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Processo n.º 53/03
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A deduziu, nos termos do n.º 4 do artigo 76.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), reclamação para o Tribunal Constitucional do despacho do Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24 de Setembro de 2002, que não admitiu, por intempestivo, o recurso por ela interposto do acórdão desse Tribunal, de 19 de Fevereiro de 2002, que, além do mais, negou provimento à apelação por ela apresentada contra a sentença do Tribunal Judicial de Aveiro que julgara procedente acção de despejo contra ela intentada.
Contra o referido acórdão de 19 de Fevereiro de 2002 – notificado à ora reclamante por carta registada expedida no subsequente dia 22, pelo que a notificação se considera feita em 25 de Fevereiro de 2002 (2.ª-feira)
– deduziu a reclamante pedido de aclaração, sobre o qual recaiu o acórdão de 18 de Junho de 2002, que, considerando evidente ter-se a conduta processual da recorrente pautado pelo prolongamento injustificado do litígio, decidiu não tomar conhecimento do pedido de esclarecimento, por a reclamante não ter apontado qualquer obscuridade ou ambiguidade ao acórdão aclarando, e condená-la como litigante de má fé.
Notificada do acórdão de 18 de Junho de 2002 (por carta registada expedida no subsequente dia 20, pelo que a notificação se considera feita em 24 de Junho de 2002 – 23 foi Domingo), veio a recorrente, por requerimento expedido em 4 de Julho de 2002, e entrado no Tribunal da Relação de Coimbra no dia imediato, interpor recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão de 19 de Fevereiro de 2002, 'por se afigurar inconstitucional o corpo do n.º 1 do artigo 107.º do RAU, na interpretação que naquela decisão é feita de tal preceito', sem mencionar a alínea do n.º 1 do artigo 70.º da LTC ao abrigo da qual o recurso era interposto, e – considerando-se que o teria sido ao abrigo da alínea b) – sem precisar a interpretação normativa questionada, nem identificar o princípio ou norma constitucionais considerados violados, nem indicar a peça processual onde teria sido suscitada a questão de inconstitucionalidade.
Este recurso não foi admitido pelo despacho ora reclamado, de 24 de Setembro de 2002, por ter sido considerado intempestivo, uma vez que 'o acórdão foi notificado em Fevereiro e o recurso para o Tribunal Constitucional interposto em 5 de Julho de 2002', vindo a ser esclarecido, por despacho de 12 de Novembro de 2002, que 'o pedido de aclaração foi considerado um expediente dilatório, razão porque a reclamante foi condenada como litigante de má fé' e 'o recurso para o Tribunal Constitucional foi considerado intempestivo porque a contagem do prazo para a sua interposição não teve em conta a reclamação apresentada, porque dilatória'.
Na reclamação ora em apreciação, a reclamante, após narrar as vicissitudes processuais precedentemente expostas, aduz:
'7. Ao que parece, ter-se-á erroneamente pretendido ser aplicável o novel n.º 4 do artigo 670.º do Código de Processo Civil – que apenas determina que os recursos não possam abranger o teor dos despachos que indeferem os requerimentos de aclaração das decisões recorridas.
8. Aplicável parecer outrossim ser o n.º 1 do artigo 686.º do Código de Processo Civil – pelo que o questionado recurso para o Tribunal Constitucional terá sido interposto atempadamente e ... mal indeferido.'
Neste Tribunal Constitucional, o representante do Ministério Público emitiu o seguinte parecer:
'O recurso interposto a fls. 15 só poderia ter sentido se reportado à alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82. Para ser admissível, seria indispensável que a recorrente tivesse suscitado durante o processo e em termos procedimentalmente adequados a questão de inconstitucionalidade normativa que pretende reportar ao questionado artigo 107.º, n.º 1, do RAU.
Ora – face ao teor das conclusões das alegações apresentadas pela ora reclamante na Relação de Coimbra (e transcritas no acórdão que se pretendeu impugnar, a fls. 32 a 34) – é manifesto que não se mostra suscitada qualquer questão de constitucionalidade, em termos de – como decorre do n.º 2 do artigo
72.º da Lei n.º 28/82 – aquela Relação «estar obrigada a dela conhecer». É, por outro lado, evidente que o acórdão proferido não pode ser qualificado como
«decisão-surpresa», já que a matéria controvertida na apelação tinha precisamente que ver com a interpretação a dar à expressão «no momento em que deva produzir efeitos», constante da referida norma legal, pelo que não se verifica nenhuma das situações excepcionais que conduza à dispensa do referido
ónus.
Deste modo, não se verificando os pressupostos de admissibilidade do recurso, sempre deveria o mesmo ser rejeitado no Tribunal a quo, o que determina a improcedência da presente reclamação.'
Por despacho do relator, atento o disposto no artigo
3.º, n.º 3, do Código der Processo Civil, foi determinada a notificação da reclamante para se pronunciar, querendo, sobre o novo fundamento de inadmissibilidade do recurso de inconstitucionalidade suscitado no parecer do Ministério Público, tendo a mesma, na resposta apresentada, sustentado que 'a questão da alegada inconstitucionalidade foi suscitada no pedido de aclaração oportunamente formulado em relação ao Acórdão da mui ilustre Relação de Coimbra proferida aos 19 de Fevereiro de 2002', que 'foi nesse aresto que surgiu – como surpresa – a arguida inconstitucionalidade, que se pretende ver apreciada
(inconstitucionalidade do corpo do n.º 1 do artigo 107.º do RAU, na interpretação que naquela decisão é feita de tal preceito', acrescendo que 'tal pedido de aclaração é processualmente intercalar e era mesmo dispensável' e que
'não fora a sua apresentação, o pretendido recurso para o venerando Tribunal Constitucional não teria por certo sido rejeitado naquela 2.ª instância'.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
2. A admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LCT – e, como já se referiu, apesar de a reclamante não ter indicado a alínea desse preceito ao abrigo da qual pretendia interpor o recurso de constitucionalidade, o caso dos autos só poderia ter acolhimento nessa alínea b) – depende da suscitação 'durante o processo' da inconstitucionalidade da(s) norma(s) aplicada(s) pela decisão recorrida e cuja conformidade constitucional o recorrente pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, esclarecendo o n.º 2 do artigo 72.º da mesma Lei que tal recurso só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade 'de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer'.
Constitui jurisprudência consolidada deste Tribunal Constitucional que o apontado requisito só se pode considerar preenchido se a questão de constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal recorrido ter proferido a decisão final, pois com a prolação desta decisão se esgota, em princípio, o seu poder jurisdicional. Por isso, tem sido uniformemente entendido que, proferida a decisão final, a arguição da sua nulidade ou o pedido da sua aclaração, rectificação ou reforma não constituem já meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade, pois a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve
'lapso manifesto' do juiz quer na determinação da norma aplicável, quer na qualificação jurídica dos factos, nem desconsideração de elementos constantes do processo que implicassem necessariamente, só por si, decisão diversa da proferida. E também, por maioria de razão, não constitui meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade a sua invocação, pela primeira vez, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ou nas respectivas alegações.
Só assim não será nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade.
Expostos estes critérios, fácil é demonstrar que o recurso que a reclamante pretendia interpor era, desde logo, inadmissível, como se sustenta no parecer do Ministério Público, o que torna desnecessária a apreciação da questão da sua (in)tempestividade.
Na verdade, a própria reclamante reconhece que não suscitou a questão da inconstitucionalidade da norma do corpo do n.º 1 do artigo
107.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro (doravante designado por RAU) – 'O direito de denúncia do contrato de arrendamento, facultado ao senhorio pelas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 69.º, não pode ser exercido quando no momento em que deva produzir efeitos ocorra alguma das seguintes circunstâncias: (...)' –, interpretada como reportando esse momento ao termo do prazo de renovação do contrato, antes de proferido o acórdão de que pretendeu interpor recurso de constitucionalidade.
Mas sustenta que suscitou essa questão no pedido de aclaração desse acórdão e que não o fez antes por ter sido surpreendida com a interpretação acolhida no mesmo acórdão.
A primeira asserção, aliás irrelevante, não corresponde
à realidade: basta ler o pedido de aclaração (cf. fls. 13 e 14) para se constatar que nele nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa é suscitada.
E a segunda é claramente improcedente: como se salienta no parecer do Ministério Público, não pode constituir 'decisão-surpresa' a confirmação, pelo acórdão da Relação, da interpretação dada à citada norma pela sentença apelada, que, aliás, corresponde ao entendimento generalizado da doutrina e da jurisprudência, no sentido de que o 'momento em que deve produzir efeitos o direito de denúncia tem de ser entendido como a ocasião para a qual o senhorio pode denunciar o contrato, ou seja, nos termos do n.º 1 do artigo 69.º, o termo do prazo do contrato ou da sua renovação' (Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 7.ª edição, Coimbra, 2003, pág. 634, e jurisprudência citada na nota 2 dessa mesma página).
Era, pois, na alegação do recurso de apelação que a reclamante devia ter suscitado a questão de inconstitucionalidade da norma em causa, que fora aplicada na sentença apelada justamente com a interpretação que só no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade veio a ser arguida, pela primeira vez nos autos, de inconstitucional. Não o tendo feito naquela alegação, como ela própria reconhece, falta o apontado requisito de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LCT, o que basta para votar ao insucesso a presente reclamação.
3. Em face do exposto, embora por fundamento diverso do do despacho reclamado, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em
15 ( quinze ) unidades de conta.
Lisboa, 19 de Março de 2003.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Paulo Mota Pinto
Luís Nunes de Almeida