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Proc. nº 640/00 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - AC, com os sinais dos autos, recorre para este Tribunal, ao abrigo do artigo
70º nº 1 alínea b) da Lei nº 28/82, do despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu a reclamação deduzida contra o despacho de não admissão de recurso para o STJ de acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra.
No requerimento de interposição de recurso, o recorrente disse pretender a verificação da constitucionalidade da norma do artigo 387º-A do Código de Processo Civil por, no seu entender, violar 'as garantias constitucionais consagradas no artº 3º, nº 3 e 20º nºs 1, 4 e 5 da Lei Fundamental'.
Nas suas alegações, formulou as seguintes conclusões:
'1 – A questão de constitucionalidade objecto do recurso foi suscitada atempadamente e de modo adequado;
2 – A norma extraída do artº 387º-A do CPC, e aplicada na decisão do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, confirmativa da decisão da Desembargadora Relatora, é material e organicamente inconstitucional por privar o requerente do acesso ao direito e aos tribunais de modo efectivo para obter uma decisão de mérito sobre direitos fundamentais de personalidade e de propriedade privada.'
Contra-alegou a recorrida L, SA, também identificada nos autos, concluindo:
'1 – Uma vez que a questão da pretensa inconstitucionalidade do artº 387º-A do CPC não foi suscitada pelo recorrente na reclamação deduzida perante o Exmo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça nem em qualquer outro momento anterior
àquele, nos presentes autos, não deve ser admitido o presente recurso.
2 – A norma do artº 387º-A do CPC, com base na qual foi indeferido o recurso interposto pelo recorrente para o Supremo Tribunal de Justiça, não dá lugar a qualquer dúvida interpretativa nem foi objecto de interpretação restritiva por parte do Exmo Presidente do Tribunal.
3 – O artº 387º-A não viola a garantia constitucional de acesso ao Direito e aos Tribunais.
4 – Uma vez que está assegurado o direito a um grau de recurso – de que o recorrente já beneficiou – está conforme com as regras constitucionais pertinentes um preceito que, em sede de providências cautelares, apenas permite o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça em situações excepcionais previstas na lei.
5 – A garantia de acesso ao Direito e aos Tribunais não obriga a que seja sempre e em qualquer caso proferida uma decisão sobre o mérito da pretensão deduzida em juízo, maxime, quando, como sucedeu nos autos de providência cautelar requerida pelo ora recorrente, tal pretensão não só era manifestamente carecida de fundamento como era ostensivamente ilegal.
6 – A pretensão deduzida pelo recorrente nos autos de providência cautelar não assumia qualquer excepcionalidade na perspectiva dos direitos invocados, uma vez que estes, sendo inerentes às acções da recorrida de que aquele se dizia titular, assumem todos natureza meramente patrimonial e são, por isso, facilmente irreparáveis.
7 – O artº 387º-A do CPC não padece, pois, de inconstitucionalidade material ou orgânica.'
Cumpre decidir.
2 – O presente recurso emerge de uma providência cautelar em que o ora recorrente pedia a suspensão da deliberação de credores da requerida no sentido de ser reduzido o capital social da mesma requerida e simultaneamente aumentado esse capital com preferência para os actuais accionistas, deliberação essa homologada por sentença de que o requerente interpusera recurso.
O pedido foi liminarmente indeferido por se ter entendido que, tendo o requerente interposto recurso da decisão homologatória da deliberação dos credores cuja suspensão se requeria e tendo sido atribuído efeito meramente devolutivo ao recurso, tal pretensão, a ser deferida, conduziria a que se obtivesse resultado semelhante ao que se obteria se o recurso tivesse efeito suspensivo.
Deste indeferimento liminar interpôs o recorrente recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, o qual, por acórdão documentado a fls. 29 e segs. lhe negou provimento confirmando o despacho impugnado, apenas reconhecendo como lapso material o fundamento de direito nele invocado (o artigo 474º nº 1 quando deveria ser o artigo 234º-A nº 1, ambos do CPC.
De novo inconformado, o recorrente interpôs recurso para o STJ, recurso que não foi admitido, com fundamento no disposto no artigo 754º nº 2 do CPC.
Do despacho de não admissão (fls. 36) reclamou o recorrente para o Presidente do STJ, sustentando que o artigo 754º nº 2 do CPC não era aplicável a decisão que ponha termo ao processo.
Antes dos autos serem remetidos ao STJ, o autor do despacho reclamado proferiu novo despacho onde, admitindo que se viesse a entender pela inaplicabilidade ao caso dos autos daquele preceito legal, se manteve a não admissão do recurso por força do disposto no artigo 387º-A do CPC.
O recorrente atravessou, então, um novo requerimento dirigido ao Presidente do STJ, sustentando a inconstitucionalidade material da norma contida no artigo
387º-A do CPC.
A reclamação veio a ser indeferida apenas com fundamento no disposto no artigo
387º-A do CPC.
3 – Questão prévia.
Sustenta a recorrida o não conhecimento do recurso por a recorrente não ter suscitado a questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 387º-A do CPC na reclamação para o presidente do STJ.
Conforme se deixou relatado, a não admissão do recurso para o STJ nos termos do despacho de fls. 36 fundou-se no artigo 754º nº 2 do CPC. A reclamação então deduzida pelo recorrente visou exclusivamente a inaplicabilidade deste preceito legal, nada aí se dizendo sobre o artigo 387º-A, preceito que veio a fundamentar quer um despacho subsequente na Relação quer a decisão ora recorrida.
Poderia constituir uma decisão-surpresa a que veio a ser proferida pelo Presidente do STJ fundada no artigo 387º-A do CPC, em termos de isentar o recorrente do ónus de suscitar a questão de inconstitucionalidade ?
Crê-se que não.
Na verdade, já então - aquando do despacho de não admissão do recurso - o artigo
387º-A do CPC não deixava margem para quaisquer dúvidas no sentido da inadmissibilidade de recurso para o STJ das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, razão por que era manifestamente previsível que a reclamação viesse a ser indeferida com tal fundamento.
Poderá, é certo, argumentar-se no sentido de que a invocação do preceito perante um despacho que o não referia e era contrário às pretensões do recorrente seria adversa à estratégia de defesa do reclamante, de modo a não se ter por exigível que fosse ele a tomar a iniciativa de levantar uma questão que lhe era aparentemente desfavorável.
Não se torna, porém, necessário tomar posição sobre uma tal argumentação, pois outra vicissitude processual nos leva a considerar suscitada a questão de constitucionalidade.
É que, após a reclamação, um novo despacho veio a alterar o fundamento do primeiro, passando a não admissão do recurso a alicerçar-se no artigo 387º-A do CPC. E, notificado o reclamante, logo ele atravessou um requerimento em que suscitava a questão da constitucionalidade da norma contida naquele preceito.
Só depois – e sem que houvesse qualquer despacho de desentranhamento desse requerimento ao abrigo do disposto no artigo 543º nº 1 do CPC - os autos são remetidos ao Presidente do STJ, que, no momento da decisão, não podia ignorar a suscitação da questão de inconstitucionalidade.
Não compete a este Tribunal apreciar se o requerimento deveria ou não ser admitido; certo é que, implicitamente, o foi, permanecendo nos autos no momento da decisão sobre a reclamação e estando, assim, ainda em tempo de poder ser ponderado nessa decisão.
Tanto basta para se considerar suscitada a questão de inconstitucionalidade, com o que improcede a questão prévia levantada pela recorrida.
4 – Fundamentação:
A norma do artigo 387º-A do CPC estabelece o princípio da irrecorribilidade para o STJ das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, abrindo apenas a excepção dos casos em que o recurso é sempre admissível, o que remete para o disposto no artigo 678º nºs 2, 3, 4 e 6 do mesmo Código.
É clara a razão deste princípio: 'o triplo grau de jurisdição é incompatível com a celeridade e provisoriedade que caracterizam a essência de tais procedimentos'
(Lopes do Rego, 'Comentários ao Código de Processo Civil', p. 283, em anotação ao artigo em causa).
É esta a norma que o recorrente elege como objecto da sua impugnação sustentando a sua inconstitucionalidade orgânica por violação do artigo 165º nº 1 alínea b) da CRP e material por violação dos artigos 20º nºs 1, 4 e 5, e 2º da CRP.
No que concerne à inconstitucionalidade orgânica, pela primeira vez invocada pelo recorrente no recurso para este Tribunal, fundamenta-se apenas no seguinte trecho das alegações:
'(...)porque sendo havida como contida em preceito legal editado ao abrigo do disposto na al. a) do nº 1 do artº 198º da Constituição, violou a reserva de competência estabelecida no artº 165º nº 1 al. b) da Lei Fundamental'.
Parece, assim, entender o recorrente que a norma em causa contende com
'direitos, liberdades e garantias', razão por que legislar sobre a matéria que ela regula seria da reserva de competência da Assembleia da República.
É manifesto que não tem qualquer razão.
Na verdade, o preceito em causa limita-se a consagrar uma regra sobre a admissibilidade de recurso nos procedimentos cautelares.
Ora, a propósito de norma semelhante, escreveu-se no Acórdão nº 447/93 in
'Acórdãos do Tribunal Constitucional' 25º vol. p, 673:
'(...) em matéria processual a lei fundamental só inclui na reserva relativa da Assembleia da República a legislação sobre processo criminal (...) bem como sobre 'o regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo' (...). A edição de disposições claramente adjectivas, como as referentes à admissibilidade de recursos jurisdicionais em processo civil, comum ou laboral, não cabe na reserva relativa de competência da Assembleia da República'.
Remete-se aqui para o que se deixou dito no aresto citado e reitera-se o então decidido, sem necessidade de outras considerações para julgar improcedente a sumária arguição de inconstitucionalidade orgânica.
No que concerne à arguição de inconstitucionalidade material, está subjacente a ela o que o recorrente considera ser uma 'denegação de justiça', por, no caso, não terem sido apreciados os pressupostos do procedimento nem os pressupostos da sua procedência, fundando-se o indeferimento liminar 'numa razão exterior ao procedimento'.
Ora, sob o acesso aos tribunais e o direito de recurso, escreveu-se no Acórdão nº 576/98 do Plenário deste Tribunal o seguinte:
'5.3. A norma sub iudicio e o direito de acesso aos tribunais:
O direito de acesso aos tribunais pode, no entanto, ser encarado numa outra perspectiva, que é a do direito ao recurso.
O direito ao tribunal - dizendo agora de outro modo - traduz-se, essencialmente, na efectiva possibilidade de obter uma decisão jurídica sobre toda e qualquer questão juridicamente relevante, proferida por um tribunal independente e imparcial, em tempo razoável, mediante um processo equitativo e um julgamento justo e leal.
Este direito compreende, obviamente, também um direito de defesa contra actos jurisdicionais injustos - direito que se exerce pela via do recurso.
Mas, mesmo examinada a norma sob esta perspectiva, ela não é inconstitucional.
Na verdade, quando se fala em direito ao recurso, alude-se à garantia de um duplo grau de jurisdição, com o que se visa assegurar a possibilidade de fazer examinar as causas com maior dignidade por uma instância de grau superior, na esperança de, por essa via, se obter uma decisão mais justa ou, ao menos, de se corrigirem eventuais erros de julgamento.
Simplesmente, fora do domínio penal, em que, quando estejam em causa sentenças condenatórias, o direito ao recurso constitui uma garantia de defesa inafastável cfr., entre outros Acórdãos nºs 202/86 e 8/87 (publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volumes 7º, tomo II, páginas 947 e seguintes, e 9º, páginas 229 e seguintes, respectivamente), tem este Tribunal entendido que não existe um genérico e ilimitado direito de recorrer de todos os actos jurisdicionais, e extensivo a todas e quaisquer matérias. O legislador ordinário goza de uma razoável margem de liberdade na definição dos casos em que o recurso é admissível e dos termos em que tal direito há-de ser exercido. Ele apenas não pode abolir totalmente o sistema de recursos, nem afectar, de forma substancial, o exercício do respectivo direito, em termos de tornar esse exercício particularmente oneroso.
Assim, no acórdão n.º 163/90 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 16º, páginas 301 e seguintes), depois de se recordar esta doutrina, acentuou-se que, no processo civil, o que o legislador tem de assegurar sempre a todos, sem discriminações, é o acesso a um grau de jurisdição. E, se a lei previr que o acesso à via judiciária se faça em mais que um grau, tem ele de abrir a todos essas várias vias judiciárias, garantindo que o acesso a elas se faça sem discriminação alguma, maxime para os economicamente desfavorecidos. E acrescentou-se que, embora os recursos se destinem ao reexame das decisões judiciais e, desse modo, a corrigir eventuais erros de julgamento,
'o recurso aos tribunais, ainda que em uma única instância, continua a ser o meio de defesa por excelência dos 'direitos e interesses' legalmente protegidos
- um meio de defesa que responde minimamente às exigências de justiça que vão implicadas na ideia de Estado de Direito'.
Mais recentemente, o Tribunal, no seu acórdão n.º 259/97 (publicado no Diário da República, II série, de 30 de Junho de 1997), recordou que, 'se o texto constitucional é omisso quanto ao limite máximo dos graus de jurisdição, também o é quanto ao mínimo', não sendo, porém, 'desejável a banalização do acesso à jurisdição do Supremo Tribunal de Justiça'. E concluiu que a inadmissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça - que, no tocante ao montante da indemnização devida por expropriação por utilidade pública, decorre de uma certa interpretação conjugada dos artigos 37º, 51º, n.º
1, e 64º, n.º 2, do Código das Expropriações - não é inconstitucional'
É esta jurisprudência que aqui se reitera, pelo que não pode ter-se por violadora do artigo 20º nº 1 da CRP a norma do artigo 387º-A do CPC.
E isto é assim independentemente das razões que determinam o insucesso da pretensão, sejam de ordem processual, ou outras, sem necessidade de apurar qual a qualificação dogmática adequada do fundamento que, no caso, conduziu ao indeferimento da providência requerida. Com efeito, o direito de acesso à justiça como os que vêm consignados nos nºs 4 e 5 do artigo 20º da CRP não conferem o direito a uma 'decisão de mérito', suposto que ela não tenha sido proferida no caso, em contrário do que o acórdão da Relação de Coimbra expressamente refere, ao qualificar a decisão de 1ª instância por ele confirmada como um 'julgamento antecipado de mérito' e sendo certo que se não pode fazer equivaler – como o recorrente pretende - a uma
'denegação de justiça' uma decisão que não julgue de mérito. Aqueles direitos constitucionais não vinculam a que, seja qual for a conduta processual da parte, se profira sempre uma decisão sobre o mérito da causa (e ainda que no meio processual utilizado se vise a tutela de hipotéticos direitos fundamentais) e se faculte, enquanto ela não for proferida, o recurso até à mais alta instância dos tribunais judiciais, continuando aqui a existir a 'razoável margem de liberdade' do legislador na definição dos graus de recurso admissíveis. Inviolado, assim, o artigo 20º nº 1 da CRP, também não são infringidos os nºs 4 e 5 do mesmo artigo. Com a norma do artigo 387º-A do CPC não é afectado o direito a que uma causa seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo, nem deixou de ser assegurado um procedimento célere (a norma até se justifica também por razões de celeridade) que permita obter a tutela efectiva contra ameaças ou violações de direitos pessoais, sendo certo que, a existirem no caso essas ameaças ou violações, elas só não foram prevenidas pela estratégia processual do requerente sindicada em duas instâncias. Por último a invocada violação do artigo 2º da Constituição configura-se como mera decorrência da infracção ao artigo 20º da Lei Fundamental que, como se demonstrou, se não verifica.
5 – Decisão: Pelo exposto e em conclusão, nega-se provimento ao recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs. Lisboa, 27 de Março de 2001 Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Luis Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa