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Processo nº 546/2002
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 100, foi proferida a seguinte decisão sumária:
«1. A recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 7 de Maio de 2002, de fls. 84, pretendendo a apreciação da 'inconstitucionalidade (...) [da] interpretação do artigo 929º do Código de Processo Civil', por violação do 'disposto na alínea d) do artigo 9º e no artigo 53º da Constituição da República Portuguesa', conforme suscitado nas alegações do recurso interposto para o tribunal recorrido. O recurso foi admitido, em decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do artigo
76º da Lei nº 28/82).
2. O acórdão recorrido foi proferido no âmbito de uma providência cautelar não especificada, requerida pela ora recorrente contra B, que a requerente pretendia que fosse processada por apenso à acção de despejo – já finda – contra ela proposta pelo requerido, consistente em que (cfr. requerimento de fls. 2) fosse
'sustado o eventual pedido de execução do despejo do locado a que se referem os autos principais (...) até que o senhorio, aqui requerido, prove nos respectivos autos que efectuou à requerente o pagamento do montante relativo às benfeitorias necessárias, por esta levadas a cabo no locado' e que fosse 'reconhecido à requerente o legítimo exercício do direito de retenção sobre o imóvel locado enquanto não se verificar' tal pagamento. O despacho de fls. 20 determinou a desapensação da providência. Por sentença da Vara Mista de Coimbra, de 16 de Outubro de 2001, de fls. 57, foi negada a providência requerida. Entendeu o tribunal, em primeiro lugar, que não tinha sido invocada qualquer razão que permitisse concluir que o crédito por benfeitorias se encontrasse em perigo se o despejo fosse executado; e, em segundo lugar, que, consistindo a execução do despejo numa execução para entrega de coisa certa, regida pelos artigos 928º a 930º-A do Código de Processo Civil e
59º a 61º do Regime do Arrendamento Urbano, apenas admite como oposição os meios ali previstos, ou seja, respectivamente, a dedução de embargos e a sustação ou suspensão do despejo. Ora, não tendo a requerente pedido a condenação no pagamento das benfeitorias em causa por reconvenção na acção de despejo, não pode depois invocá-las como fundamento nos embargos à execução, como decorre do disposto no nº 3 do artigo
929º do Código de Processo Civil. Quanto à sustação ou suspensão referidas, previstas no Regime do Arrendamento Urbano, o tribunal entendeu não terem cabimento, seja por não estarem preenchidos os requisitos do artigo 60º ('uma vez que se trata da execução de uma sentença judicial que já apreciou os direitos em causa'), seja por não se tratar de arrendamento para habitação (artigo 61º).
3. Inconformada, A recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra. Para o que agora releva, sustentou ser inconstitucional 'o artigo 929º do Código de Processo Civil' porque 'o despejo, a ser concretizado, sem que o senhorio cumpra também a sua obrigação, implicará a perda de alguns postos de trabalho existentes no (...) estabelecimento e colocará em crise o bem-estar e a qualidade de vida desses trabalhadores. Esta situação contende com o artigo 53º da Constituição da República Portuguesa, que garante aos trabalhadores a segurança no emprego, e, bem assim, com o disposto na alínea d) do artigo 9º daquela Lei suprema do nosso ordenamento jurídico'. O Tribunal da Relação de Coimbra, porém, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão da 1ª instância, nos seguintes termos:
«Pretende a requerente que o senhorio lhe pague a importância que alega corresponder ao custo das obras por si feitas no locado, e que entende terem a classificação jurídica de 'benfeitorias necessárias'; daí faz derivar o alegado, também, seu direito de retenção sobre o locado benfeitorizado, nos termos dos artºs 754º e 759º, nº1 do Código Civil.
Em tese geral nada obstaria a tal pretensão; só que parece ter esquecido a requerente, que é pressuposto de qualquer providência cautelar não especificada, a alegação – e prova – do concreto 'periculum in mora' na realização da respectiva prestação creditícia.
Na verdade, dispõe claramente o nº 1 do art. 381º do Cód. Proc. Civil:
- 'Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência... concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.'
Ora sem que a requerente tivesse feito a mínima referência a qualquer facto donde se pudesse inferir tal fundado receio de que, caso faça a entrega do imóvel ficará comprometido o seu direito do crédito pecuniário, ' ab initio' se tem que ter por soçobrante a pretensão cautelar.
De nada importa discutir que a requerente tenha ou não tenha direito de retenção sobre tal coisa – pois que, se entende que o tem, que o exerça, independentemente da afirmação de qualquer providência cautelar, cujo expediente a tal não visa; nem afirmar, nem tutelar –; nem muito menos, se o seu direito assentará também no instituto do enriquecimento sem causa ou no do abuso de direito (como também alegado vem agora)
Parece – sim – que o 'direito' que a agravante pretende tutelar será, afinal, o do estabelecimento – naquele local – cuja 'inadvertida destruição' (sic) causaria 'lesão grave e dificilmente reparável' (sic); mas tal factualismo, se tutelado fosse, representaria a negação do decidido despejo.
O que ocorre é que a despejanda pretenderia ver descoberto, por esta via imprecisa cautelar, expediente que contornasse, em fraude, o princípio restritivo do embargo à execução da sentença condenatória de entrega de coisa certa, quando os respectivos embargos tivessem por fundamento benfeitorias ainda não reconhecidas judicialmente.
Princípio esse que dimana, precisamente, da norma que apela de inconstitucional, por ofensa dos artºs 9º,al. d) e 53º da C.R.P.
Ora, tal normativo – o constante do nº 3º, do art. 928º [admite-se que se pretenda referir o artigo seguinte] do Código de Processo Civil – não padece de qualquer inconstitucionalidade, nem subjaz a quaisquer interesses de economia processual. Ao invés, apenas visa tornar certa e pronta a execução dos direitos reconhecidos judicialmente, sem que a contra-parte devedora se possa sistematicamente protelar as decisões judiciais, incumprindo – com a afirmação de novos direitos, mas provenientes de factos passados – o seu fim útil.
Noas termos expostos, acorda-se em confirmar a douta decisão aprovada, porque se nega provimento ao recurso.»
4. A transcrição acabada de fazer demonstra a impossibilidade de o Tribunal Constitucional conhecer do objecto do presente recurso. Com efeito, não foi no artigo 929º do Código de Processo Civil que o Tribunal da Relação de Coimbra se baseou para negar provimento ao recurso interposto da 1ª instância, mas, diferentemente, em não ter sido feita 'a mínima referência a qualquer facto donde se pudesse inferir (...) fundado receio de que, caso faça a entrega do imóvel, ficará comprometido o seu direito de crédito'.
É certo que, a final, o acórdão recorrido refere o regime constante do nº 3 do artigo 929º do Código de Processo Civil; mas tal referência não pode ser entendida como integrando a ratio decidendi do acórdão, destinando-se antes a observar que, de qualquer modo, nunca teria êxito a via processual utilizada. Basta pensar que, se o Tribunal Constitucional conhecesse do objecto do recurso e se pronunciasse no sentido da inconstitucionalidade, tal julgamento não implicaria nenhuma alteração da decisão recorrida.
5. Nestes termos, não tendo sido aplicada qualquer norma contida no artigo 929º do Código de Processo Civil pelo acórdão recorrido como ratio decidendi do indeferimento da providência requerida, não pode o Tribunal Constitucional conhecer do objecto do presente recurso, como resulta da lei (artigo 79º-C da Lei nº 28/82) e o Tribunal tem repetidamente afirmado (cfr., a título de exemplo, os acórdãos nºs 311/94, 187/95 e 366/96, Diário da República, II Série, respectivamente de 1 de Agosto de 1994, 22 de Junho de 1995 e de 10 de Maio de
1996). Estão, pois, reunidas as condições para que se proceda à emissão da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da mesma Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Assim, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 ucs.»
2. Inconformada, a recorrente veio reclamar para a conferência, nos termos previstos no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82. Sustenta, em síntese, que, uma vez que 'a apreciação e decisão dos recursos é delimitada pelas conclusões das alegações dos recorrentes' e que, na conclusão 6ª das alegações que apresentou no recurso de agravo interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra, 'foi invocado o artigo 929º, nº 3 do Código de Processo Civil, bem como as normas constitucionais que se consideraram violadas', 'afigura-se-nos que o Tribunal da Relação apreciou e decidiu o pleito alicerçando-se também naquela norma. Se aquele Tribunal não apreciasse o caso à luz da citada disposição legal, não poderia conhecer do recurso, por falta de objecto.
(...) defendemos que , na esteira do (...) artigo 690º, nº 2, do CPC, e das alegações do recurso para o Tribunal da Relação, esta jurisdição ou julgou um recurso com objecto inexistente ou, objecto existindo, teve que o julgar tomando por base as respectivas conclusões e, consequentemente, a única norma jurídica invocada pela recorrente: artigo 929º, nº 3, do CPC'. Notificado para se pronunciar sobre a reclamação, querendo, o recorrido não respondeu.
3. As considerações expendidas na reclamação em nada contribuem para afastar o obstáculo apontado ao conhecimento do objecto do recurso. Com efeito, não está em causa, naturalmente, a forma de delimitar o objecto do recurso de agravo, nem, consequentemente, a extensão dos poderes do Tribunal da Relação que o julgou. O que está em causa, antes, é saber se o Tribunal recorrido se baseou ou não na norma cuja constitucionalidade a reclamante questiona para a decisão que proferiu; e a verdade é que, como se demonstra na decisão agora reclamada, não baseou. Como ali se disse, basta verificar que, ainda que o Tribunal Constitucional se pronunciasse no sentido da inconstitucionalidade, nenhuma repercussão teria tal julgamento, pois não implicaria qualquer alteração na decisão recorrida. Seria, pois, inútil o conhecimento do recurso.
Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa, 16 de Janeiro de 2003 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida