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Proc. n.º 130/01
2ª Secção Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – O relatório
1 - A. recorre para o Tribunal Constitucional dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Outubro de 2000, 30 de Novembro de 2000 e de 8 de Fevereiro de 2001, pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade dos
«artigos 751º do Código de Processo Civil (CPC), de 1961, por violação dos princípios e normas consagradas nos artigos 2º, 3º, n.º 3, 20º, n.os 1, 2, 4 e
5, 202º, n.º 2 (na vertente de defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos), 268º, n.os 1, 2 e 4 (direito à informação por parte da secretaria judicial), e 282º, n.os 3 e 4 (respeito pelo caso julgado), todos da Constituição; do artigo 175º, n.º 3 do CPC, por violação dos mesmos princípios e normas constitucionais já invocadas; do artigo 720º, n.º 1, ainda do mesmo código, conjugada com a do artigo 456º do CPC, na redacção anterior à reforma de
95/96, por violação dos princípios constitucionais do dispositivo e da confiança e da segurança jurídicas plasmados no artigo 2º da Constituição, e da garantia constitucional de defesa do artigo 32º, n.º 10; dos artigos 456º do CPC e 102º do Código das Custas Judiciais (CCJ), por violação dos princípios e das normas dos artigos 2º, 3º, n.º 3, 18º, n.os 1 e 2, 20º, n.os 1 e 4, 25º, n.º 1
(integridade moral), 26º, n.º 1 (direito ao bom nome e reputação), 32º, n.º 10,
62º, n.º 1, e 165º, n.º 1, alíneas b) e i), da Constituição; e do artigo 16º do CCJ, por violação dos princípios da confiança e da segurança jurídica, e da legalidade e tipicidade tributárias, ínsitos no artigo 2º e normas do artigo
165º, n.º 1, alíneas b) e i), da Constituição”.
2 - Nas decisões recorridas, decidiu-se, em resumo:
a) no acórdão de 12 de Outubro de 2000 - ordenar a autuação em separado dos elementos incorporados em outro processo (o processo principal) relativos à passagem de uma certidão requerida pelo recorrente ao relator do processo principal, no Tribunal Constitucional; indeferir a arguição de nulidade de passagem, por parte do Supremo Tribunal de Justiça, da certidão requerida, e condenar o Requerente na multa de 100 UC., por litigância de má fé, sendo esta decisão do seguinte teor:
« A requerimento de A. e conforme o decidido pelo Relator, há que considerar três itens:
1° Processamento em separado da questão relativa à passagem de certidão;
2° Nulidade do despacho que ordenou a passagem da referida certidão;
3° Litigância de má fé por via da actuação do referido Requerente.
1ª questão: Processamento em separado da questão relativa à passagem de certidão. Pretendeu-se a passagem de uma certidão para fins de demonstração de que de determinados despachos da Relação, a fixarem o efeito de recurso, não tinham sido impugnados. A questão que foi posta pelo Requerente ao Tribunal Constitucional, entre muitas outras, traduziu-se na invocação da inconstitucionalidade da disposição processual que permite aos Tribunais Superiores a alteração do efeito do recurso. Aquele Tribunal enviou, por despacho não impugnado, o processo a este Supremo para que aqui se passasse a certidão pretendida. O que se fez de pronto, afirmando-se que os referidos despachos não haviam transitado, já que só é susceptível de transitar o que não pode ser alterado. É o que resulta literalmente da lei. Surge, então, a presente questão, na linha complexiva, obstacularizante, utilizada infatigavelmente aos longos dos autos. Justifica-se, pois, claramente, o processamento do presente incidente, em separado, nos termos do art. 720º do CPC, para que, entretanto, o processo principal possa prosseguir os seus termos.
2ª questão: Nulidade do despacho que ordenou a passagem da referida certidão. O despacho do Relator, que ordenou a passagem da certidão, seria nulo porque não foi isso que o Requerente pediu, pois pretendia a baixa do processo à Relação para ela proferir o respectivo despacho. Seria mais uma longa pausa no processo, pretensão obviamente integrada no mencionado propósito obstrutivo, a esmo evidenciado, do andamento normal dos autos. O Tribunal Constitucional entendeu não se pronunciar sobre a matéria e ordenou que o processo fosse remetido a este Supremo exactamente para aquele fim. O respectivo despacho não o impugnou o Requerente. Sublinha-se, mais uma vez, a falta de razão justificativa da pretendida baixa do processo, quando, afinal, se discutia a referida inconstitucionalidade e a lei declara a mencionada alterabilidade. Fosse qual fosse a posição da Relação, nada se alteraria. Desde modo, resulta a pertinência do despacho do Relator quando afirma:
“Está em causa a competência para a passagem de uma simples certidão a fim de, segundo os Requerentes, ser remetida a várias entidades que indicam. Entendeu a Ex.ma Consª. Relatora do Tribunal Constitucional não ordenar tal passagem, mandando que os autos fossem remetidos a este Supremo para tal fim. Neste Pretório foi ordenado aquele acto e a entrega aos Requerentes, devolvendo-se os autos àquele Tribunal. Aqueles, porém, entendem que a passagem da certidão deve ser ordenada pelo Tribunal que praticou os actos certificandos. Salvo o devido respeito, é simplesmente absurda e inoportuna tal pretensão, pois que, numa perspectiva teleológica, não se vislumbra outra finalidade para além de entraves ao andamento normal de um processo - providência cautelar -, por sua natureza urgente. Certidão é uma simples cópia destinada a comprovar os actos que menciona. E um mero documento estático, carecente de potencialidade criadora ou destrutiva, mas os Requerentes parece que pretendem obter uma declaração do Tribunal recorrido no sentido de que as decisões certificandas não transitaram porque nenhum recurso foi interposto, pretendendo, assim, extrair um efeito dinâmico, criativo, da certidão. A anodinia de tal declaração e o irrealismo da pretensão são patentes, porque sempre se tomba na mesma situação expressa a fls. 20 do acórdão deste Supremo, nos autos proferido: ‘Como é sabido, o erro quanto ao efeito e ao regime de subida dos recursos não faz caso julgado, podendo os tribunais superiores alterá-los. O Tribunal da Relação entendeu que a todos os recursos cabia efeito suspensivo, subindo imediatamente, nos próprios autos. Esta posição pode - e deve, se for o caso - ser revista hic et nunc ...’ E entendeu-se, efectivamente, que era o caso, pelo que não se compreende a tese dos Requerentes, invocadora, inclusive, de uma panóplia de inconstitucionalidades, a não ser em defesa do referido escopo - mera perturbação da tramitação processual - ética e juridicamente incomportável.
O nosso despacho ordenador da passagem da certidão não enferma, pois, de qualquer vício, pelo que terá a questão que ser submetida à. CONFERÊNCIA, como se requer.”
Feita esta subsunção, confirma-se, pois, o referido despacho. As questões reportam-se a uns autos de caução, mas na sequência de uma providência cautelar, justificando-se a extensão da natureza urgente do processado. Não obstante, o Requerente tudo tem feito para evitar um andamento normal do processo. E não deixa o Requerente de invocar, ainda agora, mais uma inconstitucionalidade, considerando que se fez uma interpretação ferida daquela mazela. É apenas mais uma tentativa de complexificação, pois se não vislumbra nada daquele jaez. Há, portanto, que indeferir tudo o requerido.
3ª questão: Litigância de má fé por via da actuação do referido Requerente O Requerente afirma não ter interesse em levantar obstáculos ao andamento do processo. A afirmação é desmentida, a cada passo, por muitas das suas intervenções processuais assentes em teses irrealistas como as inúmeras e insustentadas inconstitucionalidades, a pretensão relativa à certidão - argumento de última hora aduzido já no TC - as extensas e confusas posições em cada intervenção, as afirmações pouco elegantes em relação ao intérprete, as insinuações absurdas quanto à actuação processual de funcionários. Por último, a fantástica arguição de suspeição do Relator por inimizade grave, tema devidamente tratado no douto despacho do Ex.mo Conselheiro Presidente deste Supremo. De toda esta singular panóplia emerge a necessidade inarredável de sancionar toda uma dolosa actuação constitutiva de óbvia litigância de má fé, a solicitar a aplicação do máximo da multa fixado pelo art. 102°, alínea a), do Código das Custas Judiciais.
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Nestes termos:
a) Autue em separado os elementos incorporados do processo principal; b) Indefere-se a arguição de nulidades, confirmando-se a decisão do Relator; c) Condena-se o requerente A. na multa de cem (100) UC, por litigância de má fé.
Comunique à Ordem dos Advogados, para os devidos efeitos, juntando cópia do presente acórdão e dos proferidos no processo principal (os deste Supremo e do Tribunal Constitucional, além do despacho do Ex.mo Presidente deste STJ, proferido no apenso de suspeição).».
b) no acórdão de 30 de Novembro de 2000, indeferir o pedido de aclaração da decisão anterior, sendo o seu teor o seguinte:
«O Exmº Advogado A. veio, ao abrigo do disposto no art. 669º, nº 1, a), do C.P.C. dizer e requerer o seguinte: Por despacho de 6/4/00, o Exmº Conselheiro relator ordenou que um seu requerimento, entrado em 27/03/00, fosse autuado em separado, com fundamento no artº 720º do C.P.C. , e no acórdão de 12/10/00 determina-se: “autue em separado os elementos incorporados do processo principal”. Daqui resulta uma ambiguidade objectiva e subsiste obscuridade quanto aos referidos “elementos incorporados do processo principal”. Por outro lado e quanto à condenação em multa, não se encontra identificado o preceito legal em que se contém a norma jurídica que a comina, nem qual o preceito legal e respectiva norma jurídica em que assenta a sua graduação. A parte contrária, notificada, pugnou pelo indeferimento da aclaração. Cumpre decidir: Em primeiro lugar, cabe referir que nos termos do art. 669º, nº 1, a), do C.P.C.
, o que é passível de aclaração é a sentença (ou acórdão) e não esta (ou este) comparado com um despacho que anteriormente seja proferido. E lendo o acórdão, verifica-se facilmente que ele nem é obscuro nem ambíguo, pois é perfeitamente inteligível e não comporta interpretações diferentes e por isso não é passível de aclaração, tanto mais que ele apenas reforça e esclarece o que deve ser autuado em separado. Quanto à multa aplicada no acórdão por litigância de má fé aí se apontam os factos que a caracterizam e se diz que deve ser cotada no máximo e se indica o art. 102º do C.C. Judiciais que a comina. Tudo claro como a mais límpida das águas. Pelo exposto se indefere a requerida aclaração. Custas pelo requerente, fixando a taxa de justiça em 6 UC.»;
c) e no acórdão de 8 de Fevereiro de 2001, indeferir o pedido de reforma do acórdão acima referido sob a alínea a), tendo-se então escrito:
«O Exmo Advogado A. veio, nos termos do art. 669, nº 2, do C.P.Civil, requerer a reforma do acórdão proferido em 12.10.2000, e que já fora objecto de um pedido de aclaração, decidido pelo acórdão de 30.11.00, e que visava sobretudo a sua condenação em custas e multa. Também se insurgiu contra a condenação neste último em taxa de justiça. Vem agora, em longo requerimento, invocar vários erros de julgamento e múltiplas inconstitucionalidades, a propósito de tudo quanto foi decidido. A parte contrária foi notificada e defende que o acórdão de 12.10.00 não padece de qualquer vício e manifesta dúvidas quanto à oportunidade para arguir as referidas inconstitucionalidades. Também nós partilhamos daquelas dúvidas, pois a reforma da sentença tem um objectivo perfeitamente definido, mas quanto ao requerido sucintamente oferece-nos dizer o seguinte: a) - quanto à autuação em separado, ordenada nos termos do art. 720º do C.P.Civil, os autos são exuberantes em mostrar a clareza do procedimento que se seguiu, nada mais havendo a acrescentar. b) - quanto à multa aplicada ao requerente, também os autos são claros, indicando-se a razão e o preceito que a fundamentou, nada havendo a alterar ou acrescentar. c) - no que concerne à tributação do pedido de aclaração, entendemos que é um incidente processual passível de taxa de justiça, quando infundamentado e com manifesta intenção dilatória, como é o caso, e tributável nos termos do art. 16º do C.C.Judiciais. Há outros entendimentos? Ainda bem. d) - como tributável é o presente incidente, porque a ele presidem as mesmas características. Pelo exposto e sem mais considerações se indefere a requerida reforma. Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 6UC.».
3 - Alegando sobre o objecto do recurso, assim concluiu o recorrente a exposições das razões aí expendidas:
«1º A interpretação levada a cabo pelo Supremo Tribunal de Justiça segundo a qual o art. 751° do CPC, seja na versão anterior à Reforma de 1995-1996, seja na versão introduzida por aquela mesma Reforma, permitem ao Supremo Tribunal de Justiça alterar o efeito do recurso interposto da Primeira Instância para a Relação conduz à inconstitucionalidade de tais preceitos legais, por violação do princípio da independência dos Tribunais e do princípio da segurança jurídica, constantes dos arts. 203° e 20° da Constituição.
2ª. A interpretação do Supremo Tribunal de Justiça, segundo a qual há litigância de má fé quando se requer a passagem de uma certidão com a menção de que dois acórdãos haviam transitado em julgado e, posta em causa tal possibilidade pelo aludido Tribunal, se insiste naquele pedido, apresentando os fundamentos da referida pretensão, conduz à inconstitucionalidade do art. 456° do CPC, por violação da garantia constitucional de acesso ao direito e aos tribunais (art. 20° da CRP), do direito à informação (art. 26° da CRP) e do exercício do patrocínio (art. 208° da CRP)
3ª A interpretação do art. 456° do CPC e do art. 102° do CCJ – efectuada pelo Supremo Tribunal de Justiça - no sentido de determinarem ou pelo menos consentirem que se seja condenado numa multa que ascende a cem unidades de conta por se ter pedido a passagem de uma certidão com a menção de que as decisões a certificar haviam transitado em julgado conduz à inconstitucionalidade de tais preceitos, estando-se diante de uma flagrante violação do princípio da proporcionalidade, consagrado no art. 18° da Constituição.
Nestes termos e nos mais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, julgando-se inconstitucionais os artigos 456° e 751° do CPC e o art.
102° do CCJ na interpretação que lhes foi dada pelo Supremo Tribunal de Justiça, interpretação essa acima exposta, com todas as consequências legais.».
4 - Contra-alegando, a recorrida B. suscitou a questão prévia do não conhecimento do recurso de constitucionalidade e, subsidiariamente, defendeu o não provimento do recurso, condensando tal posição nas seguintes conclusões:
«1ª - Não deve conhecer-se do presente recurso na parte respeitante
à invocada inconstitucionalidade das normas do art. 751° do C.P.C., seja na redacção anterior seja na posterior à reforma de 1995, uma vez que tais normas não foram aplicadas na douta decisão recorrida; ainda que assim não fosse, certo
é que a questão suscitada pelo Recorrente a propósito daquelas normas foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional, nos presentes autos, em anterior recurso interposto pelo ora novamente Recorrente; acresce que mesmo que se entendesse terem sido as mencionadas normas aplicadas no douto acórdão recorrido, elas não o teriam sido com o sentido que o Recorrente alega ser inconstitucional.
2ª. - Não deve, também, conhecer-se do presente recurso na parte respeitante à invocada inconstitucionalidade das normas dos arts. 456° do C.P.C. e 102° do Código das Custas Judiciais, pois na decisão recorrida não foram aplicadas tais normas com o sentido que o Recorrente afirma ser inconstitucional.
3ª. - Ainda que devesse conhecer-se do objecto do recurso, este deveria julgar-se inteiramente improcedente.
4ª. - Uma vez que não existia caso julgado nos autos sobre a matéria do efeito e do regime de subida dos recursos, cabia ao S. T. J. o poder de reapreciar essa mesma questão do efeito do recurso sem com isso invadir a esfera de competência de qualquer outro Tribunal, e sem que tal reapreciação pudesse significar ofensa da segurança jurídica.
5ª. - A interpretação que foi feita da norma do art. 456° do C.P.C. não importa ofensa à garantia de acesso ao direito e aos Tribunais nem ao exercício do patrocínio e muito menos significa qualquer restrição do direito à informação, pois que o exercício de tais direitos está necessariamente sujeito a limites e a norma em causa estabelece justamente determinadas regras que permitem sancionar actuações processuais violadoras de princípios fundamentais.
6ª. - A aplicação feita na douta decisão recorrida das normas dos arts. 456° do C.P.C. e 102° do C.C.J. não ofende o princípio da proporcionalidade, tanto mais que resulta inequivocamente do douto acórdão recorrido que este considera muito gravosa a actuação geradora da condenação em litigância de má fé.».
5 - Ouvido o recorrente sobre a questão prévia suscitada pela recorrida, nada disse.
B – A fundamentação
6 - Enquadramento histórico das decisões recorridas
Para melhor se compreenderem as decisões recorridas importa fazer um curta resenha histórica do que processualmente as antecedeu.
Quando se encontrava pendente neste Tribunal Constitucional o processo n.º 690/99, vindo do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), e onde veio a ser proferido o Acórdão n.º 156/2000, o recorrente requereu ao seu relator a passagem de certidão de dois acórdãos proferidos nos autos pelo Tribunal da Relação do Porto, com a menção de trânsito em julgado. Para tal efeito, os autos foram remetidos ao tribunal recorrido (STJ), tendo o relator, em tal tribunal, ordenado a passagem da requerida certidão, mas “com a menção de que não há trânsito em julgado” dado que “o erro quanto ao efeito e ao regime dos recursos não faz caso julgado”. Contra o despacho que ordenou a passagem em tais termos da certidão reagiu o recorrente, arguindo a sua nulidade e requerendo a remessa dos autos àquele Tribunal da Relação para o efeito de ser passada certidão conforme com o pedido. O relator, no STJ, indeferiu o requerido e, após ordenar que o processado se efectuasse em separado nos termos do art. 720º do CPC e que as partes fossem ouvidas “sobre a natureza da actuação dos recorrentes, em termos de boa ou má fé”, levou a questão à decisão da conferência. A conferência decidiu nos termos acima transcritos no n.º 2, alínea a). Seguiram-se as demais decisões recorridas.
7 - Da delimitação do objecto do recurso
Como vem sendo sucessivamente reiterado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, o objecto do recurso de constitucionalidade é delimitado no requerimento de interposição do recurso, dado definir o âmbito do pedido efectuado àquele Tribunal. Porém, tal não impede que o recorrente venha depois a restringi-lo, expressa ou tacitamente, como, aliás, se prevê expressamente no art. 684º, n.º 3, do CPC
(aplicável ao processo constitucional por força do disposto no art. 69º da LTC). O que não pode é ser ampliado, modificado ou substituído por outro cfr., entre outros, os Acórdãos n.os 634/94, 20/97 e 243/97, publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 31 de Janeiro de 1995 e de 1 de Março de 1997 e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36º vol., pp. 309 e ss.).
Ora, como se constata das suas alegações, o recorrente abandonou a questão da inconstitucionalidade do artigo 16º do Código das Custas Judiciais, já que sobre ela não discorreu na parte discursiva de tal articulado, nem a incluiu nas respectivas conclusões.
Sendo assim, há que considerar excluída do objecto do recurso a questão de inconstitucionalidade relativa a esta norma.
8 - Antes de mais, cumpre decidir a questão prévia, de não conhecimento do recurso, que foi suscitada pela recorrida.
8.1. - Sustenta a recorrida que não deve conhecer-se do recurso na parte relativa à invocada inconstitucionalidade das normas do artigo 751º do CPC, seja na redacção anterior seja na posterior à reforma de 1995, uma vez que tais normas não foram aplicadas nas decisões recorridas. “Onde tal norma foi aplicada foi antes no douto acórdão do STJ, de 21.10.99” – diz a recorrida. “Aliás - continua ela - o próprio recorrente, no requerimento de interposição de recurso, afirma ter a norma do art. 751º do CPC sido aplicada na decisão de fls. 690 dos autos principais, que não é a decisão recorrida no presente processo”.
Constitui pressuposto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, aqui interposto ao abrigo do art. 70º, n.º 1, alínea b), da LTC, o de que a norma cuja constitucionalidade se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie tenha sido aplicada pela decisão recorrida ou, numa formulação mais precisa, que a norma tenha constituído ratio decidendi da decisão ou o fundamento normativo do conteúdo da decisão (cfr., a título de mero exemplo, o Acórdão n.º 232/02, publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Julho de 2002). Trata-se de um pressuposto demandado pela própria natureza da jurisdição, aqui constitucional, dado que lhe compete conhecer apenas de controvérsias concretas e não a título académico ou hipotético.
Analisadas as decisões recorridas, constata-se que, efectivamente, estas não aplicaram a norma do artigo 751º do CPC, na redacção anterior ou posterior à reforma de 1995, ou, dito de outro modo, que essa norma não constituiu fundamento normativo do decidido em qualquer dos acórdãos recorridos. Aliás, segundo é alegado pelo próprio recorrente, no seu requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, essa norma “foi aplicada na decisão de fls.
690 dos autos principais que deu origem a este processo”, acórdão esse que não está aqui em causa. A circunstância factual de a actual controvérsia ter por fundamento, na parte relativa à questão jurídica postulada por esta norma, o decidido anteriormente relativamente a ela em outro acórdão proferido no processo principal, e aí sujeito a recursos autónomos, inclusive de constitucionalidade, não converte a decisão aí tomada (acórdão pretexto) e a respectiva fundamentação em fundamentos do acórdão decisório da actual contenda. E isto é assim ainda que a questão jurídica tenha sido formulada a partir da interpretação de outros preceitos legais. O decisivo é que a questão jurídica seja a mesma, como aconteceu no caso sub judicio, em que ela foi enunciada com base em um entendimento conjugado do disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 700º e do n.º 1 do art. 758º do CPC, sempre se tratando, em qualquer dos casos, de saber se ofende o princípio da intangibilidade do caso julgado, acórdão do STJ que, sem que a matéria haja sido posta em causa na Relação, decida ser nulo, por falta de jurisdição, o despacho da 1ª instância - que, após haver sido fixado, por outro despacho anterior, efeito devolutivo e a subir em separado a recurso interposto de sentença da mesma instância, altere o efeito e regime de subida dos recursos para suspensivo e a subir nos autos - e desse modo considere não se formar caso julgado sobre o erro quanto ao efeito e regime de subida do recurso em que haja incorrido o segundo despacho. Conclui-se assim não ocorrer o referido requisito deste tipo de recurso, de aplicação da norma do art. 751º do CPC.
8.2 - Defende ainda a recorrida que as normas dos artigos 456º do CPC e 102º do CCJ não foram aplicadas nas decisões recorridas com a dimensão ou significado normativos cuja inconstitucionalidade o recorrente questiona e que, por isso, não se deve tomar também conhecimento do recurso na parte que se lhes refere.
De acordo com as suas alegações de recurso, que nesta matéria precisam o sentido do afirmado no requerimento da sua interposição, o recorrente controverte a constitucionalidade do art. 456º do CPC na interpretação, que diz haver sido aplicada pelo STJ, “segundo a qual há litigância de má fé quando se requer a passagem de uma certidão com a menção de que dois acórdãos haviam transitado em julgado e, posta em causa tal possibilidade pelo aludido Tribunal, se insiste naquele pedido apresentando os fundamentos da referida pretensão”, sustentando que ela viola a garantia constitucional de acesso ao direito e aos tribunais
(art. 20º da CRP), do direito à informação (art. 26º da CRP) e do exercício de patrocínio (art. 208º da CRP).
Por seu lado, o recorrente refuta igualmente a constitucionalidade, por
“flagrante violação do princípio da proporcionalidade consagrado no art. 18º da Constituição”, da interpretação do art. 456º do CPC e do art. 102º do CCJ, que diz ter sido igualmente efectuada e aplicada pelo STJ, “no sentido de [tais preceitos] determinarem ou pelo menos consentirem que se seja condenado numa multa que ascende a cem unidades de conta por se ter pedido a passagem de uma certidão com a menção de que as decisões a certificar haviam transitado em julgado”.
Ora, a razão da condenação do recorrente, no montante de 100 UC., como litigante de má fé não coincide com as dimensões normativas dos preceitos do art. 456º do CPC e do art. 102º do CCJ que o recorrente definiu e cujas inconstitucionalidades pretende ver apreciadas.
A este respeito - e relembrando o acima já transcrito - assim discorreu o acórdão recorrido, de 12 de Outubro de 2000:
« Litigância de má fé por via da actuação do referido Requerente O Requerente afirma não ter interesse em levantar obstáculos ao andamento do processo. A afirmação é desmentida, a cada passo, por muitas das suas intervenções processuais assentes em teses irrealistas como as inúmeras e insustentadas inconstitucionalidades, a pretensão relativa à certidão - argumento de última hora aduzido já no TC -, as extensas e confusas posições em cada intervenção, as afirmações pouco elegantes em relação ao intérprete, as insinuações absurdas quanto à actuação processual de funcionários. Por último, a fantástica arguição de suspeição do Relator por inimizade grave, tema devidamente tratado no douto despacho do Ex.mo Conselheiro Presidente deste Supremo. De toda esta singular panóplia emerge a necessidade inarredável de sancionar toda uma dolosa actuação constitutiva de óbvia litigância de má fé, a solicitar a aplicação do máximo da multa fixado pelo art. 102°, a), do Código das Custas Judiciais.».
Por seu lado, no acórdão de 30 de Novembro de 2000, em consequência de pedido de aclaração do anterior acórdão disse-se mais o seguinte:
«[...] Quanto à multa aplicada no acórdão por litigância de má fé aí se apontam os factos que a caracterizam e se diz que deve ser cotada no máximo e se indica o art. 102º do C. C. Judiciais que a comina.
[...]».
E no último acórdão, de 8 de Fevereiro de 2001, que apreciou o pedido de reforma do primeiro acórdão, indeferindo-o, considerou-se:
«[...] b) – quanto à multa aplicada ao Requerente, também os autos são claros, indicando-se a razão e o preceito que a fundamentou, nada havendo a alterar ou a acrescentar.
[...]».
De todo este discurso dos acórdãos recorridos resulta que o fundamento da condenação do recorrente como litigante de má fé e no montante da multa de 100 UC. não está associado pela decisão recorrida, de modo exclusivo ou sequer prevalente, ao pedido de passagem de certidão, mas antes à valoração global de um diversificado leque de condutas processuais do recorrente, tidas no decurso da lide, entre elas se apontando, a título de mero elemento de uma estratégia de obstaculização do regular andamento do processo, o pedido de passagem de certidão com a menção de que os dois acórdãos haviam transitado em julgado e a insistência no mesmo pedido após o tribunal haver negado a possibilidade de certificar esse trânsito em julgado.
Na verdade, o tribunal a quo considerou que o recorrente adoptou, no processo, uma postura deliberada de tentar entravar o seu andamento, atitude essa que estava traduzida em “[...] muitas intervenções processuais assentes em teses irrealistas como as inúmeras e insustentadas inconstitucionalidades, a pretensão relativa à certidão - argumento de última hora aduzido já no TC - as extensas e confusas posições em cada intervenção, as afirmações pouco elegantes em relação ao intérprete, as insinuações absurdas quanto à actuação processual de funcionários” e “por último, a fantástica arguição de suspeição do Relator por inimizade grave”, tudo “a solicitar a aplicação do máximo da multa fixado pelo art. 102º, alínea a), do Código das Custas Judiciais”. Decorre do exposto que o padrão de valoração global da conduta do recorrente que foi utilizado pelo tribunal a quo para concluir que o recorrente havia litigado de má fé e para o condenar no máximo da multa não se justapõe ao que o recorrente definiu, mas é um outro diverso, mais complexo quanto ao seu conteúdo sob o ponto de vista global. Tanto basta para se concluir que, também, as dimensões normativas dos arts. 456º do CPC e 102º do CCJ, cuja inconstitucionalidade o recorrente pretende sindicar, não foram aplicadas pelos acórdãos recorridos e que, portanto, não se pode conhecer do recurso. Deste modo procede inteiramente a questão prévia suscitada pela recorrida.
C – A decisão
9 - Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do recurso. Custas pelo recorrente com taxa de justiça que se fixa em 10 UC.
Lisboa, 23 de Março de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos