa.
9. Tanto no que se refere às decisões de primeira instância como à decisão do recurso, a não admissão da arguição de nulidade poderá justificar-se numa perspectiva de razão de ser da recusa, a qual consiste em evitar o risco da desconfiança dos intervenientes processuais e de todos em geral. Com efeito, tal risco já não será verdadeiramente evitável quando as decisões, embora não transitadas, já tiverem sido tomadas e tornadas públicas. Se é certo que uma nulidade pode ser consequência da não imparcialidade anterior de uma decisão e que a decisão da própria arguição pode vir a convalidar a situação anterior, também é verdade que a arguição de nulidade não é meio adequado para reparar uma eventual anterior parcialidade da decisão, destinando-se antes a corrigir vícios da decisão (por exemplo, quanto à sua fundamentação ou à sua articulação lógica ou ao conhecimento de questões). Assim, não só uma decisão de uma arguição de nulidade não é o meio típico de uma decisão parcial, como não pode, em si mesma, evitar ou sanar a eventual não imparcialidade anterior. O sentido fundamental do impedimento do risco de não imparcialidade está ligado, indiscutivelmente, à decisão principal, ao “poder de decidir” do juiz suspeito e não tem de cobrir decisões sobre incidentes em que o poder jurisdicional do juiz fica esgotado quanto à matéria da causa (artigo 666º, nº 1, do Código de Processo Civil) – e em que, portanto, já não é possível impedir que uma decisão não imparcial do processo seja tomada. Por outro lado, não deixa o Direito, também, de fornecer meios reparadores de uma situação efectiva de não imparcialidade que se venha a detectar tardiamente, em face dos prazos legais justificados pela natureza do instituto da recusa de juiz. Assim, tanto a revisão da sentença (artigo 449º do Código de Processo Penal), como, de algum modo, a responsabilidade penal e civil do juiz são formas de reparar os danos de uma decisão não imparcial de um juiz, impedindo que o valor constitucional em causa, agora na perspectiva da sua reparação e não já da sua prevenção, seja postergado.
III Decisão
10. Ante o exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional o artigo 44º do Código de Processo Penal na interpretação segundo a qual o pedido de recusa de juiz se deve formular até ao início da conferência ou da audiência mesmo quando os factos geradores da suspeita só cheguem ao conhecimento do invocante após a prolação do acórdão do qual se arguiu a nulidade e antes da sua apreciação e decisão em conferência, negando, consequentemente, provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 10 de Março de 2004
Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos