Imprimir acórdão
Procº nº 128/2004.
3ª Secção. Relator: Conselheiro Bravo Serra.
1. Em 16 de Fevereiro de 2004, o relator proferiu decisão com o seguinte teor:
“1. Inconformado com o despacho proferido em 11 de Novembro de 2003 pelo Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Lisboa que - fundado na circunstância de o recurso, interposto para aquele Tribunal da decisão instrutória lavrada pelo Juiz do 3º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, apenas se colocarem questões de facto, e atento o disposto na alínea g) do nº 1 do artº 400º e no artº 434º, ambos do Código de Processo Penal - lhe não admitiu o recurso intentado interpor para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão lavrado pelo mesmo Tribunal em 1 de Outubro do mesmo ano, reclamou o assistente A. para o Presidente do indicado Supremo, tendo, na peça processual consubstanciadora da reclamação dito, a dado passo:
‘............................................................................................................................................................................................................................................
15º
No entanto, se, por acaso, vier a ser entendido que as normas citadas no despacho reclamado, art. 400º, n.º 1, e 434º do C.P.P., autorizam o não recebimento do recurso, então, essa interpretação das mesmas normas torna-as inconstitucionais, porque vão contrariar o princípio da igualdade, com afloramento no art.º 13º da C.R.P., desproporcional à limitação, em face de todos os outros casos em que a matéria de direito pode subir, sem entraves, ao Supremo.
............................................................................................................................................................................................................................................’
O Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por despacho de 12 de Janeiro de 2004, indeferiu a reclamação.
É a seguinte a fundamentação carreada a esse despacho:
‘............................................................................................................................................................................................................................................
Por um lado, estamos perante um acórdão da Relação que, confirmando a decisão da 1ª instância, não pronunciou os arguidos pela prática do crime de homicídio voluntário, sob a forma de dolo eventual.
Ora, essa situação é de considerar abrangida pela previsão da alínea d) do n.º 1 do art.º 400º do CPP; com efeito, como se disse no Acórdão do S.T.J. de 11.10.2001, (CJ - Acórdãos do S.T.J., Ano IX, Tomo III, p. 196) ‘o acórdão da Relação que, em recurso, confirmar a decisão de não pronúncia, por insuficiente indiciação dos factos acusados, constitui decisão absolutória, ainda que formal, visto que determina a absolvição da instância’.
E basta que se verifique uma das situações previstas numa das alíneas do n.º 1 do citado art.º 400 [in casu a referida alínea d)] para o recurso não ser admissível.
Por outro lado, a reapreciação do despacho de não pronúncia envolve o apuramento de matéria de facto, em vista ao apuramento da existência ou inexistência de indícios suficientes, estranhos à competência do S.T.J., que apenas conhece de matéria de direito, nos termos do art.º 434º do CPP.
Quanto à invocada violação do art.º 13º da CRP, cabe dizer que não se encontra caracterizada qualquer situação desrespeitadora do princípio da igualdade, uma vez que em situações como a dos autos a ninguém é conferida a possibilidade de recorrer.
............................................................................................................................................................................................................................................’
É deste despacho que, pelo assistente, vem interposto recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, por sua via intentando a apreciação dos preceitos que
‘constituem o arco normativo dos artigos 400/1, 434 do CPP’, por, na sua óptica, a interpretação que lhes foi conferida contrariar os artigos 32º, nº 1, 18º e
13º da Lei Fundamental.
O recurso foi admitido por despacho lavrado em 28 de Janeiro de 2004 pelo Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
2. Entende-se ser de proferir decisão ao abrigo do nº 1 do artº 78º-A da já citada Lei nº 28/82, atenta a jurisprudência que, a respeito das normas adjectivas criminais que vedam o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões tomadas pelos tribunais da relação em segundo grau de jurisdição, tem sido tomada por este Tribunal.
Na verdade, tem o Tribunal Constitucional entendido que estatuindo a Constituição, inserido nas garantias de defesa do arguido, o direito ao recurso das decisões penais condenatórias, no caso de haver proferimento de uma decisão judicial impositora de uma sanção criminal, deve o ordenamento jurídico ordinário contemplar a possibilidade de reapreciação de tal decisão.
Mas, contemplando-a, não impõe o Diploma Básico que haja lugar a um segundo grau de reapreciação que, afinal, redundaria num terceiro grau de apreciação, com isso se não violando, quer as garantias de defesa postuladas pelo nº 1 do artº 32º, quer o princípio da igualdade, quer o princípio da proporcionalidade (cfr., verbi gratia, os Acórdãos deste Tribunal números
189/2001, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 50º volume, 285 a
294, 336/2001, inédito, 369/2001, inédito, 435/2001, inédito, 49/2003, publicado na II Série do Diário da República de 16 de Abril de 2003, 377/2003, inédito,
451/2003, inédito, e 490/2003, inédito).
E, se isto é assim, tendo por parâmetro as garantias de defesa que o processo criminal deve, por exigência constitucional, assegurar ao arguido, então poder-se-á dizer que, por maioria de razão, ao perspectivar-se o interveniente processual assistente - para o qual, por não ser arguido, nem sequer é convocável a prescrição garantística ínsita no nº 1 do artº 32º da Lei Fundamental, maxime o seu inciso final -, não tem o ordenamento jurídico ordinário de conceder, por imposição da Constituição, a possibilidade de aquele assistente desfrutar de um terceiro grau de apreciação (ou, o que é o mesmo, de um segundo grau de reapreciação), sendo certo que, como no caso sub specie aconteceu, não só não está em causa a aplicação de uma sanção criminal como, podendo configurar-se a própria instrução como a reapreciação judicial da decisão de não acusação tomada no inquérito, a pretendida análise pelo Supremo Tribunal de Justiça postar-se-ia como um quarto grau de apreciação (cfr., no particular de não serem, para o assistente, convocáveis as garantias de defesa vertidas no dito nº1 do artigo 32º, o Acórdão deste Tribunal nº 176/2002, publicado na II Série do Diário da República de 7 de Junho de 2002).
Por outro lado, a não infracção dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, surpreendida na jurisprudência acima citada, pelas razões na mesma aduzida, é transponível para os normativos ora em crise.
Neste contexto, nega-se provimento ao recurso, condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em seis unidades de conta”.
É da transcrita decisão que, pelo assistente, vem deduzida reclamação, na qual aduz:
“........................................................................................................................................................................................................................................................................................
1º O Excelentíssimo Conselheiro Relator considera não ser inconstitucional a solução de vedar, em processo criminal, o recurso para o S.T.J., acaso a 1ª e a
2ª Instância concordem em não submeter o feito a julgamento
2º Defende que o princípio recursivo pode bastar-se com um único grau: seria proporcional em face do conjunto dos outros direitos fundamentais implicados, nomeadamente, os direitos do Arguido à definição célere do posicionamento deste perante o libelo.
3º O Reclamante pode muito bem concordar com a argúcia do raciocínio, mas não que nos demonstre o ponto normativo “de lege data”.
4º Na verdade, concordamos em dois pontos : o princípio de um duplo grau de jurisdição sobre matéria de facto está consagrado constitucionalmente e o perfil do supremo Tribunal de Justiça pode muito bem ser, segundo a Constituição, de um Tribunal de revista.
5º Contudo, no princípio recursivo, também exigência constitucional, fica fortemente abalado, acaso ao Supremo Tribunal de Justiça sejam subtraídas causas para que tem vocação decisória.
6º Ora, a dupla absolvição não é sequer equiparável ao duplo veredicto de recusa da jurisdição criminal, perante o caso concreto, e esta é exactamente igual aos casos que, por não serem de dupla absolvição, permitem sempre o recurso até ao Supremo.
7º Deste modo, a leitura feita nas Instâncias dos preceitos arguidos pelo Reclamante é efectivamente inconstitucional, pelo menos, por violação do princípio da igualdade.
8º
É que não colhe, de modo algum, a tese da maioria de razão, no que diz respeito ao ofendido, por eventual paralelismo de outras recusas de recurso para o S.T.J., principalmente do Arguido, porque no sistema processual penal, de acordo com o princípio acusatório, proveniente da Constituição, Arguido e Ofendido/Assistente são sujeitos e não partes contrapostas, livres e completamente independentes.
9º E resta saber se a dupla condenação, por crime de pena média, é motivo constitucionalmente relevante para prescindir do julgamento do feito em revista jurisdicional.
10º De qualquer modo, nem a esta dupla condenação pode naturalmente ser similar a dupla recusa de submissão do caso ao julgamento penal.
11º Mantém o Reclamante, portanto, identificar-se aqui um concreto desvio ao princípio constitucional da igualdade, enquanto também a solução nunca seria proporcional, atento o artigo 18º da C.R.P..
12º Enfim, a crença fundada no cometimento de um assassinato a título de dolo eventual, rasurados procedimentos e avaliações médicas (omissões causais da morte), com o simples e ignaro fito de disciplinar a doente e o filho, não pode ser questão a subtrair ao Supremo Tribunal de Justiça, na dominante de tema de direito que a valoração, sobretudo a valoração injusta de factos, sempre teve e tem, segundo jurisprudência constante.
13º Não há, pois, proporcionalidade alguma na compressão do direito fundamental ao recurso neste caso de gritante gravidade e controvérsia.
........................................................................................................................................................................................................................................................................................”
Ouvido sobre a reclamação o Ex.mo Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se assim:
“1 - A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2- Na verdade, o reclamante nada acrescenta que seja susceptível de pôr em causa o entendimento reiterado acerca da inelegibilidade constitucional de um triplo grau de jurisdição, em quaisquer processos”..
Cumpre decidir.
2. Entende-se ser de manter a decisão proferida, atenta a jurisprudência tomada por este Tribunal, quer acerca da inserção constitucional, nas garantias de defesa do arguido, do direito ao recurso quanto
às decisões condenatórias ou impositoras de sancionamento, quer acerca da não imposição constitucional de um terceiro - ou quarto - grau de reapreciação, e isto tendo em atenção a posição do arguido.
E, por isso, se se tratar de uma «parte» processual que não seja arguido, talqualmente se assinalou na decisão sub iudicio, por maioria de razão entende o Tribunal que se deve concluir pela não enfermidade constitucional dos normativos insertos no requerimento de interposição de recurso, já que a Lei Fundamental, para aquela «parte», nem sequer consagra a garantia a que se reporta a parte final do nº 1 do seu artigo 32º.
Não se pode postar num mesmo plano o sujeito processual arguido, relativamente ao qual o Diploma Básico vem, no que se usa designar como
«Constituição Penal» e «Constituição de Processual Penal», consagrar toda uma sorte de direitos e garantias, e os restantes sujeitos do processo criminal.
E, não havendo um mesmo posicionamento, não se lobriga como se poderá, neste particular, brandir com um argumento extraído do princípio da igualdade, que reclama a dação do mesmo tratamento para situações essencialmente iguais e um tratamento diferenciado para situações que sejam desiguais.
De todo o modo, assinale-se que, mesmo numa situação em que um arguido intentasse interpor um recurso, atinente a matéria de facto, de um acórdão de uma relação que confirmasse despacho de pronúncia proferido na 1ª instância, tal recurso não seria admissível em face do direito infra-constitucional, o que só demonstra o infundado argumento esteado, quer no princípio da igualdade, que no princípio da proporcionalidade.
Neste contexto, indefere-se a reclamação, condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 22 de Março de 2004
Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida