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Processo n.º 436/01
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
l. Relatório
A. intentou, no Tribunal Judicial da Comarca de Tabuaço, acção declarativa de condenação contra B., L.da, pedindo: (i) o seu reconhecimento como dono e legítimo proprietário do prédio urbano sito na Rua
........, n.º ....., na vila de .....; (ii) o decretamento da caducidade do contrato de arrendamento do rés-do-chão do mesmo prédio; (iii) a determinação da sua entrega imediata, livre de pessoas e bens; e (iv) a condenação da ré no pagamento de 300$00 escudos por cada dia de ocupação e até efectiva entrega. Para tanto, aduziu, em síntese, que é dono e legítimo proprietário do referido prédio por o ter comprado aos anteriores proprietários; que estes haviam dado de arrendamento, por escrito particular, o rés-do-chão desse prédio à ré para armazém de produtos agrícolas ou agro-pecuários e materiais de construção de utilização própria; que esse contrato de arrendamento foi por si denunciado para o termo do prazo de renovação, por notificação judicial avulsa; e que a ré não procedeu à entrega do espaço em causa na data devida.
A acção foi julgada totalmente procedente no despacho saneador, de 10 de Março de 2000, confirmado por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 21 de Junho de 2000, tendo a ré interposto recurso de revista deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça, suscitando, nas respectivas alegações, além do mais, a questão da inconstitucionalidade orgânica do artigo
5.º, n.º 2, alínea e), do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro (doravante designado por RAU), por pretenso desrespeito do disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição da República Portuguesa (doravante designada por CRP).
A esse recurso foi negado provimento pelo acórdão de 3 de Abril de 2001 do Supremo Tribunal de Justiça, com base na seguinte argumentação:
“III – 1 – Consideraram as instâncias que, ao arrendamento da loja sita no rés-do-chão a que se referem os presentes autos, destinada a armazenagem de produtos agrícolas ou agro-pecuários e materiais de construção de utilização própria – cf. facto 4.º e documento de fls. 16 –, se aplica o regime da liberdade de denúncia pelo senhorio, findo o prazo do contrato ou da respectiva renovação, tudo de harmonia com o artigo 5.º, n.º 2, alínea e), do Regime do Arrendamento Urbano (RAU) e com o artigo 1055.º do Código Civil.
Em conformidade com esse entendimento, que, diga-se, desde já, merece a nossa concordância, foi decretada, no saneador, a caducidade do contrato de arrendamento, mais se condenando a ré na entrega imediata, livre de pessoas e bens, do referido rés-do-chão.
Discorda a ré, que, no essencial, suscita, nas conclusões, as seguintes questões essenciais:
a) o contrato de arrendamento remontaria ao ano de 1988, pelo que o citado artigo 5.º, n.º 2, alínea e), não se aplicaria à situação controvertida, uma vez que o RAU foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro;
b) o arrendamento dos autos destinou-se a fins de suporte de uma actividade comercial e industrial, pelo que, em face do disposto pelo artigo
10.º do Código Civil, lhe deveria ser aplicada, por analogia, a ressalva constante da parte final da referida alínea e) do n.º 2 do artigo 5.º do RAU;
c) a referida alínea e) do n.º 2 do artigo 5.º estaria ferida por uma inconstitucionalidade orgânica, por alegado desrespeito do disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 168.º da CRP.
A solução das questões acabadas de enunciar nas alíneas a) e b) passa pela interpretação e pela aplicação ao caso dos autos da norma da mencionada alínea e) do n.º 2 do artigo 5.º do RAU.
Nestes termos, depois da interpretação do citado normativo e da realização de uma breve incursão em redor da problemática da aplicação das leis no tempo, e uma vez solucionada a questão ora em equação, terminar-se-á com uma breve referência à (insólita) questão da inconstitucionalidade orgânica, agora invocada pela recorrente.
Vejamos, pois, pela ordem enunciada.
2 – O artigo 5.º do RAU prescreve o seguinte, na parte que ora releva, em face da economia do presente recurso:
«1 – O arrendamento urbano rege-se pelo disposto no presente diploma e, no que não esteja em oposição com este, pelo regime geral da locação civil.
2 – Exceptuam-se:
(...)
e) Os arrendamentos de espaços não habitáveis, para afixação de publicidade, armazenagem, parqueamento de viaturas ou outros fins limitados, especificados no contrato, salvo quando realizados em conjunto com arrendamentos de locais aptos para habitação ou para o exercício do comércio.
(...).»
2.1. – Anotando o presente artigo, escreve Aragão Seia (cf. Arrendamento Urbano, 5.ª edição, Almedina, 2000, págs. 153 e seguintes):
«Espaços não habitáveis são aqueles em que não é possível estabelecer habitação: uma parede, um telhado, um terraço, uma varanda, um armazém, uma garagem, um lugar para estacionamento de carro, etc.».
Ou, como refere Menezes Cordeiro (cf. Revista da Ordem dos Advogados, vol. 54, pág. 848, em anotação ao Acórdão da Relação de Lisboa de 31 de Maio de 1983, sumariado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 335, pág.
329), «o espaço não habitável é, antes de mais, aquele que não é tratado pelas partes em termos de habitação (...). A lei vigente permite, pois, às partes, através da estipulação de “fins limitados” para o arrendamento, regressar ao esquema puro da locação, como hipótese, designadamente, de livre denúncia pelo senhorio. Os “fins limitados” serão todos aqueles que não possam reconduzir-se aos fins habitacionais ou comerciais que informam o arrendamento comum». [Tal será, segundo Menezes Cordeiro, o caso de um arrendamento feito a um partido político, para o exercício da sua actividade. O senhorio de um partido político pode, assim, denunciar o arrendamento nos termos gerais do artigo 1055.º do Código Civil. O conteúdo do conceito de «fins limitados» é questão controvertida na doutrina. Assim, enquanto Pinto Furtado (Manual do Arrendamento Urbano, 2.ª edição, pág. 143) entende que na alínea e) estão ressalvados apenas os «fins limitados» aí exemplificados, ou seja, os arrendamentos de espaços não habitáveis que se destinem à afixação de painéis de publicidade, ao estacionamento de viaturas ou a armazenagem – e quer tenham, ainda, quer não tenham um fim comercial ou industrial, de exercício de profissão liberal ou outro, já Carneiro da Frada é de parecer que a ratio do artigo 5.º, n.º 2, alínea e), abarca certamente todos os arrendamentos de fins limitados, na multiplicidade e variedade das suas manifestações («O Novo Regime da Arrendamento Urbano: Sistematização Geral e Âmbito Material de Aplicação», Revista da Ordem dos Advogados, vol. 51, pág. 169)].
Fins limitados são, segundo Aragão Seia, os que, com limitação especificada no contrato, não consubstanciam os habituais fins do normal arrendamento para habitação ou para o exercício do comércio, indústria ou profissões liberais.
2.2. – Debruçando-nos agora sobre a ressalva final constante da referida alínea e) do n.º 2 do artigo 5.º – «salvo quando realizados em conjunto com arrendamentos de locais aptos para habitação ou para o exercício do comércio» –, cumpre reconhecer que tal segmento também não é passível de interpretação linear.
Como salienta Pereira Coelho, trata-se de um enunciado obscuro, que tem suscitado dúvidas na doutrina e certamente as suscitará na jurisprudência.
A doutrina tem entendido que, apesar de tal ressalva abranger apenas, literalmente, os arrendamentos de espaços não habitáveis realizados em conjunto com arrendamentos de locais aptos para habitação ou para o exercício do comércio, a mesma solução valerá quando o arrendamento daqueles espaços seja realizado em conjunto com o de locais aptos para o exercício de indústria ou profissão liberal. Este é também o entendimento de Pereira Coelho, uma vez que o regime do arrendamento «para comércio ou indústria» é um só, sem que a lei atribua relevância ao facto de a actividade do arrendatário ser comercial ou industrial. Por outro lado, as normas sobre arrendamento para comércio ou indústria são aplicáveis ao arrendamento para exercício de profissão liberal – cf. o artigo 121.º do RAU. Vai mesmo mais longe e entende que o regime geral do RAU também deve valer para os arrendamentos de espaços não habitáveis realizados em conjunto com arrendamentos de locais aptos para outros fins. Assim, se o princípio da renovação obrigatória – para nos cingirmos ao aspecto fundamental da questão – vale para estes arrendamentos, também deve valer para os arrendamentos de espaços não habitáveis realizados em conjunto com eles (cf. Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 125.º, págs. 261 e 263).
2.3. – Em conjunto não pretende significar o mesmo momento temporal, mas sim uma acessoriedade que pode acontecer em momentos distintos, desde que passe a integrar o mesmo todo.
Tem sido discutida na doutrina a eventual natureza interpretativa da alínea e), ora em referência. Compreende-se facilmente o alcance prático da questão, tendo presente o disposto pelo artigo 13.º do Código Civil, nos termos do qual a lei interpretativa se integra na lei interpretada, aplicando-se, por isso, imediatamente às situação jurídicas já constituídas.
Não acompanhamos, porém, esse entendimento, uma vez que consideramos que a referida norma tem carácter inovador.
Isso não impede, no entanto, a sua aplicação aos contratos já existentes à data da sua entrada em vigor, por força do disposto na segunda parte do n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil, uma vez que, dispondo directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem, abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.
Em face da problemática em apreço, justifica-se, no entanto, que procedamos a uma incursão de contornos teóricos, com vista à dilucidação da matéria da aplicação da lei no tempo.
3 – Discorrendo acerca do assunto, escreve Baptista Machado: «Estas disposições transitórias podem ter carácter formal ou material. Dizem-se de direito transitório formal aquelas disposições que se limitam a determinar qual das leis, a LA ou a LN, é aplicável a determinadas situações. São de direito transitório material aquelas que estabelecem uma regulamentação própria, não coincidente nem com a LA nem com a LN, para certas situações que se encontram na fronteira entre as duas leis» [Obra citada, pág. 230. Veja-se também, acerca da problemática do «direito transitório», Oliveira Ascensão, local citado, págs.
416 e seguintes].
Os problemas de sucessão de leis no tempo suscitados pela entrada em vigor de uma lei nova podem, ao menos em parte, ser directamente resolvidos por essa mesma lei, mediante disposições adrede formuladas, chamadas «disposições transitórias».
No entanto, a maior parte das vezes ou para a grande maioria dos casos o legislador nada diz em especial sobre a lei aplicável a situações em que se suscita um problema de conflitos de lei no tempo. Deverá então o intérprete socorrer-se dos princípios vertidos no artigo 12.º do Código Civil.
Como escreve Menezes Cordeiro («Da aplicação da lei no tempo e das disposições transitórias», Cadernos de Ciência de Legislação, INA, n.º 7, Abril-Junho de 1993, págs. 7 e seguintes, maxime, págs. 20 e 22), o direito transitório formal dispõe hoje de um regime geral, inserido no artigo 12.º do Código Civil, preceito que funciona «como uma autêntica bitola profunda da ordem jurídica, dando uma medida de valor que se deve ter sempre em conta».
3.1. – Prescrevendo acerca da aplicação das leis no tempo, dispõe o artigo 12.º do Código Civil:
«1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.»
Do preceito reproduzido ressaltam dois princípios: o da não retroactividade da lei [Mas é sabido que o princípio da irretroactividade da lei não é absoluto, não tendo, de há muito, assento constitucional entre nós. A aplicação retroactiva da lei penal mais favorável está mesmo consagrada no artigo 29.º, n.º 4, da CRP e no artigo 2.º do Código Penal. O n.º 1 do artigo
12.º do Código Civil admitiu igualmente, como se viu, a eficácia retroactiva de lei, quando dela claramente resulte. Acontece, por outro lado, que a determinação do que seja eficácia retroactiva não é questão pacífica] e o da sua aplicação imediata.
A lei nova, em princípio, só tem eficácia para o futuro, pelo que, como regra, apresenta eficácia prospectiva, constituindo excepção os casos de eficácia retroactiva. O fundamento do princípio da não retroactividade é geralmente encontrado na necessidade de segurança jurídica, na protecção da confiança, na estabilidade do direito, podendo também encontrar apoio na ideia de que a lei só é obrigatória depois de regularmente elaborada e publicada.
«Destruir o passado, fazer com que aquilo que existiu não tenha existido, é feito que, manifestamente, ultrapassa em muito as forças do homem»
(E. Pires da Cruz, Da aplicação das leis no tempo, 1940, págs. 200 e seguintes).
Para o princípio da aplicação imediata da lei nova também se invocam vários fundamentos. Desde o império que dimana da lei nova, como a única vigente no momento da aplicação, passando pela superioridade das leis novas sobre as leis antigas (pelo progresso que, em princípio, revelam), pelo facto de a lei apenas proteger no presente os direitos dos indivíduos, de modo algum os garantindo no futuro, até à razão, decisiva para Paul Roubier, da unidade da legislação num dado país, sob pena de tudo se saldar numa confusão inextricável nas relações jurídicas (Le Droit transitoire, Dalloz e Sirey, 1960, 2.ª edição, pág. 223).
Os grandes escolhos na aplicação das leis que se sucedem no tempo levantam-se nos casos de situações jurídicas duradouras, que perduram, de
«trato sucessivo», como lhes chama A. Rodrigues Queiró (Lições de Direito Administrativo, Coimbra, 1976, vol. I, págs. 516 e seguintes).
Escreve, a esse propósito, Galvão Telles:
«Sucede porém que a lei nova não raro encontra diante de si situações da vida, relações sociais, que vêm já do passado, nele lançam as suas raízes. Isto pode pôr limites e condições à imediata aplicação da lei publicada, a fim de que se não perturbe a necessária estabilidade daquelas situações ou relações. Daí a possível sobrevivência do Direito anterior, que se prolonga na sua aplicação mesmo para além do momento em que foi revogado.
É o problema extremamente difícil do Direito intertemporal, ou da aplicação da lei no tempo, problema que consiste em saber, publicadas sucessivamente duas leis, a segunda das quais revoga a primeira, qual delas é a que se aplica às situações que se colocam por assim dizer na fronteira temporal entre as duas.»
(Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa, 1988, vol. I, pág. 209).
3.2. – Vejamos qual o entendimento que resulta, para tais situações, do disposto no n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil.
Nesse n.º 2 estabelece-se a seguinte disjuntiva: a lei nova ou regula a validade de certos factos ou os seus efeitos (e neste caso só se aplica aos factos novos) ou define o conteúdo, os efeitos de certa relação jurídica independentemente dos factos que a essa relação deram origem (hipótese em que é de aplicação imediata, quer dizer, aplica-se, de futuro, às relações jurídicas constitutivas e subsistentes à data da sua entrada em vigor) ....
Precisamente a ratio legis que está na base desta regra da aplicação imediata é: por um lado, o interesse na adaptação à alteração das condições sociais, tomadas naturalmente em conta pela nova lei, o interesse no ajustamento às novas concepções e valorações da comunidade e do legislador, bem como a existência da unidade do ordenamento jurídico, a qual seria posta em causa e com ela a segurança do comércio jurídico, pela subsistência de um grande número de situações duradouras, ou até de carácter perpétuo, regidas por uma lei há muito abrogada; por outro lado, o reduzido ou nulo valor da expectativa dos indivíduos que confiaram, sem bases, na continuidade do regime estabelecido pela lei antiga, uma vez que se trata de um regime puramente legal, e não de um regime posto na dependência da vontade dos mesmos indivíduos [Veja-se também Baptista Machado, págs. 233 e seguintes. Para maiores desenvolvimentos, cf., do mesmo autor, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, Livraria Almedina, Coimbra, 1968, págs. 95 e seguintes].
4 – É evidente o alcance das considerações oportunamente formuladas nos pontos 2 e 3 para a solução do caso sub judice.
Na verdade, a recorrente alega, por um lado, que o arrendamento já vinha de 1988, aplicando-se-lhe o regime então em vigor do Código Civil, que apenas excluía da proibição de denúncia as quatro situações previstas no n.º 2 do artigo 1083.º, que não abrangia o caso dos autos, isto é, a hipótese aditada pela alínea e) do n.º 2 do artigo 5.º do RAU.
Por outro lado, a recorrente pretende ainda, socorrendo-se da analogia, estender ao caso dos autos a situação excepcional prevista na ressalva final da referida alínea e).
4.1. – Assim, e quanto à primeira questão.
Mesmo que se aceitasse que o contrato de arrendamento remonta ao ano de 1988, sempre tal alegação se revelaria irrelevante para a solução jurídica do caso sub judice.
Na verdade, como já se disse, o regime aplicável a este arrendamento
é o da liberdade de denúncia pelo senhorio, uma vez findo o prazo do contrato ou da respectiva renovação, nos termos do artigo 1055.º do Código Civil.
Assim, ainda que o contrato de arrendamento dos autos fosse anterior
à data de entrada em vigor do RAU (cf. o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro), o que sempre estaria longe de se poder retirar, com segurança, da matéria de facto alegada pela ré/recorrente, ainda assim tal se revelaria irrelevante, uma vez que sempre seria de aplicar ao caso o princípio da liberdade de denúncia pelo senhorio inscrito no artigo 5.º, n.º 2, alínea e), do RAU e no artigo 1055.º do Código Civil.
Isto porque, como já se explicou com cópia de detalhes, a referida norma da alínea e) do n.º 2 do artigo 5.º, não obstante o seu carácter inovador,
é imediatamente aplicável às relações jurídicas já constituídas, nos termos do n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil.
Só assim não seria se o contrato em causa tivesse sido realizado «em conjunto com arrendamento de locais para habitação ou para exercício do comércio», podendo aditar-se, em face do entendimento doutrinário acima exposto: «ou para o exercício da indústria ou profissão liberal».
Mas não é esse o caso. Não resultando das alegações das partes que, nem antes nem depois, ou em conjunto, com a celebração deste contrato, fora celebrado qualquer outro para qualquer daqueles enunciados fins, é de concluir que se está perante um contrato autónomo de espaço não habitável.
Refira-se, a propósito, que os arestos citados pela recorrente não se referem a situações idênticas ou similares à dos presentes autos, sendo inteiramente incorrecto e falho de rigor jurídico pretender – de tais situações
– extrair consequências com recurso à analogia, de todo improcedente, in casu.
Não há, na celebração deste contrato dos autos, qualquer ligação a outro contrato, a partir do qual fosse possível derivar para o regime jurídico dos arrendamentos vinculísticos, ao abrigo do RAU. É que, em face do alegado pela ré, nem o anterior contrato (de 1988) poderia alguma vez ser subsumível à ressalva final da alínea e) do n.º 2 do artigo 5.º do RAU.
Trata-se, com efeito, da celebração de um contrato autónomo, cujo objecto é destinado a armazém de produtos agrícolas ou agro-pecuários e materiais de construção de utilização própria. E nem sequer se alegou que tal arrendamento tenha sido realizado em conjunto com arrendamentos de locais aptos para habitação ou para o exercício dos demais fins já referidos.
Cai-se assim na órbita de aplicação do preceituado pela referida alínea e) do n.º 2 do artigo 5.º. Ora, em face do disposto no artigo 6.º, n.º 1, do RAU, aos arrendamentos urbanos referidos naquela alínea e) aplica-se o regime geral da locação civil, sendo aqui especialmente convocável o disposto no artigo
1055.º do Código Civil.
Sendo o contrato em causa livremente denunciável, e tendo a denúncia sido feita tempestivamente, nos termos dos artigos 1054.º e 1055.º do Código Civil, é a mesma válida e eficaz.
Improcedem, assim, as conclusões 8.ª e 9.ª, não assistindo qualquer relevo concreto ou significado prático às conclusões 1.ª a 7.ª
5 – Levanta, por fim, a recorrente, em desespero de causa, a questão de uma eventual inconstitucionalidade orgânica da alínea e) do artigo 5.º do RAU
(sic).
Sem qualquer razão, porém.
O Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, tendo por objecto matérias incluídas na área da reserva relativa de competência da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alínea h), da CRP, após a revisão constitucional de 1997), foi publicado na sequência do necessário procedimento de credenciação e da obtenção da adequada autorização legislativa, concedida pela Lei n.º 42/90, de 10 de Agosto.
Nada diz a recorrente de relevante acerca da questão suscitada, nas presentes alegações de recurso. Faz, isso sim, afirmações assaz emaranhadas, estabelecendo confusões, que se lamentam, entre referências a uma eventual – mas inexistente – inconstitucionalidade orgânica e o ataque a um disposição concreta de lei, sem que lhe aponte, porém, qualquer vício de desconformidade material com o texto constitucional.
Improcedem, pois, as restantes conclusões, não tendo ocorrido a violação dos normativos legais citados.
Termos em que se nega a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.”
Indeferida, por acórdão de 22 de Maio de 2001, arguição de nulidade do acórdão cuja fundamentação se acabou de transcrever, veio a ré interpor recurso para o Tribunal Constitucional.
A convite do primitivo Relator neste Tribunal Constitucional, a recorrente veio especificar que o recurso era interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, e que pretendia “a apreciação da inconstitucionalidade orgânica da norma contida na alínea e) do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 321-A/90, de 15 de Outubro”, considerando violado “o disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 168.º da CR”.
A recorrente apresentou alegações, no termos das quais formulou as seguintes conclusões:
“1 – A alínea e) do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90 coloca nas mãos dos senhorios a faculdade de fazer terminar um contrato de arrendamento que por sua natureza não pode deixar de ser duradouro em detrimento dos arrendatários, que, como no caso dos autos, tomaram de arrendamento uma loja para servir de suporte a uma actividade pecuária e agrícola.
2 – É antisocial.
3 – Traduziu-se numa modificação de fundo e acarretou uma inovação substancial, face ao artigo 1095.º do Código Civil, poderes que só o legislador parlamentar poderá exercer.
4 – Não podendo por isso ser delegado.
5 – Para além do mais, a referida norma (alínea e) do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90) foi aplicada a um contrato de arrendamento que tinha a sua génese em 1988, altura em que vigorava apenas o dito artigo 1095.º do Código Civil.
6 – A norma em análise violou, além do mais, o disposto na alínea h) do artigo 168.º da CR.
7 – Sendo por isso ferida de inconstitucionalidade orgânica.
8 – Sendo também inconstitucional a sua aplicação a um arrendamento com génese em 1988.”
O autor, ora recorrido, não apresentou contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Antes de mais, importa clarificar que o objecto do presente recurso de constitucionalidade se circunscreve à questão da inconstitucionalidade orgânica da norma constante da alínea e) do n.º 2 do artigo 5.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
321-B/90, de 15 de Outubro (e não à norma do artigo 5.º deste Decreto-Lei – preceito que procedeu à revogação do n.º 3 do artigo 1029.º e do n.º 2 do artigo
1051.º do Código Civil –, como a recorrente, por erro, sistematicamente refere).
Está fora do âmbito do recurso a questão da eventual inconstitucionalidade da aplicação dessa norma “a um arrendamento com génese em
1988”, questão a que a recorrente alude, pela primeira vez nos autos, nas alegações do presente recurso (cf. conclusão 8.ª), pois trata-se de questão que não foi suscitada perante o tribunal recorrido nem sequer mencionada no requerimento de interposição do presente recurso, para além de que, como resulta da transcrição integral da fundamentação do acórdão recorrido, a que atrás se procedeu, não está adquirido neste processo que o arrendamento em causa remonte a 1988. Sempre se dirá, no entanto, que este Tribunal Constitucional já decidiu não ser inconstitucional, por pretensa violação do princípio da confiança, decorrente do princípio do Estado de Direito democrático, a interpretação na norma em causa no sentido de possibilitar a denúncia de arrendamentos de espaços não habitáveis (no caso, para garagem) mesmo a contratos celebrados anteriormente ao início da vigência do RAU: cf. Acórdão n.º 304/2001 (Diário da República, II Série, n.º 260, de 9 de Novembro de 2001, pág. 18 628).
2.2. Assente – face à fundamentação desenvolvida no acórdão recorrido, atrás transcrita – que o caso dos autos não cabia na ressalva da parte final da aludida alínea e), mesmo adoptando o alargamento da sua previsão a todos os locais aptos para o exercício do comércio ou indústria ou profissão liberal (cf., por último, Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 7.ª edição, 2003, pág. 172), pode considerar-se igualmente adquirido que a norma em causa veio possibilitar a livre denúncia pelo senhorio, no termo do prazo de duração do contrato, assim afastando o regime da renovação automática, típico dos arrendamentos vinculísticos.
A tese da recorrente, quanto se consegue depreender da sua alegação, é a de que, ao adoptar essa solução, o Governo, autor do diploma em causa, teria desrespeitado a orientação traçada na credencial parlamentar contida na alínea c) do artigo 2.º da Lei n.º 42/90, de 10 de Agosto, que concedeu autorização ao Governo para alterar o regime jurídico do arrendamento urbano e ao abrigo da qual foi editado o Decreto-Lei n.º 321-B/90, daí fazendo decorrer a alegada violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea h), da CRP, na versão de 1989 (correspondente ao actual artigo 165.º, n.º 1, alínea h)), que integra na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República a matéria do “regime geral do arrendamento rural e urbano”.
Dispõe o artigo 2.º daquela Lei n.º 42/90 que: “As alterações a introduzir ao abrigo da presente autorização legislativa devem obedecer às directrizes seguintes: (...) c) Preservação das regras socialmente
úteis que tutelam a posição do arrendatário; (....)”.
A preocupação social subjacente a esta orientação prende-se primacialmente, ainda que não exclusivamente, com os arrendamentos para habitação, domínio onde são particularmente relevantes as responsabilidades constitucionais do Estado (cf. artigo 65.º da CRP), designadamente na veste de legislador.
Mas já não se vislumbra – nem a recorrente desenvolveu qualquer esforço argumentativo nesse sentido – em que é que desrespeita a orientação de preservação, nas alterações a introduzir no regime do arrendamento, das regras socialmente úteis que tutelavam, na legislação anterior, a posição do arrendatário, a opção tomada de não impor a renovação automática dos contratos de arrendamento tendo por objecto espaços não habitáveis, para afixação de publicidade, armazenagem, parqueamento de viaturas ou outros “fins limitados”, desde que não realizados em conjunto com arrendamento de locais aptos para habitação ou para o exercício do comércio (ou ainda para exercício de indústria ou profissão liberal – como se entendeu no acórdão recorrido).
Não se evidenciando, assim, desrespeito, pelo decreto-lei autorizado, da orientação traçada pela lei de autorização, improcede a arguição de inconstitucionalidade sustentada pela recorrente.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar organicamente inconstitucional a norma constante da alínea e) do n.º 2 do artigo 5.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido, na parte impugnada.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 29 de Abril de 2003.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Benjamim Silva Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos