Imprimir acórdão
Proc. n.º 631/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. reclamou, a fls. 2 e seguintes, para o Presidente do Supremo Tribunal Administrativo de um despacho (a fls. 37) que não lhe admitiu um recurso interposto para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.
Na reclamação sustentou, entre o mais, que “a nova redacção dada ao art. 120º do ETAF pelo D.L. 229/96, de 29/11, na medida em que determina que a extinção do 3º grau de jurisdição é aplicável a relações jurídico-tributárias cujo facto gerador ocorreu em data anterior à da sua entrada em vigor, violou o «princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança», legalmente consagrado nos arts. 2º, 103º e 268º da CRP, e que, aliás, faz parte da denominada constituição material”, tendo formulado as seguintes conclusões:
“a) O art. 120º do ETAF, na redacção que lhe foi dada pelo D.L. 229/96, de
29/11, enferma de inconstitucionalidade material, por violação do «princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança», legalmente consagrado designadamente nos arts. 2º, 103º e 268º da CRP. b) Tendo o douto despacho reclamado interpretado e aplicado aquela norma com o sentido de que o terceiro grau de jurisdição se encontra excluído relativamente aos processos iniciados depois da data da entrada em vigor daquele D.L. 229/96, de 29/11 (15/09/97), também o mesmo despacho se encontra enfermo de ilegalidade, por violação daquele «princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança» constitucionalmente consagrado.”
O despacho reclamado foi mantido, por despacho de fls. 18.
2. Por decisão de 1 de Julho de 2003, a fls. 41 e seguinte, o Presidente do Supremo Tribunal Administrativo indeferiu a referida reclamação, nos seguintes termos:
“[...] O Decreto-Lei nº 229/96, de 29 de Novembro, introduziu alterações em matéria de recursos, na jurisdição administrativa e fiscal. Este diploma consagra, de acordo com o seu preâmbulo, «a manutenção de apenas dois graus de recurso na jurisdição administrativa; por paralelismo com ela, a admissibilidade de apenas dois graus de recurso na jurisdição tributária», desaparecendo, consequentemente, o recurso de quaisquer acórdãos do Tribunal Central Administrativo proferidos em segundo grau de jurisdição, excepto em caso de oposição de julgados (cfr. artigos 103º da LPTA, e ainda 22º, 24º, 26º, 30º, 32º e 33º todos do ETAF na redacção do Decreto-Lei nº 229/96). Por outro lado, prevê o artigo 120º do ETAF, na redacção do referido DL nº
229/96, que «A extinção do anterior 3º grau de jurisdição no contencioso tributário operada pelo presente diploma apenas produz efeitos relativamente aos processos instaurados após a sua entrada em vigor». Ora, estabelece o artigo 5º do mesmo Decreto-Lei nº 229/96, que «... o presente diploma entra em vigor na data do início de funcionamento do Tribunal Central Administrativo», o que veio a acontecer em 15 de Setembro de 1997, por força da Portaria nº 398/97, de 18 de Junho. Resulta dos autos que o processo em questão teve início em 2 de Junho de 1998, portanto, após a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 229/96. Assim, o acórdão do Tribunal Central Administrativo, proferido em segundo grau de jurisdição, não é passível do recurso interposto. E não há que ajuizar da possibilidade de mandar «seguir os termos do recurso que se julgue apropriado» (cfr. art. 687º, nº 3, do C.P.C.) – eventualmente recurso por oposição de acórdãos –, uma vez que no requerimento de interposição de recurso o Reclamante apenas se limitou a dizer que queria recorrer, o que, desde logo, seria indeferido, nos termos do artigo 284º, nº 1, do C.P.P.T.
[...].”
3. Inconformada com a mencionada decisão, A. dela veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n° 1 do artigo 70° da LTC, “restrito à questão da constitucionalidade da norma do art. 120º do ETAF, na redacção que lhe foi dada pelo D.L. 229/96, de 29/11”, nos seguintes termos
(fls. 45 e seguintes):
“[...]
2º – A Recorrente pretende que seja apreciada e decidida a inconstitucionalidade da norma do art. 120° do ETAF, na redacção que lhe foi dada pelo D.L. 229/96, de
29/11, quando interpretada e aplicada com o sentido que lhe foi dado pelo douto despacho recorrido, ou seja, com o sentido de que aquela norma estabelece que o terceiro grau de jurisdição se encontra excluído relativamente aos processos iniciados depois da data da entrada em vigor daquele diploma (15/09/97).
3º – A recorrente sustenta que aquela norma do art. 120° do ETAF, na redacção que lhe foi dada pelo D.L. 229/96, de 29/11, ao ser interpretada e aplicada com o sentido de que o terceiro grau de jurisdição se encontra excluído relativamente aos processos iniciados depois da data da entrada em vigor daquele D.L. 229/96, de 29/11 (15/09/97), mesmo quando a respectiva relação jurídico-tributária se tenha sido constituído antes desta data. enferma de inconstitucionalidade material, por violação do «princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança», legalmente consagrado designadamente nos arts. 2°,
103° e 268° da CRP.
4º – Consequentemente, tendo o douto despacho recorrido interpretado e aplicado aquela norma com o sentido de que o terceiro grau de jurisdição se encontra excluído relativamente aos processos iniciados depois da data da entrada em vigor daquele D.L. 229/96, de 29/11 (15/09/97), – ainda que, como acontece no caso sub judice, a relação jurídico-tributária se tenha constituído antes dessa data –, também o mesmo despacho se encontra enfermo de ilegalidade, por violação daquele «princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança» constitucionalmente consagrado.
5º – A questão da inconstitucionalidade da referida norma do art. 120° do ETAF, na redacção que lhe foi dada pelo D.L. 229/96, de 29/11, foi suscitada pela Recorrente na reclamação que, ao abrigo do disposto no art. 688° do CPC
(aplicável ex vi do disposto no art. 2°/e do CPPT), apresentou da decisão do Exmº Senhor Desembargador-Relator do Tribunal Central Administrativo, que não lhe admitira o recurso interposto do douto Acórdão proferido por este TCA em
03/12/2002.
[...].”
O recurso para o Tribunal Constitucional foi admitido por despacho de fls. 48.
4. Nas alegações que produziu junto do Tribunal Constitucional (fls. 55 e seguintes), formulou A. as seguintes conclusões:
“a) As normas do D.L. n° 299/96, de 29 de Novembro, que prevêem que a extinção do 3° grau de jurisdição no contencioso tributário aí operada possa também valer para os processos em que estão em causa relações jurídico-tributárias que se constituíram em data anterior à da sua entrada em vigor (15/09/97), enferma de inconstitucionalidade material, por violação, designadamente, do disposto nos arts. 2°, 103° e 268° da CRP. b) O art. 120° do ETAF, na nova redacção que lhe foi dada pelo D.L. 229/96, de
29/11, ao determinar que a extinção do 3° grau de jurisdição no contencioso tributário é também aplicável aos processos em que estão em questão relações jurídico-tributárias cujo facto gerador ocorreu em data anterior à da sua entrada em vigor, viola o princípio da segurança jurídica legalmente consagrado, designadamente, nos arts. 2°, 103° e 268° da CRP, e que, resto, faz parte da denominada constituição material. c) Assim, essa norma do art. 120° do ETAF, na redacção que lhe foi dada pelo D.L. 229/96, de 29/11, enferma de inconstitucionalidade material. d) Porém, essa inconstitucionalidade já não se verificaria se o legislador, em obediência ao referido princípio da segurança jurídica, tivesse estabelecido como critério definidor da aplicação temporal da extinção do 3° grau de jurisdição no contencioso tributário, não a data da instauração do respectivo processo, mas sim a data da verificação do facto gerador do imposto que estivesse em questão nesse mesmo processo. e) Tendo o douto despacho recorrido aplicado a referida norma do art. 120° do ETAF, na redacção que lhe foi dada pelo D.L. 229/96, de 29/11, com o sentido de que o terceiro grau de jurisdição no contencioso tributário se encontra excluído relativamente a todos os processos instaurados depois da data da entrada em vigor daquele diploma (15/09/97), e, com esse fundamento, julgou improcedente a reclamação apresentada pela ora Recorrente, também o mesmo douto despacho se encontra enfermo de ilegalidade, por violação daquele «princípio da segurança jurídica» constitucionalmente consagrado. Nestes termos e nos melhores de direito, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas, com fundamento na violação do princípio da segurança jurídica constitucionalmente consagrado, designadamente, nos arts. 2°, 103° e 268° da CRP, deverá ser declarada a inconstitucionalidade da norma do art. 120° do ETAF, na redacção que lhe foi dada pelo D.L. 229/96, de 29/11, bem como de todas as demais normas que tenham sido aplicadas pelo douto despacho recorrido com o sentido de que a extinção do 3° grau de jurisdição no contencioso tributário é também aplicável a processos em que, como aquele em que foi intentado o presente recurso, estejam em questão relações jurídico-tributárias cujo facto gerador do respectivo tributo tenha ocorrido em data anterior à da entrada em vigor daquele D.L. 229/96, de 29/11 (15/09/97), assim sendo feita JUSTIÇA!”
A Fazenda Pública, recorrida no presente processo, não contra-alegou.
Cumpre apreciar.
II
5. Não obstante a recorrente, nas alegações (supra, 4.), pedir que o Tribunal Constitucional “declare”, não só a inconstitucionalidade da norma do artigo 120º do ETAF, mas também a “de todas as demais normas que tenham sido aplicadas pelo douto despacho recorrido com o sentido de que a extinção do 3º grau de jurisdição no contencioso tributário é também aplicável a processos em que, como aquele em que foi intentado o presente recurso, estejam em questão relações jurídico-tributárias cujo facto gerador do respectivo tributo tenha ocorrido em data anterior à da entrada em vigor daquele D.L. 229/96, de 29/11
(15/09/97)”, é evidente que o Tribunal Constitucional não pode apreciar a conformidade constitucional dessas “demais normas”, pois que o objecto do recurso ficou definitivamente delimitado no momento da apresentação do respectivo requerimento de interposição (supra, 3.).
Ora, no requerimento de interposição, a própria recorrente restringiu o objecto do recurso à questão da constitucionalidade da norma do artigo 120º do ETAF, na redacção que lhe foi dada pelo D.L. 229/96, de 29/11, com o sentido por si censurado. Só essa norma (com tal sentido) pode, portanto, ser apreciada no presente recurso.
Dispõe o artigo 120º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, na redacção do Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro:
“Artigo 120º Graus de jurisdição no contencioso tributário A extinção do anterior 3º grau de jurisdição no contencioso tributário operada pelo presente diploma apenas produz efeitos relativamente aos processos instaurados após a sua entrada em vigor.”
Segundo a recorrente, esta norma seria inconstitucional, na interpretação segundo a qual seria também aplicável a processos em que – como aquele em que foi intentado o presente recurso –, estivessem em questão relações jurídico-tributárias cujo facto gerador do respectivo tributo tivesse ocorrido em data anterior à da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro.
A decisão recorrida não se pronunciou sobre a questão de constitucionalidade colocada pela recorrente (supra, 2.). No entanto, aceita-se que tal decisão aplicou a norma que constitui o objecto do presente recurso, com o sentido apontado pela recorrente, pois que nela não se considerou relevante a circunstância de a relação jurídico-tributária se ter constituído em data anterior à da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro; apenas se considerou decisivo, para efeitos da extinção do 3º grau de jurisdição no contencioso tributário, a data do início do correspondente processo.
Padecerá tal entendimento de inconstitucionalidade?
6. A resposta é, adiante-se já, negativa. Na verdade, não se alcança, da leitura das alegações da recorrente, por que motivo o momento da constituição da relação jurídico-tributária deveria ser o momento a atender, para efeitos da aplicação no tempo de uma lei que regula os vários graus de jurisdição no contencioso tributário.
Dito de outro modo, não se alcança qual a razão susceptível de justificar que o contribuinte adquira, no momento em que se constitui uma relação jurídico-tributária, a expectativa e a confiança de que a um processo emergente dessa relação se aplique a lei reguladora dos graus de jurisdição vigente nesse momento.
Ora, não procedendo a recorrente a tal explicação, torna-se impossível vislumbrar, na aplicação da norma em apreciação a relações jurídico-tributárias anteriores, uma qualquer violação do princípio da segurança jurídica.
O argumento da recorrente, por outro lado, poderia aplicar-se a qualquer relação jurídica, e não apenas àquela cuja natureza fosse tributária: na verdade, se, para efeitos da aplicação de uma lei reguladora dos graus de jurisdição, fosse decisivo o momento da constituição da relação tributária, em atenção às expectativas criadas nos interessados, então nenhum motivo existiria para não considerar decisivo tal momento quando estivesse em causa outra relação jurídica.
Bem se vê como tal conclusão teria consequências absolutamente perniciosas: seria sempre aplicável a lei reguladora dos graus de jurisdição que estivesse em vigor no momento da constituição de qualquer relação. Mesmo que uma relação jurídica se tivesse constituído há dezenas de anos, a qualquer processo dela emergente seria sempre aplicável a lei reguladora dos graus de jurisdição vigente nesse momento.
Por outro lado ainda, o argumento da recorrente, levado ao extremo, conduziria à aplicação de qualquer norma adjectiva (e não apenas daquela que regulasse os graus de jurisdição) vigente no momento da constituição da relação jurídica, em qualquer processo emergente dessa relação, desde que tal norma fosse mais favorável. A aplicação no tempo da lei processual obedeceria sempre ao critério do momento da constituição da relação substantiva, o que geraria a total indefinição e casuísmo em matéria de aplicação dessa lei.
Finalmente, registe-se que nunca poderia sustentar-se que, com a aplicação da norma do artigo 120º do ETAF ao processo de que emergiram os presentes autos, tivessem resultado afectadas de modo infundado e arbitrário expectativas legítimas objectivamente consolidadas, o que sempre afastaria a violação do princípio da segurança jurídica.
Com efeito, no momento da constituição de tal relação jurídico-tributária, não existia qualquer preceito que, em matéria de graus de jurisdição no contencioso tributário, mandasse aplicar a lei vigente no momento da constituição da relação jurídico-tributária e que, por isso, pudesse ter criado na recorrente a expectativa legítima objectivamente fundada quanto à aplicabilidade de certa lei.
A este propósito, disse o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º
580/99, de 20 de Outubro (publicado no Diário da República, II Série, n.º 43, de
21 de Fevereiro de 2000, p. 3517):
“[...]
7. A recorrente sustenta, por um lado, que as normas impugnadas violam os princípios da confiança e da boa fé, ínsitos no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição. O Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 303/90 (D.R., I Série, de 26 de Dezembro de 1990), afirmou que no princípio do Estado de direito democrático
«está, entre o mais, postulada uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas». Por outro lado, no Acórdão nº 237/98 (D.R., II Série, de 17 de Junho de 1998), o Tribunal considerou que «uma norma jurídica apenas violará o princípio da protecção da confiança do cidadão, ínsito no princípio do Estado de direito, se ela postergar de forma intolerável, arbitrária, opressiva ou demasiado acentuada aquelas exigências de confiança, certeza e segurança que são dimensões essenciais do princípio do Estado de direito». Nesse aresto, afirmou-se ainda que o «princípio do Estado de direito democrático (...) é um princípio cujos contornos são fluidos (...), pelo que tem um conteúdo relativamente indeterminado». Em consequência, concluiu-se que tais características «sempre inspirarão prudência ao intérprete e convidá-lo-ão a não multiplicar, com apoio nesse princípio, as ilações de inconstitucionalidade». Resulta da jurisprudência citada que o Tribunal Constitucional tem entendido que a tutela constitucional da confiança não abrange todo e qualquer juízo de previsibilidade que o sujeito possa fazer em face de determinado quadro normativo vigente. Com efeito, apenas colidirá com a tutela da confiança a afectação infundada e arbitrária de expectativas legítimas objectivamente consolidadas.
[...].”
Improcedem, portanto, pelas razões indicadas, os fundamentos do presente recurso.
III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao presente recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 24 de Março de 2004
Maria Helena Brito Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos
Carlos Pamplona de Oliveira
Luís Nunes de Almeida