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Proc. nº 41/2004
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A., impugnou, no Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Lisboa, “o acto de autoliquidação da taxa incidente sobre a comercialização de produtos de saúde, instituída pelo artigo 72.º da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril, relativo ao mês de Maio de 2002, no montante de € 15.921,93”, tendo, por sentença de 2 de Maio de 2003 do 4.º Juízo desse Tribunal, a impugnação sido julgada procedente. Nessa sentença, tendo o tributo em causa sido qualificado como verdadeiro imposto, que não como taxa, entendeu-se que o INFARMED não podia, através de norma regulamentar – como o era a sua Circular n.º 1/2000, de 10 de Maio de
2000 –, determinar a base de incidência desse imposto, concretizando essa base em termos inovatórios relativamente à lei que pretendia regulamentar, já que é diferente calcular a “taxa” sobre “o volume das vendas de cada produto, tendo por referência o respectivo preço de venda ao consumidor final” (como se expressa o n.º 3 do artigo 72.º da Lei n.º 3-B/2000) e calcular o valor da taxa sobre vendas efectuadas [pela entidade responsável pela colocação dos produtos no mercado nacional] a partir de 1 de Janeiro de 2000” (como resultaria da referida Circular). Sendo ilegais as normas regulamentares em causa, tal ilegalidade repercute-se sobre o acto com base nelas proferido, inquinando-o do vício de violação de lei, o que conduz à sua anulação. Desta sentença interpôs a Fazenda Pública recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, que, por acórdão de 4 de Junho de 2003 da sua Secção de Contencioso Tributário, lhe concedeu provimento, revogando a sentença recorrida e julgando improcedente a impugnação. Nesse acórdão, embora se rejeitasse a tese da recorrente no sentido de o tributo em causa ser classificado como taxa e antes se considerasse que o mesmo devia ser qualificado “como imposto ou, ao menos, como um tributo que, dada a sua natureza, há-de ter um tratamento constitucional semelhante ao dos impostos”, pelo que, nos termos do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), deve ser a lei a definir “a respectiva incidência, em termos da sua determinabilidade, assegurando aos interessados um suficiente grau de densificação”, entendeu-se que esta exigência de determinabilidade se mostrava, no caso, satisfeita. De seguida, considerou-se o seguinte:
Ora, o n° 3 do referido art. 72° dispõe que 'a taxa incide sobre o volume de vendas de cada produto, tendo por referência o respectivo preço de venda ao consumidor final ... e sendo o seu valor pago mensalmente com base nas declarações de vendas mensais, nos termos e com os elementos a definir pelo mesmo Instituto'. Assim, a incidência real concretiza-se 'no volume de vendas' de cada produto e o seu valor é pago mensalmente com base nas respectivas 'vendas mensais'. Certo que deve ter 'por referência, 'o preço de venda ao consumidor final' mas tal aparece apenas de modo subordinado, de um mero 'valor de referência limite'. Se se quisesse erigir como factor de incidência real o preço de venda ao consumidor final, a lei não se teria referido ao volume de vendas e às respectivas declarações de venda. Pelo que a dita circular e o impresso 'declaração de vendas' surgem como mero regulamento executivo e instrumental,
É deste acórdão que, pela A., vem interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro – doravante designada por LTC), pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade, por alegada violação do artigo 103.º, n.º 2, da CRP, da norma do artigo 72.º da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril, da norma regulamentar correspondente à denominada Circular n.º 1/2000 do INFARMED e da norma regulamentar correspondente à “Declaração de Vendas” estabelecida por Despacho do Conselho de Administração do INFARMED, de 28 de Abril de 2000, inconstitucionalidade essa suscitada na petição inicial da impugnação judicial e nas contra-alegações para o Supremo Tribunal Administrativo. A recorrente apresentou alegações, no termos das quais formulou as seguintes conclusões:
A. A denominada «taxa sobre comercialização de produtos de saúde» corresponde a um verdadeiro imposto, devendo como tal respeitar as exigências do princípio da legalidade em matéria de impostos, decorrentes do artigo 103.°, n.º 2, da CRP, designadamente, a respectiva criação, taxa e incidência deverão constar de lei formal. B. O n.º 3 do artigo 72.° da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril, que criou a «taxa sobre comercialização de produtos de saúde», é materialmente inconstitucional, uma vez que não define a base de incidência objectiva do imposto criado. C. O conceito geral de preço de venda ao consumidor final dos produtos de saúde, no qual se baseia a incidência objectiva do imposto em causa, não é passível de ser concretizado pelos respectivos sujeitos passivos, no momento de efectuar a autoliquidação do imposto, o que torna a sua base de incidência objectiva indeterminável. D. A redacção do n.º 3 do artigo 72.° da Lei n.º 3-B/2000 assentou no facto de o legislador, inspirado na taxa de comercialização de medicamentos, ter
«importado» o esquema de funcionamento desta última, sem se aperceber que, ao fazê-lo, estava a criar um imposto cuja base de incidência não é determinável pelos respectivos sujeitos passivos, dado não existir, no que respeita aos produtos de saúde, um regime de preços fixos que permita saber, a priori, o preço de venda ao consumidor final. E. A expressão «tendo por referência o preço de venda ao consumidor final» não surge de forma subordinada, como mero limite, no texto do n.º 3 do artigo 72.° da Lei n.º 3-B/2000, mas antes como a própria definição da base de incidência objectiva do imposto, já que o que se afirma é que esta última corresponde à aplicação da taxa estabelecida sobre o volume de vendas dos sujeitos passivos, calculado por referência, não ao preço por estes praticado, mas antes ao preço de venda ao consumidor final. F. A Circular n.º 1/2000 do INFARMED, bem como o modelo de «Declaração de Vendas» estabelecido por despacho do Conselho de Administração deste Instituto, são indirectamente ilegais e inconstitucionais, por violação do artigo 72.º, n.º
3, da Lei n.º 3-B/2000 e do princípio da legalidade em matéria tributária previsto no artigo 103.º, n.º 2, da CRP. G. Na medida em que o imposto criado pelo artigo 72.° da Lei n.º 3-B/2000 implica uma tributação sobre o rendimento de pessoas colectivas, e o n.º 3 do mesmo artigo sujeita os respectivos sujeitos passivos ao pagamento de um valor calculado por referência a um preço estabelecido e recebido por outras entidades que não aqueles sujeitos passivos, este último preceito é inconstitucional, por violação do imperativo resultante do n.º 2 do artigo
104.º da Constituição da República Portuguesa, que exige que a tributação das empresas incida fundamentalmente sobre o seu rendimento real.
A representante da Fazenda Pública, “em representação do INFARMED – Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento”, contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
1.ª – O tributo em questão configura um imposto, sendo que os seus elementos essenciais resultam com suficiente e adequado grau de concreção (sendo, nessa precisa medida, determinados ou, ao menos, determináveis), ou seja, com a densidade ou espessura normativas bastantes, directa e imediatamente da lei;
2.ª – O mesmo não enferma de qualquer inconstitucionalidade, porque criado pelo
órgão originariamente competente;
3.ª – A circular normativa e o modelo de declaração de vendas elaborados pelo INFARMED dão corpo a uma regulamentação de feição estritamente executiva, não se afastando, em nenhum ponto e qualquer detalhe, da moldura legal, correspondendo, assim, a uma sua concretização absolutamente secundum legem;
4.ª – O INFARMED não interferiu por qualquer forma no campo de incidência da taxa, que foi exclusivamente definida por lei;
5.ª – O campo de incidência da taxa é apenas e só o volume de vendas dos produtos por ela abrangidos, por parte dos obrigados ao seu pagamento, para os quais o preço de venda ao consumidor final é o preço a que os mesmos vendem os seus produtos àquele que lhos adquire, seja ele armazenista, distribuidor grossista ou consumidor final;
6.ª – É que, ao contrário do que a recorrente erradamente entende, se os sujeitos passivos da taxa fossem taxados sempre pelo valor de venda do produto ao consumidor final, estar-se-ia perante uma solução contrária a todo e qualquer dos mais elementares princípios constitucionais e legais de justiça tributária que o INFARMED igualmente tem de observar, visto que, numa tal situação, como os produtos em causa não têm preço fixado por lei, podendo cada agente económico praticar um preço diferente, os sujeitos passivos poderiam ser colocados na situação de pagar uma taxa cujo valor poderia ser bastante superior ao próprio benefício económico decorrente da colocação do produto no mercado, o que contraria tudo o que são princípios de justiça fiscal;
7.ª – Ao criar por lei da Assembleia da República a presente taxa, o Estado português não violou, de forma alguma, qualquer das suas obrigações, enquanto Estado membro da Comunidade Europeia, isto é, não criou qualquer disposição interna que contrariasse o disposto na legislação legitimamente emanada dos
órgãos comunitários competentes;
8.ª – Acresce que a interpretação e aplicação efectuada pelo INFARMED no que respeita à liquidação da referida taxa está correcta e tem fundamento legal, expressamente reconhecido e reiterado pelo legislador no artigo 58.º da Lei n.º
30-C/2000, de 29 de Dezembro, no artigo 55.º da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, e nos artigos 1.º, n.º 3, e 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 312/2002, de 20 de Dezembro, que constituem leis interpretativas do citado artigo 72.º da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril, e por isso se integram na lei interpretada
(artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil);
9.ª – O douto acórdão recorrido não merece qualquer censura.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II Fundamentação
2. A questão da constitucionalidade da norma do artigo 72.º, n.º 3, da Lei n.º
3-B/2000 foi recentemente apreciada no Acórdão n.º 127/2004 pelo plenário do Tribunal Constitucional, em recurso interposto pelo Ministério Público de sentença que recusara a sua aplicação com fundamento em inconstitucionalidade e em que figurava como requerida a ora recorrente, tendo sido julgado (embora com votos de vencido, entre os quais o da ora relatora) que tal norma não violava nem o princípio da legalidade tributária, nem o princípio da tributação do rendimento real das empresas, consagrados nos artigos 103.º, n.º 2, e 104.º, n.º
2, da CRP. Cumprindo acatar essa orientação, remete-se para a fundamentação desse Acórdão n.º 127/2004, cujo texto integral já se encontra disponível em
www.tribunalconstitucional.pt.
3. Relativamente às normas constantes da Circular n.º 1/2000 do INFARMED, bem como do modelo de «Declaração de Vendas» estabelecido por despacho do Conselho de Administração deste Instituto, às quais a recorrente imputa vícios de ilegalidade e de inconstitucionalidade, há que registar, por um lado, que não compete ao Tribunal Constitucional apreciar a questão da “ilegalidade”, por alegada violação do artigo 72.º, n.º 3, da Lei n.º 3-B/2000, nem tal questão caberia no âmbito de um recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, e, por outro lado, que a questão de “inconstitucionalidade indirecta” dependia do acolhimento de determinada interpretação daquele preceito legal, interpretação essa que não foi seguida nem no acórdão recorrido nem no citado Acórdão n.º 127/2004, pelo que tal questão perdeu, consequentemente, a sua base de sustentação. Neste sentido já decidiram os Acórdãos n.ºs 162/04,
165/04, 166/04 e 167/04.
III Decisão
4. Em face do exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 23 de Março de 2004
Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos