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Processo n.º 693/03
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
No Tribunal da Comarca de -------------, em processo comum singular, foram julgados os arguidos A. e B., vindo a ser condenados: o primeiro, pela prática de dois crimes de fraude na obtenção de subsídio, nas penas de 18 meses de prisão e 80 dias de multa por cada um dos crimes, e, em cúmulo, na pena de 2 anos de prisão e 130 dias de multa à razão diária de €
4,00, com suspensão da execução da pena de prisão pelo período de três anos; e o segundo, pela prática de três crimes de fraude na obtenção de subsídio, na forma tentada, na pena de 8 meses de prisão e 50 dias de multa por cada um dos crimes, e, em cúmulo, na pena de 18 meses de prisão e 100 dias de multa à razão diária de € 4,00, com suspensão da execução da pena de prisão pelo período de três anos. Quanto ao pedido civil deduzido pelo INGA – Instituto Nacional de Intervenção e Garantia Agrícola, foi o primeiro arguido condenado na restituição das quantias por si recebidas, acrescidas de juros à taxa legal desde a notificação do pedido.
A sentença foi lida na audiência de 15 de Julho de 2002, tendo, finda a leitura, o mandatário dos arguidos ditado para a acta que, nos termos do artigo 399.º e seguintes do Código de Processo Penal (CPP), dela interpunha recurso.
A sentença foi depositada na secretaria no dia 26 de Setembro de 2002.
A motivação do recurso deu entrada no tribunal em 15 de Outubro de 2002, enviada pelo correio com carimbo do precedente dia 14.
Após várias vicissitudes, o recurso foi admitido por despacho de 6 de Dezembro de 2002.
Remetido o processo ao Tribunal da Relação de Coimbra, o respectivo representante do Ministério Público, no visto inicial, suscitou a questão prévia da rejeição do recurso, nos termos conjugados dos artigos 414.º, n.º 2, e 420.º, n.º 1, do CPP, por falta de apresentação da motivação, por entender que esta devia ter sido apresentada no prazo de 15 dias contados da data da interposição do recurso para a acta (artigo 411.º, n.º 3, do CPP), e não da data do depósito da sentença na secretaria.
Notificados os recorrentes, estes responderam, sustentando o desatendimento da questão prévia suscitada e aduzindo que outra interpretação do artigo 411.º diversa da por eles defendida (no sentido de que o prazo de apresentação da motivação se conta da data do depósito da sentença na secretaria) seria violadora da Constituição da República Portuguesa (CRP), nomeadamente do direito ao recurso, consagrado no seu artigo 32.º, n.º 1.
Por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28 de Maio de 2003, foi o recurso rejeitado, com base na seguinte argumentação:
“Estatui o artigo 411.º do Código de Processo Penal:
«1. O prazo para interposição do recurso é de quinze dias e conta-se a partir da notificação da decisão ou, tratando-se de sentença, do respectivo depósito na secretaria. No caso de decisão oral reproduzida em acta, o prazo conta-se a partir da data em que tiver sido proferida, se o interessado estiver ou dever considerar-se presente
2. O recurso de decisão proferida em audiência pode ser interposto por simples declaração na acta.
3. O requerimento de interposição do recurso é sempre motivado, sob pena de não admissão do recurso. Se o recurso for interposto por declaração na acta, a motivação pode ser apresentada no prazo de quinze dias, contado da data da interposição.
4. ...
5. ...
6. ...»
Da lei decorre, sem margem para dúvidas, nos casos aplicáveis à sentença, como
é o presente, que:
– uma coisa é a interposição de recurso, outra é a motivação do mesmo;
– se pode interpor recurso no prazo de 15 dias, contado do depósito da sentença na secretaria;
– podendo interpor-se logo por declaração na acta da audiência;
– por sua vez as motivações devem acompanhar a interposição do recurso, excepto se o mesmo foi interposto por declaração na acta, caso em que devem ser apresentadas no prazo de 15 dias, contado da data da interposição. Assim sendo, não há qualquer apoio legal para se entender que as motivações de um recurso interposto na acta podem ser apresentadas nos 15 dias após o depósito da sentença na secretaria. A data deste depósito releva apenas para a interposição do recurso. E é desta que depende a data da apresentação das motivações. Ora, se os arguidos interpuseram recurso na acta, no dia 15 de Julho (de 2002), os 15 dias para apresentarem as respectivas motivações terminavam no dia 29 de Setembro (16 de Julho a 14 de Setembro, férias judiciais) que recaiu num Domingo, pelo que o último dia foi o de 30 de Setembro. Os dias subsequentes, previstos no artigo 145.° do Código de Processo Civil, foram os de 1, 2 e 3 de Outubro. A remessa das motivações no dia 14 do mesmo mês foi, obviamente, extemporânea.
* Nem se argumente que não faria sentido decorrer o prazo de apresentação das motivações antes do pagamento das guias, já que este é apenas uma das condições da admissão do recurso, para além da condição da tempestividade das motivações que é o que está em causa.
Nem há que colocar aqui a questão do prolongamento do prazo devido à transcrição, referido no artigo 698.°, n.º 6, do Código de Processo Civil (que uniformemente neste tribunal se tem decidido como não aplicável), já que os recorrentes não impugnam a matéria de facto nos termos do artigo 412.°, n.ºs 3 e
4, do Código de Processo Penal.
Por outro lado, os recorrentes não demonstraram, nem sequer invocaram, qualquer razão objectiva para fundamentar o justo impedimento. A
única coisa que alegaram foi uma claramente errada interpretação das normas legais.
*
Na sua resposta ao parecer do Ministério Público nesta Relação, os recorrentes alegam que o Juiz se limitou a ler uma súmula da sentença na audiência e que sem a sentença, depositada, não se pode motivar um recurso. Em primeiro lugar, não é isso que resulta da acta (fls. 612). Aí consta que «foi proferida a sentença, tendo a mesma sido notificada a todos os presentes que disseram ficar em tudo cientes». E a sentença tem a data do dia da leitura: 15 de Julho de 2002. E não se descortina razão para ter havido apenas uma súmula da sentença, já que o julgamento teve início no dia 11 de Janeiro de 2002 (fls. 494), teve a última sessão em 10 de Abril de 2002 (fls. 585), designou-se a leitura da sentença para
10 de Maio de 2002, depois para 28 de Maio de 2002, depois, ainda, para 21 de Junho de 2002 e, finalmente, para o dia 15 de Julho de 2002. Depois, se isso fosse assim, deveriam os recorrentes ter alegado tal facto e dele retirar as consequências, invocando o impedimento de motivar. Como vimos, não o fizeram.
Finalmente, não se compreende que apenas com base numa súmula de uma sentença se tenha desde logo recorrido. Se é certo que para recorrer não é necessário ter o texto da sentença, já não se compreende que se recorra sem saber do que se recorre. Se se recorre é porque se não concorda com a decisão e (ou) seus fundamentos. E para não concordar é necessário conhecê-los. Não há qualquer «armadilha». Os arguidos é que optaram por recorrer quando o fizeram, podendo não o fazer então. E não se mostrava qualquer necessidade de obstar (como, dizem, ser esse o fundamento da possibilidade de recurso para a acta) à aplicação de qualquer medida de coacção. O Tribunal Constitucional já se debruçou sobre a questão (Acórdão n.º 260/2002, Diário da República, II Série, de 24 de Julho de 2002), admitindo que, no caso como o dos autos, o recorrente poderá juntar as motivações no prazo de recurso havendo lapso objectivamente desculpável. Não é, claramente, o caso.
*
E sem motivações apresentadas no prazo legal, o recurso deve ser rejeitado, nos termos dos artigos 411.º, n.º 3, 414.°, n.º 3, e 420.°, n.º 1, do Código de Processo Penal.”
Contra este acórdão interpuseram os recorrentes o presente recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade – por violação do direito de acesso ao direito e à justiça e do direito ao recurso, consagrados nos artigos 20.º e 32.º, n.º 1, da CRP – da norma do artigo 411.º, n.º 3, do CPP, interpretada no sentido de que a motivação do recurso deve ser apresentada, no caso de recurso interposto para a acta, no prazo de 15 dias, independentemente de ter sido depositada, ou não, a sentença na secretaria.
No Tribunal Constitucional, os recorrentes apresentaram alegações, concluindo:
“A – O juiz de 1.ª instância proferiu por súmula a decisão condenatória.
B – Aos arguidos é permitido a interposição imediata do recurso da sentença, sem que a mesma tenha sido depositada na secretaria.
C – O prazo para a motivação de recurso só pode ser contado a partir da data em que a decisão já recorrida se encontra depositada na secretaria.
D – Pois só a partir desse momento é que os arguidos conhecem a totalidade da decisão, bem como dos seus fundamentos.
E – É, pois, natural que os arguidos tenham desde logo uma opinião contrária à decisão proferida, mas só com o acesso à totalidade da sentença tenham a argumentação suficiente para motivar o recurso imediatamente interposto.
F – Não faz qualquer sentido, pois, o recurso à figura do justo impedimento.
G – Primeiro, porque o mesmo é objectivamente impossível de determinar quanto ao seu início.
H – Segundo, porque isso seria colocar nas mãos de um juiz o direito quase discricionário para a efectivação do exercício de um direito constitucionalmente garantido, como é o direito ao recurso.
I – Sendo assim que a interpretação do artigo 411.º, n.º 3, do CPP que serve de apoio ao douto acórdão agora recorrido traduz-se na violação dos artigos 20.º e 32.º, n.º 1, da CRP, na medida em que impede o exercício por parte do arguido do seu direito de acesso à justiça e o direito de recurso das decisões penais que lhe são desfavoráveis.”
O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional apresentou alegações, concluindo:
“1.º – Constitui restrição excessiva e desproporcionada ao direito ao recurso, compreendido nas garantias de defesa do arguido em processo penal, a interpretação normativa que se traduza em contar o prazo da motivação do recurso, interposto em acta, de momento anterior àquele em que a sentença recorrida foi depositada, em termos legíveis, na secretaria, de modo a permitir ao recorrente o cumprimento adequado, naquela motivação, dos ónus que a lei de processo lhe impõe.
2.º – Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Também o assistente INGA apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1. Constando da Acta do processo de 15 de Julho de 2002 que foi proferida a sentença, tendo a mesma sido notificada a todos os presentes, que disseram ficar em tudo cientes, processualmente não há base de aplicação para a construção com que, com a invocação de preceitos constitucionais, os recorrentes pretendem atacar a sentença. Não se aplica semelhante invocação e argumentação.
2. Mesmo que a sua construção fosse em teoria procedente não é aplicável ao processo. Não pode processualmente colocar-se em causa qualquer inconstitucionalidade, em especial as invocadas pelos arguidos.
3. Para todos os efeitos os arguido conheceram integralmente a sentença recorrida no próprio dia 15 de Julho de 2002.
4. Em consequência, o seu recurso foi extemporâneo, nada havendo a censurar ao Acórdão da Relação de Coimbra ora recorrido, em particular em matéria de constitucionalidade.
5. Isto se conclui mesmo que o Acórdão recorrido adopte uma argumentação improcedente e porventura portadora de uma interpretação inconstitucional a partir do respectivo passo que adianta «Depois, se isso fosse assim, ...». Porque processualmente «não foi assim».
6. A inconstitucionalidade do fundamento do Acórdão recorrido nunca relevaria para a decisão, sendo desta, e não de fundamentos, que se recorre.
7. Deve o recurso de inconstitucionalidade improceder, e assim manter-se a não admissão do recurso ordinário.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Constitui objecto do presente recurso a conformidade constitucional da interpretação da norma do artigo 411.º, n.º 3, do CPP, acolhida na decisão recorrida, no sentido de que o prazo de 15 dias nela fixado para apresentação da motivação de recurso interposto por declaração na acta da audiência onde foi proferida a sentença se conta a partir da data dessa interposição, mesmo que a sentença só posteriormente haja sido depositada na secretaria.
Nesta sede, não compete ao Tribunal Constitucional apreciar a correcção do acórdão recorrido na parte em que considerou que dos autos resultava que na audiência de 15 de Julho de 2002 foi proferida a sentença, e não apenas lida uma súmula da mesma, como sustentam os recorrentes, aspecto que, como se verá, se revelará irrelevante para o sentido da decisão a proferir, sendo certo que o acórdão recorrido também deu por apurado que a sentença apenas foi depositada na secretaria em 26 de Setembro de 2002, embora ostentando a data de 15 de Julho de 2002. Ora, a questão que se coloca é a de saber se representa, ou não, restrição intolerável do direito de recurso a imposição do dever de apresentação da motivação do recurso penal nos 15 dias subsequentes à leitura (na íntegra ou por súmula) da mesma, mas antes de os recorrentes terem acesso ao texto escrito da sentença recorrida.
É a primeira vez que a conformidade constitucional desta específica dimensão normativa vem colocada ao Tribunal Constitucional, mas este já foi confrontado com situações similares, tendo, a esse propósito, consolidado orientação jurisprudência transponível para o presente caso.
Assim, no Acórdão n.º 75/99 (Diário da República, II Série, n.º 80, de 6 de Abril de 1999, pág. 5021; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 484, pág. 66; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 42.º vol., pág. 361), num caso em que a sentença havia sido depositada na secretaria na mesma data em que fora proferida na presença do arguido e do seu defensor, e em que a defesa sustentava que o prazo para interposição do recurso se devia contar apenas a partir da posterior notificação postal da mesma sentença, o Tribunal Constitucional, face ainda à redacção primitiva do n.º 1 do artigo
411.º do CPP (“O prazo para interposição do recurso é de dez dias e conta-se a partir da notificação da decisão ou do depósito da sentença na secretaria, ou, tratando-se de decisão oral reproduzida em acta, da data em que tiver sido proferida, se o interessado estiver ou dever considerar-se presente”), ponderou:
“Como se vê, a hipótese da norma recorta três momentos a partir dos quais se pode dar início à contagem do prazo para interposição de recurso:
1 & 8722; o da notificação da decisão;
2 & 8722; o do depósito da sentença na secretaria;
3 & 8722; o da data em que tiver sido proferida a decisão, no caso de se tratar de decisão oral reproduzida em acta. Estes momentos podem diferir (embora os dois primeiros fossem no caso em apreço coincidentes), dando origem a diferentes datas de esgotamento do prazo para interposição do recurso. No presente caso, o recorrente entende que, sob pena de inconstitucionalidade, o prazo em questão se deve contar da data da notificação da decisão através de remessa de cópia integral (15 de Junho de 1993), por só esta notificação permitir o conhecimento do teor completo da decisão. Isto, enquanto as instâncias decidiram que tal prazo se conta a partir da data do depósito da sentença na secretaria (9 de Junho de 1993), coincidente, in casu, com o próprio dia em que foi proferida a decisão, na presença do arguido e do seu defensor. Naturalmente, a decisão da questão de aplicação do direito tal como feita pelas instâncias não é sindicável por este Tribunal, excepto no tocante à sua conformidade constitucional. Ora, a interpretação adoptada foi a de que os três momentos atrás referidos se resolviam numa dicotomia & 8722; notificação presencial, nos termos da parte final do referido artigo 411.º (cf. também o n.º 4 do artigo 372.º do Código de Processo Penal) por um lado, depósito da decisão na secretaria por outro & 8722; dicotomia essa adoptada na decisão de 19 de Agosto e repetida na de 3 de Janeiro de 1994 do Supremo Tribunal de Justiça. Acontecendo normalmente que o momento do depósito da sentença na secretaria é & 8722; excepto nos limitados casos em que era possível efectuar o julgamento sem a presença do arguido (cf. artigo 334.º do Código de Processo Penal) & 8722; posterior ao da notificação da decisão ao arguido (que ocorre em audiência), em regra, portanto, o prazo iniciar-se-á apenas nesse dia (de depósito da decisão na secretaria) & 8722; acontecendo, aliás, que, no caso em apreço, a notificação da decisão ao arguido e o depósito da sentença na secretaria ocorreram no mesmo dia. E, do mesmo modo, segundo essa interpretação, tal como a notificação presencial anterior não fará logo iniciar o prazo, a ulterior notificação escrita não o faz iniciar-se em momento posterior. Como se escreve na referida decisão de 3 de Janeiro de 1994 do Supremo Tribunal de Justiça:
«A dualidade de situações para a contagem do prazo de interposição do recurso prende-se, como é sabido, com a possibilidade da consulta integral do texto da sentença, dado que a simples audição da leitura da decisão pode não ser suficiente para se aquilatar da conveniência em recorrer, tanto mais que tal leitura, por vezes, não é completa. Por isso, o depósito da sentença na secretaria é um acto processual que passou a ter a virtualidade de permitir ao interessado a consulta global do texto da decisão, e que tem como efeito implicar o início da contagem do prazo para a interposição do recurso, sem permitir o alongamento do referido prazo em função de uma posterior e eventual notificação que possa vir a ser feita ao arguido.»
(Itálico nosso).
10. Não interessa, nesta sede, curar de saber se esta interpretação tem sido seguida pelos tribunais nemine discrepante. Seja-o ou não, a única questão curial em sede de controlo da constitucionalidade da regra fixada no n.º 1 do artigo 411.º do Código de Processo Penal, assim interpretada, é a de saber se a Constituição impõe necessariamente solução diversa desta interpretação, seguida na decisão recorrida. E, claramente, não impõe: além do conhecimento pessoal directo da sentença (cf. n.º 3 do artigo 372.º do Código de Processo Penal) o arguido tem, a partir do momento do depósito da sentença na secretaria, a possibilidade de aceder ao seu texto integral, só a partir desse momento se contando um prazo de dez dias para interpor recurso. Isto, mesmo antes de uma qualquer notificação escrita do teor completo da decisão que possa vir posteriormente a ser feita ao arguido. Além do mais, recorde-se que, face a um qualquer justo impedimento (n.ºs 2 e 3 do artigo 107.º do Código de Processo Penal), é ainda possível a este dilatar o prazo. Trata-se, portanto, de regime que assegura perfeitamente as garantias de defesa do arguido e que é compatível com as exigências constitucionais que foram assim formuladas no Acórdão n.º 61/88, publicado no Diário da República, II Série, de
20 Agosto de 1998 (e reiteradas, designadamente, nos Acórdãos n.ºs 322/93 e
41/96, o primeiro publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Outubro de 1993, e o segundo ainda inédito):
«A ideia geral que pode formular-se a este respeito – a ideia geral, em suma, por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio da defesa, para além das consignadas nos n.ºs 2 e seguintes do artigo
32.º & 8722; será a de que o processo criminal há-de ser um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido.»
A situação do arguido no presente caso, aliás, corresponde à normal aplicação das normas em causa, e não a uma sua hipótese-limite, nem sequer tendo o depósito da sentença na secretaria ocorrido posteriormente ao momento em que a decisão foi notificada ao arguido, em audiência – pelo que o arguido, já notificado, ficou logo em posição de poder conhecer integralmente a sentença, depositada na secretaria. Como se referiu, não existe fundamento para concluir que este sistema de início de contagem do prazo de recurso, resultante do artigo 411.º, n.º 1, é estruturalmente inconstitucional, por implicar, na expressão do referido Acórdão n.º 61/88, «um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa».”
Como resulta do teor deste Acórdão, decisiva para a emissão de juízo de não inconstitucionalidade foi a consideração de que, coincidindo a data da leitura da sentença com a do seu depósito na secretaria, a partir desse momento o arguido ficou habilitado a deduzir a correspondente impugnação, pois com esse depósito se lhe assegurou a possibilidade de consulta integral do texto da sentença, sendo certo que, como se expressou o próprio Supremo Tribunal de Justiça, na recorrida decisão de 3 de Janeiro de 1994, “a simples audição da leitura da decisão pode não ser suficiente para se aquilatar da conveniência em recorrer, tanto mais que tal leitura, por vezes, não é completa”. A situação ora sub judice é diversa, porque o depósito da sentença só ocorreu 73 dias após a sua leitura e porque não está em causa a mera decisão de interpor, ou não, recurso da sentença, mas antes o cumprimento do ónus de apresentar a respectiva motivação.
Mais próxima do presente caso é a situação sobre que recaiu o Acórdão n.º 363/2000 (Diário da República, II Série, n.º 262, de 13 de Novembro de 2000, pág. 18 404; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 499, pág.
31; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47.º vol., pág. 653), que julgou inconstitucionais, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, os artigos 107.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e 146.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (quando aplicado subsidiariamente em processo penal), quando interpretados no sentido de que a impossibilidade de consulta das actas do julgamento (quando tenha sido requerida a documentação em acta das declarações orais prestadas em audiência, nos termos do artigo 364.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), por as mesmas não estarem ainda disponíveis, não constitui justo impedimento para a interposição do recurso da decisão final condenatória em processo penal. Ponderou-se nesse acórdão:
“A questão de constitucionalidade que, nesta parte, vem colocada à consideração do Tribunal Constitucional, pode, assim, enunciar-se nos seguintes termos: é inconstitucional, designadamente por violação do artigo 32. º, n.º 1, da Constituição, a interpretação normativa dos artigos 107. º, n.º 2, do Código de Processo Penal e 146.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (aqui aplicado subsidiariamente), segundo a qual a impossibilidade de consulta das actas do julgamento (quando tenha sido requerida a documentação em acta das declarações orais prestadas em audiência, nos termos do artigo 364.º, n.º 1, do CPP), por as mesmas não estarem ainda disponíveis, não constitui justo impedimento para a interposição do recurso da decisão final condenatória em processo penal? Vejamos.
7.2. O artigo 32.º, n.º 1, da Constituição dispõe que «O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso». Ponderando sobre o sentido e alcance deste preceito, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª edição revista e ampliada, I vol., Coimbra, Coimbra Editora, pág. 214):
«A fórmula do n.º 1 é, sobretudo, uma expressão condensada de todas as normas restantes deste artigo, que todas elas são, em última análise, garantias de defesa. Todavia, este preceito introdutório serve também de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal. “Todas as garantias de defesa” engloba indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação.»
Em sentido semelhante se tem pronunciado igualmente o Tribunal Constitucional. Nesse sentido, escreveu-se, por exemplo, no Acórdão n.º 61/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol., pág. 621):
«Esta cláusula constitucional apresenta-se com um cunho “reassuntivo” e
“residual” & 8722; relativamente às concretizações que já recebe nos números seguintes do mesmo artigo & 8722; e, na sua abertura, acaba por revestir-se, também ela, de um carácter acentuadamente “programático”. Mas, na medida em que se proclama aí o próprio princípio da defesa, e portanto indubitavelmente se apela para um núcleo essencial deste, não deixa a mesma cláusula constitucional de conter “um eminente conteúdo normativo imediato a que se pode recorrer directamente, em casos limite, para inconstitucionalizar certos preceitos da lei ordinária” (cf. Figueiredo Dias, A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os Tribunais, pág.
51; e Acórdão n.º 164 da Comissão Constitucional, Apêndice ao Diário da República, I série, de 31 de Dezembro de 1979). A ideia geral que pode formular-se a este respeito & 8722; a ideia geral, em suma, por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio da defesa, para além das consignadas nos n.ºs 2 e seguintes do artigo
32.º & 8722; será a de que o processo criminal há-de configurar-se como um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido
(assim, basicamente, cf. Acórdão n.º 337/86, deste Tribunal, Diário da República, I Série, de 30 de Dezembro de 1986).»
7.3. Pois bem, em face do que antecede, cremos que a resposta a dar
à questão de saber se a interpretação normativa dos artigos 107.º, n.º 2, do CPP e 146.º, n.º 1, do CPC por que optou a decisão recorrida é ou não inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, depende da resposta a dar a duas outras questões: a primeira é a de saber se o acesso às actas em que se encontram documentadas as declarações prestadas oralmente em audiência constitui ou não um elemento essencial à preparação da defesa do arguido, designadamente à elaboração do recurso em matéria de facto; a segunda consiste em saber se contra a atribuição desse direito processual (o direito a consultar as actas da audiência para efeitos de preparação do recurso, designadamente quando tenha sido requerida a documentação da prova) não existirá uma justificação racional suficiente em função de outros interesses constitucionalmente garantidos.
7.3.1. Quanto à primeira questão, pensamos que a resposta a dar é positiva; isto é, o acesso às actas em que se encontram documentadas as declarações prestadas oralmente em audiência constitui um elemento importante para a preparação da defesa do arguido, concretamente para a elaboração da alegação do recurso. A documentação da prova produzida em audiência visa, fundamentalmente, permitir o recurso em matéria de facto. Na realidade, não estando o juiz ad quem presente na audiência realizada em primeira instância, só poderá vir a julgar da bondade do decidido em matéria de facto se puder ter acesso à prova aí produzida, o que só é evidentemente possível através do seu registo. Pois bem, constituindo a acta da audiência (em que se encontra registada toda a prova aí produzida) o suporte fundamental da decisão que o tribunal de recurso virá a tomar em matéria de facto, parece-nos evidente que, só por isso, ela constitui igualmente um elemento essencial para que o arguido (ou o seu defensor) possam preparar a defesa. O acesso à acta da audiência nestas hipóteses, num momento prévio à elaboração da alegação de recurso, não só pode constituir um elemento essencial para que o arguido decida o sentido em que deve orientar a sua defesa como, fundamentalmente, permitirá sempre uma muito mais rigorosa e completa preparação da alegação de recurso. Com o acesso à acta a alegação de recurso pode certamente ganhar em rigor e consistência e, nessa medida, em qualidade. Não vale, por isso, o argumento de que se socorre a decisão recorrida no sentido de que o acesso por parte do arguido à acta da audiência não é essencial à preparação da sua defesa, uma vez que não há aí nada que lhe seja desconhecido, já que participou na audiência. Parece-nos, de facto, evidente que as condições de elaboração da alegação do recurso em matéria de facto são substancialmente diferentes se o arguido (ou o seu defensor) o puder fazer tendo acesso à acta em que se encontram registadas as declarações orais feitas em audiência, do que se a tiver de a elaborar em função de «notas» que tenha tirado acerca do que foi dito nessa mesma audiência ou em função do que a sua «boa memória» lhe permita ter registado. Em suma: julgamos, pois, ser essencial à preparação da alegação de recurso que o arguido e o seu representante possam dispor dos mesmos elementos & 8722; entre os quais assumirá particular importância, na hipótese de haver recurso em matéria de facto, a acta da audiência & 8722; de que o tribunal ad quem depois disporá para decidir.
7.3.2. Demonstrada a importância para o arguido do acesso à acta da audiência em tempo de a poder utilizar para efeitos de preparação da sua defesa, resta saber se à atribuição desse direito processual não se opõem outros interesses constitucionalmente garantidos que no caso devam prevalecer. Cremos que não. Contra a interpretação que reconhece ao arguido o direito processual de aceder à acta da audiência em tempo de poder preparar a alegação de recurso poder-se-ia invocar que ela põe em causa a desejada celeridade processual e, nessa medida, a realização da justiça em tempo razoável, uma vez que dela pode resultar um alargamento do prazo para apresentação da alegação. O argumento, porém, não é decisivo.
É que, sendo certo que o recurso só pode subir ao tribunal superior uma vez estando pronta a acta da audiência em que se encontra registada a prova aí produzida, então o único atraso para o processo imputável a esta interpretação
é, no limite, o do prazo para a apresentação da alegação de recurso, o que não
é, manifestamente, significativo. Não há, pois, um interesse contrário significativo que possa ser posto em causa com esta interpretação e que, nessa medida, se oponha ao interesse em que se traduz o assegurar ao arguido todas as garantias de defesa.
7.4. Em suma: cremos que a interpretação normativa dos artigos 107.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e 146.º, n.º 1, do Código de Processo Civil por que optou a decisão recorrida, segundo a qual a impossibilidade de consulta das actas do julgamento (quando tenha sido requerida a documentação em acta das declarações orais prestadas em audiência, nos termos do artigo 364.º, n.º 1, do CPP), por as mesmas não estarem ainda disponíveis, não constitui justo impedimento para a interposição do recurso da decisão final condenatória em processo penal é efectivamente inconstitucional, designadamente por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, porquanto traduz um «diminuição inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável» (para usarmos as palavras do Acórdão n.º 61/88), das garantias de defesa do arguido, dado que para essa diminuição não se encontra uma justificação racional suficiente em função de outros interesses constitucionalmente garantidos.”
Particularmente relevante se revela o Acórdão n.º
148/2001 (Diário da República, II Série, n.º 107, de 9 de Maio de 2001, pág.
7955; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 49.º vol., pág. 585), que julgou inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, “a norma do artigo
411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de determinar a contagem do prazo de interposição do recurso da data do depósito da sentença manuscrita de modo ilegível na secretaria, e não da data em que o defensor do arguido é notificado da cópia da sentença dactilografada, tempestivamente requerida”. Juízo esse que se baseou na seguinte argumentação:
“5. O direito ao recurso implica, naturalmente, que o recorrente tenha a possibilidade de analisar e avaliar os fundamentos da decisão recorrida, com vista ao exercício consciente, fundado e eficaz do seu direito. Como o Tribunal Constitucional sublinhou no Acórdão n.º 384/98 (Diário da República, II Série, de 30 de Novembro de 1998), a interposição de qualquer recurso pressupõe a plena estabilidade e inteligibilidade da decisão recorrida.
O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 444/91 (Diário da República, II Série, de 2 de Abril de 1992), procedeu à apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 259.º do Código de Processo Civil, quando interpretada no sentido de atribuir ao juiz, e não ao notificado, o poder de avaliar e decidir sobre a legibilidade ou ilegibilidade dos textos por si manuscritos. Nesse aresto, o Tribunal considerou que o direito de acesso aos tribunais tem por corolário o direito que assiste às partes de um processo judicial de conhecerem efectivamente as decisões que lhes digam respeito. O Tribunal Constitucional sublinhou também que o preceito então em apreciação só não será uma concretização constitucionalmente claudicante do direito à informação efectiva das partes sobre o conteúdo dos despachos, sentenças e acórdãos (...) se ele for interpretado como impondo aos tribunais um dever de enviar ou de entregar às partes cópias ou fotocópias facilmente legíveis das decisões jurisdicionais – legibilidade essa que há-de ser avaliada na óptica ou na perspectiva daquelas. Neste aspecto, o Tribunal Constitucional estabeleceu o paralelo com o poder que o juiz tem de exigir às partes que entreguem cópia legível dos documentos por estas apresentados durante o processo, nos termos do artigo 541.º do Código de Processo Civil. Da jurisprudência a que acaba de se fazer referência resulta que o Tribunal Constitucional entende que a ilegibilidade da sentença é invocável basicamente a partir da perspectiva do destinatário da mesma, exceptuando, obviamente, os casos em que o pedido seja notoriamente infundado. Assim, não é absolutamente essencial para a presente questão de constitucionalidade qualquer discussão acerca da legibilidade do texto da decisão em questão. A pertinência da presente questão de constitucionalidade resulta, basicamente, de que a ilegibilidade da sentença foi invocada nos autos, o Tribunal da Relação de Lisboa não a contestou, o ora recorrido (Ministério Público) reconheceu-a nas contra-alegações apresentadas e a cópia da sentença em questão, junta a fls. 9 e seguintes, não infirma a posição sustentada pelo recorrente. Há, pois, como que uma aquisição no processo da efectiva ilegibilidade da sentença, que dispensa o Tribunal de analisar tal questão. A partir deste pressuposto, deverá apreciar-se a conformidade à Constituição da norma contida no artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de determinar a contagem do prazo de interposição de recurso da data do depósito da sentença na secretaria (e não da data em que ao arguido é enviada cópia dactilografada – legível – da mesma), nos casos em que a decisão é ilegível.
6. O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 75/99 (Diário da República, II Série, de 6 de Abril de 1999), apreciou a conformidade à Constituição da norma do artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, segundo a qual o prazo para a interposição do recurso se conta a partir da data do depósito da sentença na secretaria, coincidente, no caso então decidido, com a data em que foi proferida a decisão na presença do arguido e do seu defensor. Nesse aresto, o Tribunal Constitucional considerou que o arguido tem, a partir do momento do depósito da sentença na secretaria, a possibilidade de aceder ao seu texto integral, só a partir desse momento se contando um prazo de 10 dias para interpor o recurso. O Tribunal Constitucional, sublinhando subsequentemente que o prazo ainda pode ser dilatado face a um qualquer justo impedimento, concluiu que o regime então em apreciação assegura perfeitamente as garantias de defesa do arguido e que é compatível com as exigências constitucionais. Em consequência, o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma apreciada.
7. O caso dos autos apresenta, porém, e como se salientou, uma configuração específica que o torna substancialmente diferente do caso decidido no processo em que foi proferido o Acórdão n.º 75/99. Com efeito, no presente processo, a decisão proferida e depositada na secretaria, da qual o ora recorrente pretendeu interpor recurso, requerendo para o efeito cópia dactilografada, foi considerada ilegível pelo recorrente e pelo Ministério Público, sendo a sua ilegibilidade um dado adquirido no processo, como foi referido. Deste modo, o respectivo depósito na secretaria não assegura, por si só, o acesso ao seu conteúdo. Na verdade, se o texto manuscrito da decisão é ilegível, qualquer consulta que se realize será manifestamente ineficaz e inconsequente.
Assim, a jurisprudência constante do Acórdão n.º 75/99 não tem aplicação nos presentes autos, ou antes, a aplicação no caso em apreciação dos fundamentos do Acórdão n.º 75/99 leva a uma conclusão diferente da que se tirou nesse aresto.
8. O Tribunal Constitucional, no já mencionado Acórdão n.º 444/91, entendeu que a norma então em apreciação, interpretada à luz do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, deve ser, pois, entendida como conferindo aos sujeitos a quem são notificadas decisões judiciais o direito de exigir o envio ou a entrega de cópias dactilografadas, quando, justificadamente, entenderem que os despachos, sentenças ou acórdãos manuscritos são ilegíveis ou de difícil leitura.
Ora, o reconhecimento do direito a exigir a entrega de cópia legível da decisão repercute-se, inevitavelmente, na determinação do termo a quo do prazo de interposição de recurso. Na verdade, a finalidade de tal direito, ou seja, a possibilidade de o arguido ter acesso ao conteúdo integral das decisões que o afectam consubstancia um dos requisitos necessários para que a contagem do prazo de recurso se possa legitimamente iniciar a partir de uma determinada data. Pode então afirmar-se que o direito ao recurso, pressupondo um total conhecimento do teor da decisão recorrida (ou a possibilidade de o obter), impõe que o prazo para a interposição do recurso só se conte a partir do momento em que o recorrente tenha a possibilidade efectiva de apreender o texto integral da decisão que pretende impugnar.
No caso em apreciação, tal momento apenas se verificou quando o recorrente foi notificado do texto da sentença, sob a forma dactilografada da decisão (uma vez que a versão manuscrita foi considerada no processo como ilegível). Foi só a partir desse momento que o direito ao recurso pôde ser eficazmente exercido pelo arguido.
A contagem do prazo de recurso em momento anterior consubstancia, pois, uma limitação injustificada do direito ao recurso, uma vez que implica o decurso do prazo numa fase em que o sujeito processual ainda não sabe se quer recorrer (se tem fundamento para tal), precisamente porque não pode (por causa que não lhe é imputável) analisar o texto da decisão que o afecta. A dimensão normativa que determina a contagem do prazo de recurso a partir do depósito da sentença ilegível na secretaria é, portanto, inconstitucional, por violação do princípio do acesso ao direito e aos tribunais e das garantias de defesa, nomeadamente o direito ao recurso, consagrados nos artigos 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição (no sentido desta orientação, o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 444/91, julgou inconstitucional a norma então apreciada, por violação do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição; também no Acórdão n.º 384/98, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a norma que exigia a interposição do recurso numa fase em que a parte, por falta de conhecimento do teor integral da sentença, desconhecia se pretendia ou não impugnar a decisão; e, no Acórdão n.º 579/99 – Diário da República, II Série, de 21 de Fevereiro de
2000 & 8722;, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a norma do Estatuto dos Magistrados Judiciais que determinava a contagem do prazo de impugnação de um acto administrativo a partir da sua publicação, e não da sua notificação, considerando que o conhecimento do acto através da sua notificação é essencial para o decurso do respectivo prazo de impugnação).
9. Refira-se, por outro lado, e ao contrário do que se sustenta na decisão agora sob recurso, que a mera leitura da sentença na presença do arguido e do seu defensor oficioso no mínimo pode não permitir uma completa apreensão do teor da sentença para efeito de motivação do recurso. Com efeito, a interposição de um recurso pressupõe uma análise minuciosa da decisão que se pretende impugnar, análise essa que não é de todo possível realizar por mero apelo à memória da leitura do texto da sentença.
10. Por último, e mais uma vez ao contrário do que sugere o acórdão recorrido, também não se considera razoável a exigência de interposição de recurso por declaração na acta, nos termos do artigo 411.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal, apresentando o defensor do arguido, posteriormente, a respectiva motivação se efectivamente vier a decidir impugnar a sentença. Na verdade, antes da análise do teor da decisão, o sujeito processual não pode formar convenientemente a sua decisão de recorrer, não lhe sendo exigível a prática de actos cuja utilidade não é possível avaliar no momento da sua prática.
Como se mencionou no já referido Acórdão n.º 384/98:
«A tutela constitucional do direito ao recurso contencioso, decorrente da garantia de acesso ao direito e aos tribunais, na medida em que postula o exercício livre e esclarecido de tal direito (como forma de salvaguardar materialmente os interesses inerentes), não admite a consagração, no plano infraconstitucional, de exigências que, não se confundindo com o exercício do direito dentro de um prazo pré-definido, consubstanciem antes, e tão-somente, condicionantes de tal exercício desprovidas de fundamento racional e sem qualquer conteúdo útil. Com efeito, devendo a interposição de qualquer recurso contencioso pressupor a plena estabilidade e inteligibilidade da decisão de que se pretende recorrer, não é constitucionalmente admissível o estabelecimento de ónus desinseridos da teleologia própria da tramitação processual e cuja consagração, nessa medida, não prossegue quaisquer interesses dignos de tutela. Ora, a impugnação de uma decisão pressupõe o conhecimento integral dos respectivos fundamentos. Enquanto o recorrente não tiver acesso ao raciocínio argumentativo que subjaz à decisão tomada, não pode formar a sua vontade de recorrer, porque não dispõe dos elementos que lhe permitem avaliar a justeza da decisão. Nessa medida, e tendo presente a eficácia persuasiva intraprocessual da fundamentação das decisões, pode afirmar-se que, antes de se dar a conhecer os fundamentos decisórios, não pode haver, porque do ponto de vista da racionalidade comunicativa não é concebível, uma legítima intenção de recorrer. Assim sendo, a exigência da interposição de um recurso num momento em que se desconhecem os fundamentos da decisão a impugnar (num momento em que, dir-se-ia, ainda não se pode saber se o recorrente efectivamente quer recorrer) não é equiparável à necessidade de interposição do recurso dentro de um prazo razoável (decorrente da celeridade processual e da segurança e certeza jurídicas). Diferentemente, tal exigência traduz-se antes na imposição de uma formalidade limitadora do efectivo exercício do direito ao recurso e absolutamente alheia ao que possa ser a prossecução de um interesse racional e teleologicamente justificado. Nessa medida, aquela exigência afecta o núcleo fundamental do direito ao recurso, pelo que a norma que a consagra não é compatível com a tutela constitucional do acesso ao direito e aos tribunais (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição).»
11. Conclui-se, em face do que se disse, que o direito ao recurso constitucionalmente consagrado impõe a total inteligibilidade da decisão que o arguido pretende impugnar, pelo que será inconstitucional, por violação dessa garantia de defesa, a dimensão normativa que determina a contagem do prazo de interposição de recurso da data do depósito da sentença ilegível na secretaria, e não da data em que é entregue ao defensor do arguido cópia legível da mesma, tempestivamente requerida.”
A mesma norma, na assinalada dimensão, viria a ser julgada inconstitucional pelo Acórdão n.º 202/2001 (Diário da República, II Série, n.º 148, de 28 de Junho de 2001, pág. 10 704; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 50.º vol., pág. 357), que remeteu para a fundamentação do Acórdão n.º 148/2001.
Mais recentemente, o Acórdão n.º 87/2003 (Diário da República, II Série, n.º 119, de 23 de Maio de 2003, pág. 7876) julgou inconstitucional, por violação do disposto nos n.ºs 1 e 4 do artigo 20.º e do n.º 1 do artigo 32.º da CRP, a norma constante do n.º 1 do artigo 411.º do CPP, na interpretação segundo a qual o prazo para interpor recurso da sentença proferida em conferência, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 4 do artigo
419.º do mesmo diploma legal, deve ser contado a partir do momento do seu depósito na secretaria e não da respectiva notificação, quando nem ao arguido nem ao seu defensor foi dado prévio conhecimento desse acto judicial. Para alcançar esta conclusão, o referido acórdão desenvolveu a seguinte argumentação:
“1. & 8722; De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 411.º do CPP – preceito integrado na disciplina de tramitação unitária dos recursos ordinários nesta
área processual –, «o prazo para interposição do recurso é de 15 dias e conta-se a partir da notificação da decisão ou, tratando-se de sentença, do respectivo depósito na secretaria (...)». No caso da decisão oral reproduzida em acta
(acrescenta-se na última parte do normativo), «o prazo conta-se a partir da data em que tiver sido proferida, se o interessado estiver ou dever considerar-se presente». Enunciam-se, por conseguinte, três momentos distintos a partir dos quais se inicia a contagem do prazo para recorrer, os quais conduzem, naturalmente, a outras tantas datas diferenciadas de esgotamento da abertura dessa via: o momento da notificação da decisão, o do depósito da sentença na secretaria, o da data em que tiver sido proferida a decisão, no caso de se tratar de decisão oral reproduzida em acta. O regime assim estabelecido subentende a exigência de comunicar o respectivo acto processual, o que, em princípio, é feito mediante o expediente da notificação, pessoal ou por um dos meios contemplados no artigo 113.º do CPP. No que respeita ao depósito – que, por regra, deverá ocorrer logo após a leitura da sentença (cf. o n.º 5 do artigo 372.º do mesmo Código) –, ele passou a ter, como acto processual, a virtualidade de permitir ao interessado a consulta global do texto da decisão – iniciando-se a contagem do prazo para recorrer a partir do momento em que se efectiva esse depósito –, o que harmoniza pragmaticamente os ditames da celeridade processual – o ónus do depósito acelera
(em princípio) a fixação do conteúdo decisório – com a lógica inerente a um due process of law, um fair process, onde se respeitam as garantias de defesa próprias do processo criminal e, nomeadamente, a que implica o exercício livre e esclarecido do direito a recorrer, que só é proporcionado pelo conhecimento dos fundamentos da decisão. Ora, o Supremo Tribunal de Justiça aplicou a norma em sindicância no sentido de que o prazo de interposição do recurso se conta a partir da data do depósito na secretaria e não da notificação, mesmo que não tenha havido audiência de julgamento, como foi o caso, onde o acórdão se tirou em conferência, não tendo sequer o recorrente ou o seu mandatário que ser convocados para a dita conferência (como se retira do disposto nos artigos 417.º, n.º 3, alínea c), e n.º 4, alínea b), 419.º, n.º 4, alínea a), e 421.º, n.º 2, todos do Código em referência). E rejeitou o recurso do acórdão da Relação, considerando-o fora de prazo, com base no disposto no n.º 2 do artigo 414.º e do n.º 1 do artigo 420.º, ambos do CPP.
2. & 8722; (...)
3. & 8722; A decisão do Tribunal da Relação de Lisboa foi proferida em conferência, nos termos previstos no artigo 419.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal e não em audiência com prévia convocação, para além de outros intervenientes, do defensor, de acordo com o n.º 2 do artigo 421.º do mesmo diploma.
Como se destacou no Acórdão deste Tribunal n.º 148/2001, publicado no Diário da República, II Série, de 9 de Maio de 2001, o direito ao recurso implica, naturalmente, que o recorrente tenha a possibilidade de analisar e avaliar os fundamentos da decisão recorrida, com vista ao exercício consciente, fundado e eficaz desse seu direito.
E, se é verdade, consoante já tem sido várias vezes afirmado na jurisprudência constitucional (v. g., no Acórdão n.º 266/93, in Diário citado, II Série, de 10 de Agosto de 1993), gozar o legislador ordinário de ampla liberdade de conformação na fixação dos prazos relativos aos recursos nos diversos ramos processuais, também é certo que se tem considerado necessário que o regime decorrente dessa liberdade conformadora não signifique a imposição de ónus de tal forma injustificados ou desproporcionados que acabem por provocar lesão da garantia de acesso à justiça e aos tribunais mediante um processo equitativo (n.ºs 1 e 4 do artigo 20.º da CRP) ou, mais especificamente, no que toca ao processo penal, das garantias de defesa afirmadas no n.º 1 do artigo 32.º da CRP (assim, o recente Acórdão n.º 260/2002, publicado no mesmo jornal oficial, II Série, de 24 de Julho de 2002, reiterando, aliás, a ponderação levada a efeito naquele aresto de 1993).
Nesse Acórdão n.º 260/2002, ao considerar-se uma interpretação normativa do n.º 3 do artigo 411.º citado, no sentido de rejeição do recurso sempre que a motivação não acompanhe o requerimento do recurso, ainda que a sua falta decorra de lapso objectivamente desculpável e seja sanada antes de decorrido o prazo abstractamente fixado para recorrer, previamente à subida ao tribunal de recurso, entendeu-se que semelhante interpretação não se mostra compatível nem com a regra geral de proporcionalidade, decorrente do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da CRP, nem com a garantia constitucional do direito de defesa do arguido, constante do n.º 1 do artigo
32.º do mesmo texto.
Ou seja, as exigências formais e procedimentais que integram a mecânica própria dos recursos hão-de compatibilizar-se, nomeadamente em sede processual criminal, com as coordenadas constitucionais que a essa matriz respeitam, não sendo de sufragar – como se escreveu no Acórdão n.º 66/2001, ainda inédito – uma interpretação normativa assente em rigidez formal que, desrazoavelmente, postergue o direito de acesso à justiça e aos tribunais e as garantias constitucionais consagradas para o processo criminal.
4. & 8722; Não compete ao Tribunal Constitucional, como é evidente, sindicar a decisão recorrida em parâmetros que não sejam os resultantes da subsunção ao concreto caso de norma aplicada ou interpretada de modo constitucionalmente não conforme. Mas, nesta leitura – única que se integra no seu poder cognoscitivo, insiste-se
– sobressai uma vertente que não se compadece com os parâmetros constitucionais exigidos pelo princípio das garantias de defesa que configuram o processo criminal como um due process of law. Na verdade, e como observa, nas suas alegações, o Ministério Público, nem o recorrente nem o seu defensor tinham sequer conhecimento da data de realização da conferência, que não lhes foi comunicada. E, se pode objectar-se que sobre eles impendia o ónus de admitir a possibilidade legal de o recurso ser julgado nessa sede, já não lhes é exigível o controlo cego do hipotético dia da tomada de decisão por parte do Tribunal da Relação. Uma interpretação, como a acolhida na decisão recorrida, da norma do n.º 1 do artigo 411.º do CPP, para além da imprevisibilidade que representa – e assim se dá resposta afirmativa à ainda pendente questão de tempestividade da suscitação –, integra violação da garantia de acesso à justiça e aos tribunais e do princípio das garantias de defesa do processo criminal, com desrespeito pelo disposto nos n.ºs 1 e 4 do artigo 20.º e do n.º 1 do artigo 32.º, ambos da Constituição.”
Exposta a jurisprudência pertinente do Tribunal Constitucional (que em nada é contrariada pelo Acórdão n.º 260/2002, citado no acórdão recorrido, que “julgou inconstitucional a norma contida no n.º 3 do artigo 411.º do CPP, quando entendida no sentido de que o recurso é rejeitado sempre que a motivação não acompanhe o requerimento de interposição de recurso, ainda que a sua falta decorra de lapso objectivamente desculpável, e seja sanada antes de decorrido o prazo abstractamente fixado para recorrer e antes da subida ao tribunal de recurso, por violação dos artigos 2.º e 32.º, n.º 1, da CRP”), surge como óbvia a resposta afirmativa à questão de inconstitucionalidade colocada no presente recurso. Retomando formulações do Acórdão n.º 148/2001, há que reconhecer que “a mera leitura da sentença na presença do arguido e do seu defensor oficioso no mínimo pode não permitir uma completa apreensão do teor da sentença para efeito de motivação do recurso”, pois “a interposição de um recurso pressupõe uma análise minuciosa da decisão que se pretende impugnar, análise essa que não é de todo possível realizar por mero apelo à memória da leitura do texto da sentença”, antes exige o acesso ao texto da sentença, o que apenas se torna possível com o seu depósito na secretaria. Impor ao arguido a apresentação da motivação do recurso da sentença sem ter acesso ao texto definitivo desta constitui um constrangimento intolerável do direito de acesso aos tribunais e especificamente do direito de recurso penal, violador dos artigos 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucional, por violação dos artigos
20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 411.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, interpretada no sentido de que o prazo de 15 dias nela fixado para apresentação da motivação de recurso interposto por declaração na acta da audiência onde foi proferida a sentença se conta a partir da data dessa interposição, mesmo que a sentença só posteriormente haja sido depositada na secretaria; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 23 de Março de 2004.
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Silva Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos