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Processo n.º 200/03 Relator: Cons. Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A , deduziu, nos termos do n.° 4 do artigo 76.° da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.°
13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), reclamação para o Tribunal Constitucional do despacho do Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Montemor-o-Velho, de 7 de Fevereiro de 2003, que não admitiu o recurso por ela interposto para este Tribunal Constitucional.
1.1. Resulta dos elementos constantes dos autos que, em acção com processo sumaríssimo que, na comarca de Montemor-o-Velho, B, moveu a A, foi proferida decisão que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide e condenou a ré nas custas. A ré requereu que se anulasse a conta por entender que não tinha responsabilidade nas custas, o que foi indeferido. A mesma ré pretendeu interpor recurso desta decisão, mas este recurso não foi admitido, por despacho de 20 de Junho de 2002, do seguinte teor:
“Veio A, interpor recurso de agravo do despacho de fls. 32 na parte em que a mesma é condenada no pagamento das custas dos presentes autos no valor de 99,75
€.
Como resulta do artigo 678.°, n.° 1, do Código de Processo Civil e é entendimento unânime e pacífico, o recurso de agravo relativo a decisões sobre custas apenas é admissível se as mesmas forem de valor superior à alçada do tribunal recorrido, isto é, para os tribunais de 1.ª instância, se for superior a 3740,98 € (cf. artigo 24.°, n.° 1, da LOTJ) (neste sentido, é de toda a utilidade a leitura pelo recorrente dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Dezembro de 1980; da Relação do Porto, de 2 de Março de 1992, de 15 de Abril de 1993, de 10 de Dezembro de 1991 e de 27 de Janeiro de 1992; e da Relação de Lisboa, de 23 de Setembro de 1993, de 7 de Dezembro de 1993, de 24 de Março de 1998, de 17 de Dezembro de 1991, de 11 de Março de 1993 e de 23 de Junho de 1992, todos in htppwww.dgsi.pt).
Pelo exposto, e sem mais considerações, dada a manifesta falta de fundamento legal para a interposição do presente recurso, indefiro liminarmente o mesmo por inadmissibilidade legal (cf. artigo 678.°, n.° 1, a contrario, do Código de Processo Civil).”
1.2. A recorrente reclamou deste despacho para o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, aduzindo:
“1. Indeferiu o meritíssimo liminarmente a petição de recurso alegando que, face ao diminuto valor das custas, do despacho que indefere a reclamação das mesmas não cabe recurso.
2. Acrescentou o meritíssimo aquela que na sua óptica é a jurisprudência aplicável.
3. O ora reclamante não pode concordar com tal decisão.
4. Na verdade, o despacho recorrido é manifestamente ilegal.
5. O meritíssimo juiz não podia ter decidido como decidiu, e tal erro é manifesto e latente, face aos dados do processo.
6. Vejamos. O reclamante não teve qualquer intervenção processual.
7. Por despacho de fls. 19 foi o processo extinto por inutilidade superveniente da lide.
8. Pelo que facilmente se conclui que o reclamante não tem qualquer responsabilidade pelas custas.
9. Recaindo toda a responsabilidade sobre o autor.
10. O processo foi iniciado pelo autor e terminado pelo mesmo sem qualquer intervenção do agora reclamante.
11. É verdade que pagou parte da quantia... mas isso porque finalmente o autor pediu o seu pagamento.
12. Se tem feito antes de recorrer a tribunal, também o tinha recebido.
13. É pois falso que tenha dado origem ao processo...
14. O reclamante nunca esteve no processo...
15. E nunca fez qualquer acordo... ou se responsabilizou pelas custas.
16. Ao considerar o reclamante responsável pelas custas, andou mal o meritíssimo.
17. E depois, apesar de alertado para o erro, manteve a sua decisão, cobrindo a mesma com um manto saneador, afirmando a sua irrecorribilidade.
18. A questão das alçadas é uma manobra de diversão face ao objecto do próprio recurso.
19. A questão aqui, nesta reclamação, é saber se uma decisão manifestamente contrária à lei pode ser consolidada, pela pretensa irrecorribilidade dessa mesma decisão.
20. Colocando a questão de outra forma. Uma decisão manifestamente ilegal, torna-se legal por ser irrecorrível ?
21. Ora a resposta só pode ser negativa, pois, caso contrário, a realização do Estado de direito, na sua vertente da aplicação e da administração da Justiça, previsto no artigo 1.° da Constituição, cai pela base.
22. Na verdade, a questão do valor das alçadas não pode ser reflectida nas custas.
23. A razão é simples, aqui trata-se de uma relação de direito público, entre o Estado que quer cobrar a taxa e o particular que não a quer pagar.
24. Onde a questão do valor da taxa ou o decaimento da mesma não fazem sentido.
25. Por outro lado, sendo uma relação de direito público, o recurso tem de ser sempre admissível, pois torna-se necessário aferir da boa aplicação da lei em matéria tributária.
26. Aliás podemos fazer um raciocínio inverso. E se o recurso fosse interposto pelo Ministério Público para aumentar a taxa de justiça a cobrar, por esta estar mal calculada? Também era inadmissível o recurso do mesmo despacho?
27. Também aqui o recurso só poderia ser admissível.
28. Em conclusão: a) Estamos perante uma relação de direito público entre o Estado e o reclamante; b) Face à natureza dessa mesma relação, não pode ser restringido o direito ao recurso com base no facto de que o valor das custas é inferior ao valor da alçada da Relação;
c) No caso concreto, por ser manifestamente ilegal a decisão do meritíssimo juiz a quo, a impossibilidade de recurso leva à validação como legal de um acto ilegal;
d) Tal viola de forma clara e directa os princípios do Estado de direito, plasmado no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa, sendo um caso flagrante de não realização da justiça.”
1.3. Essa reclamação foi indeferida por despacho do Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13 de Novembro de 2002, que, após narrar as precedentes vicissitudes dos autos, consignou:
“Começando pela violação do artigo 1.º da Constituição, a sua invocação é tão descabida que nada se nos oferece dizer para afastar liminarmente a sua pertinência.
Quanto à recorribilidade da decisão em causa, é evidente também a improcedência da reclamação.
Logo, porque no âmbito do processo sumaríssimo em que nos encontramos, só há recurso nos restritos casos plasmados no artigo 800.º do Código de Processo Civil, onde se não contempla a hipótese dos autos.
Acresce que, no caso específico das custas, só há recurso se o montante das custas contadas exceder a alçada do Tribunal, como expressamente se dispõe no artigo 62.º do Código das Custas Judiciais.
Nestes termos, indefiro a reclamação.
Custas pela reclamante.
Esta decisão será notificada na 1.ª instância.”
1.4. Notificada desta decisão no Tribunal Judicial da Comarca de Montemor-o-Velho, a recorrente apresentou nesse Tribunal, endereçado aos Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, requerimento de interposição de “recurso de inconstitucionalidade”, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, reproduzindo ipsis verbis, nos seus n.ºs
1 a 27, os n.ºs 1 a 27 da reclamação para o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, reproduzida em 1.2. deste acórdão, ao que aditou o seguinte:
“28. Face a estes argumentos, o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu que o agora recorrente carecia de razão, pois só pode entender que, face à disposição do artigo 62.º do Código das Custas Judiciais, só pode haver recurso de decisões sobre custas, se estas excederem a alçada do Tribunal.
29. Quanto à questão da inconstitucionalidade então levantada por violação do artigo 1.° da CRP, limitou-se a dizer que era tão descabida que nada lhe oferecia dizer.
30. Passemos pois à questão da constitucionalidade.
31. O recorrente, na reclamação antecedente, referiu o artigo 1.° da CRP, em virtude de neste estar plasmado o principio do Estado de direito que aqui se encontra violado, como irá demonstrar.
32. Nunca pensou foi que os venerandos desembargadores negassem a admissibilidade do recurso de um acto judicial manifestamente ilegal e injusto.
33. Na verdade, a República Portuguesa é, por força do artigo 1.°, mas sobretudo do artigo 2.° da CRP, um Estado de direito democrático.
34. Isso implica, entre outros, o direito à justiça, cuja configuração enquanto direito fundamental se encontra no artigo 20.° da Constituição.
35. Ora, a questão é saber se o direito à justiça tem como conteúdo o direito ao recurso, no caso de decisões manifestamente ilegais.
36. Na verdade, impedindo a lei o recurso de decisões, em virtude do valor do objecto destas ser inferior à alçada do tribunal recorrido, quando estas são manifestamente ilegais, qual é o acesso à justiça que o cidadão tem?
37. No caso concreto, terá o recorrente que se conformar com a decisão do juiz, sem poder recorrer a outra instância, para alterar a decisão?
38. Imaginemos por absurdo que um juiz condena um réu de forma perfeitamente arbitrária e ilegal, imaginemos, por exemplo, sem apreciar os meios de prova deste, no pagamento de uma quantia inferior à alçada...
39. Ficará esse réu sujeito, de pés e mãos atadas, à decisão errada do juiz?
40. A questão jurídico-constitucional deste recurso é de facto esta, será que a limitação do direito ao recurso, em situações de manifesta ilegalidade, não se traduzirá na negação do acesso ao direito e aos tribunais, direito consagrado no artigo 20.°, n.° 1, da CRP, e núcleo fundamental de um Estado de direito, justo e solidário?
41. Para o recorrente a resposta é clara, mas V. Ex.as melhor saberão.
42. Certo é que se, no caso concreto, a norma do artigo 62.° do CCJ não violar os artigos 1.°, 2.° e 20.º da Constituição, então só ficamos com uma alternativa...
43. A decisão da 1.ª Instância, ainda que ilegal, não pode ser recorrida e o Estado, com tal irrecorribilidade, convola uma decisão ilegal numa decisão legal...
44. Acresce que, como estamos perante matéria tributária, o Estado acaba de criar uma forma de cobrar receita ilegal de forma ... legal.
Em conclusão:
a) Estamos perante uma relação de direito público entre o Estado e o reclamante;
b) Face à natureza dessa mesma relação, não pode ser restringido o direito ao recurso com base no facto que o valor das custas é inferior ao valor da alçada da Relação;
c) No caso concreto, por ser manifestamente ilegal a decisão do meritíssimo juiz a quo, a impossibilidade de recurso leva à validação como legal de um acto ilegal.
d) Tal viola, de forma clara e directa, os princípios do Estado de direito, plasmado nos artigos 1.°, 2.° e 20.° da Constituição da República Portuguesa, sendo um caso flagrante de denegação do acesso ao direito e de não realização da justiça.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Ex.as superiormente suprirão, requer-se a V. Ex.as que se dignem declarar inconstitucional no caso concreto o artigo 62.° do CCJ, na parte em que torna irrecorríveis as decisões sobre custas de valor inferior à alçada do tribunal recorrido.
Norma violada: artigos 1.°, 2.° e 20.° da CRP.
Peça processual: Reclamação contra o despacho que nega a interposição do recurso de agravo.”
1.5. Por despacho de 7 de Fevereiro de 2003 do juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Montemor-o-Velho, não foi admitido o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, porquanto:
“O recurso de constitucionalidade visa o controlo da conformidade de normas ou de uma das suas interpretações com a Constituição e não das decisões judiciais impugnadas.
Dispõe o artigo 70.° da LTC, que:
«1. Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais:
(...) b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo (...).
2. Os recursos previstos nas alíneas b) e f) do número anterior apenas cabem de decisões que não admitam recurso ordinário, por a lei o não prever ou por já haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam, salvo os destinados a uniformização de jurisprudência.
3. São equiparadas a recursos ordinários as reclamações para os presidentes dos tribunais superiores, nos casos de não admissão ou de retenção do recurso, bem como as reclamações dos despachos dos juízes relatores para a conferência.»
E compete ao tribunal que tiver proferido a decisão recorrida apreciar a admissão do respectivo recurso (artigo 76.° da LTC).
Ora, no caso em apreço, durante o processo não foi arguida a inconstitucionalidade da norma invocada em sede de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional – artigo 62.° do Código das Custas Judiciais. Apenas na reclamação contra a não admissão do recurso se concluiu que, por ser manifestamente ilegal a decisão do meritíssimo juiz a quo, a impossibilidade de recurso leva à validação como legal de um acto ilegal e que tal viola de forma clara e directa o princípio do Estado de direito, plasmado no artigo 1.° da Constituição da República Portuguesa.
Afigura-se-nos que o recorrente apenas imputou a pretensa inconstitucionalidade ao despacho proferido, que sustenta ser manifestamente ilegal.
Por outro lado, a inconstitucionalidade só foi suscitada em sede de reclamação dirigida ao Sr. Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra.
Em face do exposto, não sendo legalmente admissível, não se admite o recurso interposto.”
1.6. É contra este despacho de não admissão do recurso de inconstitucionalidade que vem deduzida a presente reclamação, com a seguinte fundamentação:
“1. Decidiu a Meritíssima Juíza a quo não admitir o presente recurso por entender que, por um lado, o recorrente apenas imputou uma pretensa inconstitucionalidade e,
2. Esta só foi suscitada na reclamação que apresentou, para o Tribunal da Relação de Coimbra, do despacho que não admitiu o recurso de agravo da decisão sobre as custas.
3. Antes do mais, cumpre dizer que a Meritíssima Juíza é incompetente para decidir sobre a admissão do recurso.
4. Na verdade, é a própria Meritíssima que afirma «compete ao tribunal que tiver proferido a decisão recorrida apreciar a admissão do respectivo recurso (artigo 76.° da LTC)».
5. Ora, que se veja, sendo a decisão recorrida a decisão proferida pelo Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, na qual se mantém a inadmissibilidade do recurso de agravo,
6. Só é competente para decidir sobre a admissibilidade do presente recurso o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, pois ele é a entidade recorrida.
7. O recurso só foi dirigido à Meritíssima Juíza de 1.ª Instância porque tinha sido esta, em cumprimento do despacho do Venerando Desembargador Presidente, que procedeu à notificação do recorrente.
8. Quanto à substância... Afirma a Meritíssima que não foi arguida qualquer inconstitucionalidade durante o processo, mas sim apenas uma imputação de uma pretensa inconstitucionalidade e,
9. A mesma não foi feita durante o processo, mas apenas na reclamação apresentada perante o Presidente do Tribunal da Relação.
10. Salvo melhor opinião, andou muito mal a Meritíssima Juíza...
11. Em primeiro lugar, o recorrente não fez uma mera imputação... O recorrente afirmou que a negação do duplo grau de jurisdição, no caso concreto, era uma violação do Estado de direito, consagrado no artigo 1.° da CRP.
12. E a prova que a Meritíssima está errada é que, sobre essa
«imputação», o Senhor Desembargador Presidente tomou posição e decidiu não atender ao alegado.
13. Assim se conclui que foi arguida e decidida a arguição da inconstitucionalidade.
14. Quanto ao dentro ou fora do processo... Também aqui andou mal a Meritíssima.
15. Desconhecemos qual é o seu conceito de processo, mas não é certamente aquele que consta dos Manuais de Processo Civil à disposição de todos os juristas.
16. Sem entrar em delongas desnecessárias, o conceito de processo como acto inicial a petição inicial (ou equivalente) e como acto final o trânsito em julgado do mesmo.
17. Fazem pois parte do processo todos os actos por intermeio... sejam eles recursos, reclamações ou protestos...
18. Não se vê, pois, como a Meritíssima pode ter chegado a tal conclusão...
19. Mas a situação torna-se ainda mais ridícula quando se olha para os fundamentos e as razões do presente recurso.
20. Ora, a questão sub judice é saber se é inconstitucional a norma que não permite o recurso das decisões do tribunal de 1.ª Instância, nos casos do artigo 62.° do CCJ.
21. Ora, como é obvio, tal questão só se colocou quando o recurso foi interposto e,
22. A sua admissibilidade foi negada...
23. Antes desse momento não havia qualquer possibilidade de o recorrente conhecer de qualquer violação da Constituição... O recorrente não tem dotes de adivinho...
24. Por outro lado, até esse momento, não havia a aplicação de qualquer norma desconforme com a Constituição... como poderia alegar ou imputar uma inconstitucionalidade...?
25. Ora, o recorrente, na primeira peça processual após a aplicação de uma norma que, no caso concreto, entendeu ser inconstitucional, logo alegou essa mesma inconstitucionalidade...
26. Pelo que não se vê como é possível concluir que o recorrente não arguiu a inconstitucionalidade durante o processo.
Em conclusão:
A – A Meritíssima Juíza é incompetente para decidir sobre a admissão do presente recurso, pois essa competência é do Juiz Desembargador Presidente do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra.
B – O recorrente, durante o processo, arguiu a inconstitucionalidade e sobre tal arguição o Juiz Desembargador Presidente tomou a sua decisão.
C – Tal arguição foi feita na reclamação do despacho que não admitia o recurso de agravo, primeira peça processual do arguido (sic) após ter conhecimento da aplicação do artigo 62.º do CCJ, norma essa que, no entender do recorrente, é inconstitucional no caso concreto.”
1.7. Neste Tribunal Constitucional, o representante do Ministério Público emitiu o seguinte parecer:
“A presente reclamação é manifestamente infundada. Assim – e no que respeita à circunstância de o requerimento de interposição do recurso para este Tribunal ter sido apreciado na 1.ª Instância, onde foi apresentado –, importa notar que tal facto é inteiramente imputável ao próprio recorrente, que não tratou de dirigir tal requerimento de interposição ao autor da decisão recorrida, especificando de qual das decisões proferidas nos autos pretendia, afinal, interpor recurso de fiscalização concreta, levando a que o juiz interpretasse tal requerimento como visando a impugnação da decisão que ele próprio havia proferido.
Por outro lado, é manifesta a inverificação dos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto – e reportado ao decidido pelo Presidente da Relação –, já que, como decorre inquestionavelmente do teor da reclamação apresentada, não se mostra suscitada, em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para servir de base ao recurso de fiscalização concreta interposto.”
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. A admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LCT – que foi o interposto pela ora reclamante – depende da suscitação “durante o processo” da inconstitucionalidade da(s) norma(s) aplicada(s) pela decisão recorrida e cuja conformidade constitucional o recorrente pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, esclarecendo o n.º 2 do artigo 72.º da mesma Lei que tal recurso só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”.
Constitui jurisprudência consolidada deste Tribunal Constitucional que o apontado requisito só se pode considerar preenchido se a questão de constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal recorrido ter proferido a decisão final, pois com a prolação desta decisão se esgota, em princípio, o seu poder jurisdicional. Por isso, tem sido uniformemente entendido que, proferida a decisão final, a arguição da sua nulidade ou o pedido da sua aclaração, rectificação ou reforma não constituem já meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade, pois a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve
“lapso manifesto” do juiz quer na determinação da norma aplicável, quer na qualificação jurídica dos factos, nem desconsideração de elementos constantes do processo que implicassem necessariamente, só por si, decisão diversa da proferida. E também, por maioria de razão, não constitui meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade a sua invocação, pela primeira vez, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ou nas respectivas alegações.
Só assim não será nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade.
2.2. Expostos estes critérios, fácil é demonstrar a improcedência da presente reclamação.
Na verdade, a reclamante não suscitou nos presentes autos, antes de proferida a decisão de que pretende interpor recurso para o Tribunal Constitucional, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, limitando–se a referir, no n.º 21 da reclamação para o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra (transcrita supra, 1.2), que a decisão judicial de não admissão de recurso de anterior decisão “manifestamente ilegal” violaria o artigo 1.º da CRP.
Só no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal Constitucional é que a reclamante aludiu, pela primeira vez, à norma do artigo 62.º do Código das Custas Judiciais, e invocou, para além do artigo
1.º, os artigos 2.º e 20.º da CRP.
Ora, no presente caso, era exigível que a arguição de inconstitucionalidade normativa fosse feita, em termos adequados, na reclamação do despacho que não admitiu o recurso para o Tribunal da Relação, sendo certo que nada tem de insólito ou de inesperado – antes corresponde à prática corrente dos tribunais – a decisão que confirmou a não admissão de recurso por o valor em causa caber dentro da alçada do tribunal recorrido.
Está, assim, este Tribunal Constitucional em condições de, com absoluta segurança, concluir pela inadmissibilidade do recurso que se pretendeu interpor, o que torna dispensável, em homenagem aos valores da celeridade e da economia processuais, provocar a prévia intervenção do autor do despacho recorrido para proferir despacho de admissão ou de rejeição do recurso. Na verdade, fosse qual fosse o sentido desse despacho, este Tribunal Constitucional nunca deixaria de concluir pela inadmissibilidade do recurso interposto, pelo que o envio do processo ao Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, para o apontado efeito, sempre redundaria em actividade processual inútil, que deve ser evitada.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 29 de Abril de 2003.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos