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Proc. nº 617/02
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Sesimbra foi o ora recorrente, A, condenado na coima de 5.000.000$00, por ter praticado a contra-ordenação prevista e punida pelo artigo 58º, nºs 1 e 4 do Decreto-Lei nº 448/91, de 29 de Novembro, e como litigante de má-fé em multa que se fixou em 20 unidades de conta.
2. Inconformado com aquela decisão, dela recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 26 de Fevereiro de 2002, julgou o recurso totalmente improcedente.
3. Novamente inconformado o recorrente apresentou, na mesma data, dois requerimentos. Um primeiro (fls. 302 a 310) em que requeria a declaração de nulidade daquele acórdão da Relação de Lisboa, e um segundo (fls. 311 e 312) em que recorria do mesmo acórdão para o Tribunal Constitucional. Este segundo requerimento (o que agora importa) tem o seguinte teor:
'A, recorrente nos autos supra identificados, tendo sido notificado, por carta registada de 27.02.02, do acórdão proferido em 26.2.02, não se conformando com o mesmo, por ter aplicado normas com sentido ilegal/inconstitucional (conclusões
12ª, 13ª e 14ª), e porque o acórdão não é equitativo, vem recorrer do referido aresto para o Tribunal Constitucional'.
4. Na sequência foi proferido pelo Relator do processo um despacho em que se considerou que o requerimento em que se arguiu a nulidade do acórdão estava automaticamente prejudicado pela interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, que se admitiu (fls. 334).
5. Deste despacho o recorrente reclamou para a Conferência (fls. 340 a 343), que, por acórdão de 9 de Julho de 2002 (fls. 356 e 357), julgou o requerimento improcedente.
6. Desta decisão foi interposto um segundo recurso para o Tribunal Constitucional, através de um requerimento que tem o seguinte teor (fls. 363 e
364):
'A, recorrente nos autos supra identificados, tendo sido notificado, por carta registada de 17.07.02, do acórdão proferido em 09.7.02, não se conformando com o mesmo, por ter aplicado a norma do artigo 670º, nº 1/2 do CPC com sentido ilegal/inconstitucional, porque se fosse requerida a reforma e a decisão fosse de indeferimento já não seria possível interpor recurso, e porque o acórdão não
é equitativo (art. 20º/4/CRP), vem recorrer do referido aresto para o Venerando Tribunal Constitucional de Lisboa'.
7. Admitido o recurso pelo Tribunal da Relação de Lisboa e subidos os autos ao Tribunal Constitucional, foi o recorrente notificado, por despacho de 15 de Outubro de 2002 (fls. 366), para que desse 'cabal cumprimento ao disposto no art. 75º-A da LTC'.
8. Em resposta a esta solicitação o recorrente apresentou o requerimento de fls.
367 a 377, em que afirma o seguinte:
'(...) I. Indicação da alínea do nº 1 do art. 70º da LTC ao abrigo da qual recorre:
1. O recurso é interposto com base na alínea b) do nº 1 do art. 70º. II. Normas cuja inconstitucionalidade/ilegalidade se pretende que o TC aprecie.
2. Os acórdãos recorridos interpretam de forma ilegal/inconstitucional as normas dos artigos 66º a 73º do DL 433/82, de 27 de Outubro (com as alterações introduzidas pelo DL 244/95, de 14 de Setembro) e do art. 14º do DL 17/91, que não podem conter o sentido inconstitucional da proibição do direito à prova, do direito à documentação e do direito ao recurso, porque tal interpretação viola os art.s 18º/2, 20º e 32º/10 da Constituição. Assim, não estão assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa, porque ficou privado do direito à prova por inspecção judicial, que no caso dos autos se revela imprescindível.
3. A decisão de 27.6.01, de fls., esclareceu que «em processo de contra-ordenação não pode haver recurso autónomo da decisão que indefere a inspecção judicial, mas essa decisão pode ser impugnada, desde que a impugnação tenha lugar em recurso interposto da sentença ou despacho final, quando o recurso é admissível ao abrigo do art. 73º do DL 433/82 'o que foi feito pelo recorrente'. Efectivamente, foi impugnada a decisão que indeferiu o pedido de inspecção judicial em recurso interposto da sentença e esta questão da máxima relevância para a boa decisão da causa continua sem pronúncia judicial (art. 379º/1/c do CPP). A decisão recorrida aplicou a norma inconstitucional do art. 73º do DL 433/82, ou pelo menos deu-lhe um sentido/uma dimensão inconstitucional. Na verdade, em processo de contra-ordenação, como em processo criminal, pode e deve haver recurso autónomo da decisão que indefere uma inspecção judicial absolutamente indispensável, doutra forma ocorre automaticamente o trânsito em julgado que conduzirá a uma decisão final contraditória aos interesses do arguido (Assento nº 6/2000 do STJ de 19.1.00 – in DR, I série A, nº 56º, de
7.3.00 -, por analogia, pois trata-se de matéria relativa às nulidades/questões prévias ou incidentais arguidas no decurso do inquérito/instrução).
4. O erro de palmatória está em aplicar ao processo criminal a norma do art.
456º/2/1 do CPC, pois a litigância de má-fé, a nível do arguido, - que até tem o direito de mentir, o que não sucede neste caso, pois relatou a verdade física e documental – constitui um conceito extravagante e logicamente absurdo.
5. O recorrente/reclamante sofre os prejuízos resultantes da privação ilícita de um meio de impugnação do acórdão em crise, designadamente do requerimento de arguição de nulidade de fls., sendo certo que tal procedimento é ilegal e coabita inequivocamente com a interposição de recurso para o TC, de tal modo que decidida a arguição de nulidade é lícito ainda ampliar a matéria do recurso para o TC. O Venerando TC não se debruça sobre os vícios de nulidade do acórdão em foco, mas sim sobre a ilegalidade/inconstitucionalidade das normas aplicadas pelo referido aresto (art. 71º da LTC). Consequentemente os vícios de nulidade atacam-se em sede de arguição de nulidade e a ilegalidade/inconstitucionalidade em sede de recurso para o TC, e esses dois meios processuais interpõem-se paralelamente e correm sequencialmente (primeiro arguição e depois recurso para o TC). – (art.s 70º/2 e 75º/2 da LTC). A Lei do Tribunal Constitucional nº 28/82 de 15 de Novembro alterada pela Lei nº
13-A/98, de 26 de Fevereiro opõe-se à decisão de 16.4.02, de fls. 334, tudo se passando como é referido no requerimento de 10.4.02. Efectivamente, a arguição de nulidade do acórdão coabita com a interposição de recurso para o TC, porque este recurso é especial e não ordinário, não interferindo um requerimento com o outro. Os dois requerimentos em questão têm existência autónoma, não se rejeitando, pois correm paralelamente.
6. Também foi aplicada a norma do art. 670º/1/2/ do CPC com sentido ilegal/inconstitucional porque se fosse requerida a reforma e a decisão fosse de indeferimento já não seria possível interpor recurso. III - Normas e princípios constitucionais/legais violados.
7. Tendo sido preterida a inspecção judicial requerida, o julgador reduziu o direito à prova a uma mera operação de cosmética processual, pelo que foi violado o disposto nos artigos 120º, 125º, 126º e 340º do CPP e os princípios constitucionais que impõem uma defesa plena e eficaz.
8. Foram violadas as seguintes normas: art.s 28º, 612º/1 e 668º/1/c do CPC, art.s 120º, 125º, 126º e 340º do CPP, art.s 77º e 78º do CP; art.s 1403º e ss. do Cód. Civil, art.s 72º do DL 433/82, de 27 de Outubro; art. 87º/1/c do CCJ, porque o Tribunal desconhece a realidade física do prédio.
9. O TRLx deu a cada uma das referidas normas o sentido inconstitucional da proibição do direito à prova, e tal interpretação viola os princípios contidos nos art.s 18/2, 20º e 32º da Constituição, sendo certo que não foi feito um parcelamento físico com violação do regime dos loteamentos, nem foi comprovado, in loco se houve ou não uma divisão material do prédio.
10. Peças processuais em que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade/ilegalidade e o Tribunal aplicou essas normas, com sentido inconstitucional/ilegal. O recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade/ilegalidade nas seguintes peças:
1. Nas alegações de 7.6.99 e de 27.7.99, em que o arguido provou que em
17.5.99 não era proprietário do prédio.
2. No entanto, a sentença do TJ de Sesimbra de 14.7.00 dá como provado – contra o documento registral – que o arguido é proprietário do prédio rústico...
3. Nas alegações de 9.10.00 de fls;
4. Situação ajuizada na decisão de 12.10.00, de fls;
5. Na reclamação de 7.11.00, de fls;
6. Situação ajuizada na decisão de 27.6.01.
7. No requerimento de recurso de 12.7.01, de fls.
8. Na exposição requerimento de 3.12.01, no acórdão de 26.02.02, na arguição de nulidade de 11.03.02, no requerimento de 11.03.02, na reclamação de 30.4.02, na exposição de 29.05.02, no acórdão de 9.7.02 e no requerimento de 16.9.02'.
9. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão sumária no sentido do não conhecimento do recurso (fls. 390 a 396). É o seguinte, na parte decisória, o seu teor:
'Nos termos do artigo 75º, nº 1 da Lei do Tribunal Constitucional, o recurso interpõe-se por meio de requerimento, no qual se indique, designadamente, a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie. Sobre este requisito de admissibilidade do recurso de constitucionalidade tem o Tribunal Constitucional afirmado, repetidamente, que nada obsta a que seja questionada apenas uma certa interpretação ou dimensão normativa de um determinado preceito. Porém, nesses casos, tem o recorrente o ónus de enunciar, de forma clara e perceptível, o exacto sentido normativo do preceito que considera inconstitucional. Como se disse, por exemplo, no Acórdão nº 178/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p.1118.) 'tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão nº
269/94, Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental'. Pois bem, não tendo o recorrente identificado logo nos requerimentos de interposição do recurso as normas cuja constitucionalidade pretendia ver apreciada por este Tribunal, foi o mesmo notificado, ao abrigo do disposto no nº
6 do artigo 75º-A da LTC, para suprir a irregularidade verificada. A verdade, porém, é que mais uma vez não foi capaz de fazê-lo, como pode verificar-se pela simples leitura da resposta do recorrente àquela notificação, que supra já transcrevemos integralmente, em que o recorrente efectivamente não identifica, em termos minimamente inteligíveis, qual era, a final, a exacta interpretação normativa dos inúmeros preceitos que refere nessa resposta ao convite do Relator que pretende ver submetida à apreciação deste Tribunal. Ora, a não identificação, de forma clara e perceptível, da exacta dimensão normativa dos preceitos cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada, obsta não só a que se aprecie a verificação dos demais pressupostos de admissibilidade do recurso – designadamente os que se traduzem em saber se o recorrente suscitou a inconstitucionalidade dessa interpretação normativa durante o processo bem como a de saber se a decisão recorrida a utilizou como ratio decidendi – como, fundamentalmente, coloca o Tribunal numa situação de verdadeira impossibilidade de conhecer do recurso, porquanto impossibilita a identificação do seu exacto objecto. Nesses termos, e sem necessidade de maiores considerações, há que decidir no sentido do não conhecimento do objecto dos recursos'.
10. Inconformado com esta decisão o recorrente apresentou, ao abrigo do disposto no art. 78º-A, nº 3 da LTC, a presente reclamação para a Conferência (fls. 404 a
408).
11. O Representante do Ministério Público, notificado da presente reclamação, veio responder-lhe no seguintes termos:
'1º - A presente reclamação é manifestamente infundada.
2º - Procurando o reclamante ocultar – através de termos deselegantes que desnecessariamente usa, e que excedem manifestamente o que seria necessário e adequado à tutela dos interesses cuja defesa lhe está cometida – a sua incapacidade para delinear, em termos inteligíveis, uma questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para suportar o recurso de fiscalização concreta interposto.
3º - Na verdade – e como é evidente e inquestionável – o arrazoado que logrou produzir, ao longo dos autos, não identifica, em termo inteligíveis quais as normas, interpretações normativas e critérios normativos que pretende realmente colocar à apreciação do Tribunal Constitucional.
4º - E sendo óbvio que não há qualquer motivo que leve a dispensar o patrono da parte do ónus de suscitar adequadamente as questões de constitucionalidade de normas que tenha por pertinentes.' Dispensados os vistos legais, cumpre decidir. III – Fundamentação
12. Além de um acervo de invectivas contra o Tribunal Constitucional em geral e o então Relator do processo em particular, o ora reclamante nada acrescenta que possa por em causa o teor da decisão reclamada, em cuja fundamentação se encontram já as respostas para as - absolutamente infundadas - questões suscitadas. Assim, pelas razões constantes da decisão reclamada, que em nada são abaladas pela reclamação apresentada, é efectivamente de não conhecer do objecto do recurso que o ora reclamante pretendeu interpor. III - Decisão Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta. Lisboa, 23 de Janeiro de 2003 Gil Galvão Bravo Serra Luís Nunes de Almeida