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Processo nº 308/02
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - A e B, identificados nos autos, impugnaram judicialmente as liquidações do imposto sucessório devido pelo óbito da mãe de ambos, no montante de 2.817.583$00 cada.
O Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto – 1º Juízo –, por sentença de 15 de Junho de 2001, após enunciar a questão jurídica em causa – determinar se a norma à luz da qual se processaram as liquidações objecto da impugnação enferma de inconstitucionalidade por afronta dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva –, tendo presente a redacção vigente à data do óbito do autor da herança (28 de Janeiro de 1998) do artigo 26º do Código de Imposto Municipal da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações (doravante CIMSISD), aprovado pelo Decreto-Lei nº 41969, de
24 de Novembro de 1958 (com a designação que passou a ter mercê do disposto no artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 308/91, de 17 de Agosto) e a presunção inilidível aí consignada, decidiu julgar a referida norma, no segmento que não permite a ilisão da presunção nela estabelecida, como materialmente inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, anulando, em consequência, as liquidações, na parte em que nas mesmas se considerou a referida presunção.
2. - Notificado, o respectivo magistrado do Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na medida em que a decisão recorrida recusou a aplicação da citada norma.
Recebido o recurso, foram apresentadas alegações pelo Ministério Público, que assim as concluiu:
“1.- A norma constante do artigo 26º do CIMSISD, na redacção emergente do Decreto-Lei nº 252/89, de 9 de Agosto, ao estabelecer uma presunção absoluta e inilidível de que o valor dos bens mobiliários representa, sempre e necessariamente, uma quota de outros bens ou valores patrimoniais da herança, conduz a uma verdadeira ‘ficção’ da existência de bens dessa natureza, sem que seja outorgada ao contribuinte qualquer possibilidade de demonstração de que a real estrutura do património hereditário se não compaginava com tal imposição legal.
2.- Tal interpretação normativa viola os princípios constitucionais da igualdade e da capacidade contributiva.
3.- Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado pela decisão recorrida.”
Os recorridos não alegaram.
Cumpre apreciar e decidir. II
1.1. - Constitui objecto do presente recurso de fiscalização concreta a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 26º do já citado Código, na redacção provinda do artigo 2º do Decreto-Lei nº 252/89, de 9 de Agosto, nos termos da qual se estabelece uma presunção inilidível da existência de bens móveis nos patrimónios hereditários:
“Nas transmissões por morte, quando não houver arrolamento judicial dos mobiliários, presumir-se-á, sem admissão de prova em contrário, a existência de mobílias, dinheiro, jóias e mais objectos de uso pessoal ou doméstico, necessários para perfazer, com os bens da mesma espécie que foram relacionados, um valor mínimo equivalente às seguintes percentagens do activo restante da sucessão [...]”.
A presunção, oriunda do texto originário, foi justificada, na altura, como meio de evitar a evasão e fraude fiscais, tendo em conta a normalidade da existência de bens móveis em qualquer acervo hereditário e, no caso, a facilidade de ilisão dolosa de uma presunção dessa natureza (cfr. o ponto 8 do relatório preambular do Código).
Hoje, de resto, já esse texto não se encontra em vigor – dada a alteração introduzida no preceito pelo artigo 4º do Decreto-Lei nº
472/99, de 8 de Novembro –, o que não implica um não conhecimento, atendendo à data de abertura da sucessão (artigo 2031º do Código Civil e10º do CIMSISD).
1.2. - A questão equacionada e a resolver assenta nesta dimensão normativa: ao criar-se a presunção absoluta da existência de um determinado tipo de património, para efeitos de tributação de matéria colectável, não se ofenderão normas e princípios constitucionais como os que a decisão recorrida convocou?
Escreveu-se aí que semelhante presunção “veda por completo aos contribuintes a possibilidade de contrariarem o facto presumido, sujeitando-os a uma tributação que pode fundar-se numa matéria colectável fixada
à revelia do princípio da igualdade tributária”.
E, observou-se, ainda, do mesmo passo que se dá lugar a um tratamento discriminatório sem qualquer fundamento racional, afronta-se,
“outrossim, o princípio constitucional da capacidade contributiva, dado que permite a tributação de situações sem qualquer suporte na capacidade contributiva”, e que implica conexão efectiva entre “a prestação tributária e o pressuposto económico seleccionado para objecto do imposto”.
Cuidar-se-á de ajuizar da procedência desta fundamentação.
2. - O legislador fiscal recorre com frequência à técnica das presunções, inspiradas em regras da experiência comum, de ciência e outras para, desse modo, garantir mais eficientemente a regular e pronta percepção dos impostos, e, ao mesmo tempo, minorar a evasão e a fraude fiscais, assim conferindo “certeza e simplicidade às relações fiscais” [José Casalta Nabais, Contratos Fiscais (Reflexões acerca da sua admissibilidade), Coimbra, 1994, pág.
279].
O Tribunal Constitucional, por sua vez, sem embargo de considerar a fixação da matéria colectável “um elemento estruturante da obrigação tributária, integrando, nessa medida, o núcleo fundamental do conjunto de matérias cobertas pelas normas constitucionais de âmbito fiscal”, vem considerando não estar constitucionalmente vedado tributar rendimentos presumidos (assim, e por exemplo, o acórdão nº 26/92, publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Junho de 1992, e, no concreto domínio da determinação da base tributável, os acórdãos nºs. 620/99 e 621/99, este publicado no Diário citado, II Série, de 23 de Fevereiro de 2000).
Nesta última perspectiva, o acórdão nº 348/97 (jornal oficial referido, II Série, de 25 de Julho de 1997) admitiu a técnica da presunção desde que permitida a ilisão, situando-se em parâmetros moldados pelo princípio constitucional da igualdade – ou seja, colocando a questão da conformidade jurídico-constitucional da tributação de rendimentos presumidos por forma a confrontá-la com outras situações de tributação, assim ponderando que “a generalidade do dever de pagar impostos significa o seu carácter universal (não discriminatório) e a uniformidade (igualdade) significa que a repartição dos impostos pelos cidadãos há-de obedecer a um critério idêntico para todos”. Uma presunção juris et de jure, escreveu-se então, “veda por completo aos contribuintes a possibilidade de contrariarem o facto presumido, sujeitando-os a uma tributação que pode fundar-se numa matéria colectável fixada à revelia do princípio tributário”.
O aresto revelaria, aliás, segundo já se observou, o germe de um entendimento segundo o qual o princípio da tributação do rendimento real exprime uma exigência constitucional mais vasta que se alarga a toda a tributação do rendimento que, no entanto, exclui o recurso à técnica das presunções absolutas para a definição da incidência ou a determinação da matéria colectável do imposto (cfr. J.M. Cardoso da Costa, “O Enquadramento Constitucional do Direito dos Impostos em Portugal: A Jurisprudência do Tribunal Constitucional”, in Perspectivas Constitucionais. Nos 20 Anos da Constituição de
1976, vol. II, Coimbra, 1997, pág. 425, nota 19).
A entender-se diferentemente, surpreender-se-ia desigualdade de regimes para situações análogas, quanto à questão da tributação em si mesma considerada, sujeitando a critérios não idênticos a articulação entre a prestação tributária e o pressuposto económico seleccionado pelo legislador para objecto do imposto, o que tem a ver com o conceito de capacidade contributiva que, não obstante a sua não consagração constitucional, mais não será do que “a expressão (qualificada) do princípio da igualdade, entendido em sentido material, no domínio dos impostos, ou seja, a igualdade no imposto”
(José Casalta Nabais, “Jurisprudência do Tribunal Constitucional em Matéria Fiscal”, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXIX, 1993, pág. 417. Cfr., igualmente, a anotação do mesmo autor no mencionado acórdão nº 348/97 na revista Fisco, ano IX, nºs. 84/85, págs. 93 e segs. E Clotilde Celorico Palma, “Da Evolução do Conceito de Capacidade Contributiva “ in Ciência e Técnica Fiscal, nº 402, pág. 134, nota 34).
3. - A violação do princípio constitucional da igualdade subentende uma concreta e efectiva situação de diferenciação injustificada ou discriminatória, sendo certo que, a este propósito, a jurisprudência constitucional tem insistentemente sublinhado não proibir aquele princípio que se criem distinções, desde que estas não sejam arbitrárias ou desprovidas de fundamento material bastante.
A fixação da matéria colectável constitui, por sua vez, um momento central de determinação do montante dos impostos, repercutindo-se no seu apuramento e, consequentemente, na vertente garantística dos cidadãos enquanto contribuintes. No desempenho desta tarefa, o legislador, em nome de razões de eficiência da Administração Fiscal e do combate à evasão e à fraude neste domínio, apela a presunções, como técnica de melhor surpreender a realidade fáctica decorrente das diversas situações da vida, avalizadas por critérios de normalidade, socorrendo-se, desse modo, “de factos conhecidos para afirmar outros que desconhece”, e assim ultrapassar as dificuldades probatórias que a determinação da matéria colectável inevitavelmente levanta (cfr. Jorge Bacelar Gouveia, “A Evasão Fiscal na Determinação e Integração da Lei Fiscal”, in Ciência e Técnica Fiscal, nº 373 [1994], pág. 28).
No entanto, esse processo técnico há-de compaginar-se com o respeito pelo princípio da igualdade, por seu turno a congraçar-se com o princípio geral da imposição segundo a capacidade contributiva de cada um, o que não é já de admitir quando – voltando ao caso sub judice – se aceite que, nos valores do acervo hereditário, uma quota de bens de determinada natureza aí esteja representada, absoluta e inilidivelmente.
Ou seja, já não é de admitir, em nome daqueles princípios, uma tal mecânica apoiada em semelhante desrazoabilidade, alheia às decorrências da capacidade contributiva dos contribuintes, nos parâmetros constitucionais da igualdade e, em última análise, da “repartição justa de rendimentos e riqueza”, a que alude o nº 1 do artigo 103º da Constituição – entenda-se esse expediente técnico como ficção da existência de bens de uma dada natureza, ou uma presunção radicada em juízos de “normalidade” de certas situações de vida, uma incidindo mais significativamente no âmbito da formulação, outra mais ligada à prova (cfr. Francisco Rodrigues Pardal, “O Uso das Presunções no Direito Tributário”, in Ciência e Técnica Fiscal, nº. 325/327
[1986], pág. 20). III
Em face do exposto, decide-se:
a) – julgar inconstitucional a norma do artigo 26º do Código do Imposto Municipal da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 41 969, de 24 de Novembro de 1958, na redacção que lhe foi dada pelo nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 308/91, de 17 de Agosto, ao estabelecer, nas transmissões por morte, não ocorrendo “arrolamento judicial dos mobiliários”, uma presunção sem admissão de prova em contrário da existência de uma determinada quota de “mobílias, dinheiro, jóias, e mais objectos de uso pessoal ou doméstico”, por se considerar que uma presunção inilidível, neste domínio, viola o princípio constitucional da igualdade, conexionado com o da capacidade contributiva, contidos nos artigos 13º, nº 1, e
104º, nº 3, da Constituição da República;
b) consequentemente, negar provimento ao recurso.
Lisboa, 28 de Abril de 2003 Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida