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Proc. n.º 581/02
2ª Secção Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – O relatório
1 - A., com os demais sinais dos autos, recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (doravante, LTC), do acórdão do Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, acórdão este que indeferiu a reclamação para a conferência do despacho do relator que julgou extinta a instância do recurso contencioso que interpusera contra um despacho do Provedor de Justiça que lhe havia aplicado a pena de aposentação compulsiva, pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 287º, alínea e), do Código de Processo Civil, por violação de: «princípio de separação de poderes, princípio geral de um Estado de direito democrático - art. 2º da CRP
- que impõe que o recurso contencioso tenha de seguir para decisão tendo em vista a formulação de um juízo sobre a conduta da Administração ao praticar o acto administrativo; garantia de anulação dos actos administrativos ilegais, prevista no art. 268º, n.º 4, da CRP, conjugado com o disposto no art. 18º, n.º
2, do mesmo diploma; direito a ser indemnizado por actos ilegais da Administração - art. 22º da CRP, conjugado com o art. 18º, n.º 2, do mesmo Diploma; princípios gerais de um Estado de Direito democrático - art. 2º da CRP
- , da economia de meios processuais e da celeridade processual».
2 - O recorrente interpôs na 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo recurso contencioso de anulação do despacho do Provedor de Justiça, de 24 de Março de 1995, que lhe aplicou a pena de aposentação compulsiva. Por acórdão da 3ª Subsecção daquela 1ª Secção daquele Supremo Tribunal, foi concedido provimento ao recurso contencioso e anulado o acto recorrido. Desta decisão recorreu o Provedor de Justiça para o Pleno da mesma 1ª Secção. Na pendência deste recurso jurisdicional, transitou, entretanto, em julgado, após recurso interposto pelo ora recorrente para o Tribunal Constitucional que lhe negou provimento, o acórdão do Pleno da 1ª Secção do mesmo Tribunal, proferido no recurso 31660, que decidiu negar provimento ao recurso interposto do acórdão da Subsecção que, por seu lado, negara provimento a outro recurso contencioso interposto pelo mesmo recorrente A. do despacho do Provedor da Justiça, de 17 de Novembro de 1992, que lhe aplicara a pena disciplinar da demissão da função pública. Face àquela decisão do referido Pleno proferida no recurso 31660, o relator do Pleno, neste outro processo, julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, de harmonia com o art. 287º, alínea e), do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente ao contencioso administrativo.
3 - A decisão recorrida abonou-se na fundamentação que de seguida se transcreve:
«Estamos perante um processo onde se discute a legalidade da aplicação da pena de aposentação compulsiva ao ora reclamante, num momento em que, por decisão judicial transitada em julgado foi mantida na ordem jurídica a pena de demissão, aplicada por acto prévio da mesma entidade ao mesmo funcionário.
Quer lhe fosse ou não favorável a decisão a proferir no presente recurso, a sua situação de demitido da função pública, por despacho do Provedor de Justiça, de
17-11-92 a que se reporta o aludido acórdão do Pleno de 9-11-99, rec. 31.660, já não sofreria alteração, por força dessa eventual decisão, conforme se apontou no despacho reclamado.
Ora, ao contrário do defendido pelo reclamante, o recurso contencioso visa a pronúncia sobre a legalidade do acto, mas a utilidade da lide pressupõe que essa pronúncia tenha efeito útil, dentro dos possíveis efeitos específicos do recurso contencioso (ac. de 10.2.98, rec. 33.183, apêndice ao DR de 4 de Maio de 2001, pág. 275 e segs.).
Como também se decidiu no acórdão deste Pleno de 19-6-01, rec. 34.237:
'I - Se o recurso contencioso de anulação já não pode prosseguir os seus efeitos típicos, primários, há-de a respectiva instância ser declarada extinta por inutilidade superveniente da lide.
II – Tão-pouco releva, nessas circunstâncias, a possibilidade de amanhã em execução de sentença ser atribuída indemnização pela inexecução do julgado anulatório, por causa legítima, nos termos do art° 10° do Dec.-Lei n° 256-A/77, de 17.6'.
E no Sumário do acórdão do Pleno de 29.6.00, rec. 30.899, pode ler-se:
'1) - Há inutilidade da lide do recurso contencioso que tem como objecto uma pena disciplinar de demissão se o recorrente também foi demitido em processo penal.
2) - Não se justifica o prosseguimento do recurso contencioso no interesse em discutir a legalidade do acto tido por lesivo, para efeitos da acção de indemnização'.
É esta orientação jurisprudencial do Pleno da 1ª Secção, inteiramente aplicável ao caso dos autos, que aqui se reitera.
E, não tem a mínima razão o reclamante quando alega que, ao tomar em consideração o trânsito em julgado do acórdão do Pleno de 9.11.99, extraindo desse facto os correspondentes efeitos neste processo, o despacho reclamado
'está a praticar um acto de execução de uma sentença pelo Tribunal, entrando no estrito campo da actividade administrativa'.
Na verdade, o Tribunal limitou-se a extrair as conclusões que, face ao acima referido, se impunha retirar quanto à utilidade do prosseguimento da presente lide processual, tendo, além do mais, em conta que, nos termos do artº 205º, n.º
2, da C.R.P 'as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidade públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades'.
Não se vê, pois, ao invés do sustentado, pelo reclamante como possa ter havido qualquer violação do artº 2º da C.R.P., segundo o qual 'A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa'.
2.2.2- Por último, é evidente que não houve qualquer interpretação do artº 59º, nº 1, da LPTA, contrária à Constituição, designadamente ao citado artº 2º da CRP, pois, ao contrário do sustentado pelo reclamante, este foi ouvido, mediante carta registada enviada ao seu advogado, em 23-5-01 (na altura, o único mandatário por si constituído no processo), sobre a questão suscitada no despacho da Relatora de fls. 628 quanto à presumível declaração de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide (v. fls. 628 v.).
4 - Refutando o decidido em matéria de constitucionalidade pelo acórdão recorrido, assim concluiu o recorrente as suas alegações de recurso neste Tribunal Constitucional:
«A) A norma do artº 287º, alínea e), do Código de Processo Civil, só ou articulada com a do artº 1º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, na interpretação dada pelo Douto Acórdão recorrido é inconstitucional, ou são inconstitucionais, por violação do princípio de separação de poderes;
B) Ocorreu violação do princípio constitucional de tipicidade de intervenção dos tribunais, princípio estruturante de um Estado de Direito democrático – artº 2º da Constituição da República;
C) E ainda dos princípios da repressão do arbítrio, da sua prevenção, da justiça e da transparência administrativa, também princípios estruturantes de um Estado de Direito democrático – artº 2º da CRP;
D) Bem como a garantia da impugnação dos actos administrativos – artº 268º, nº
4, da CRP, assim como do disposto nos números 2 e 3 do artº 18º do mesmo Diploma, com aquela norma articulados;
E) Verificou-se, ainda, violação da norma do artº 22º – responsabilidade civil extra-contratual do Estado e demais entidades públicas –, bem como das disposições do artº 18º, nºs 2 e 3, todos do Diploma Fundamental, também articulados;
F) E, finalmente, dos princípios constitucionais da economia de meios processuais e da celeridade processual – princípios estruturantes de um Estado de Direito democrático previstos no artº 2° do Diploma Fundamental;
Nestes termos, deve ser declarada a inconstitucionalidade material da norma do artº 287°, alínea e), do Código de Processo Civil –, só ou articulada com a do o artº 1 ° da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, na interpretação que lhe é dada no Douto acórdão de que nestes autos se recorreu.».
5 - Por seu lado, a autoridade recorrida contra-alegou, concluindo pelo seguinte modo:
«a) O A. foi demitido da Função Pública, por decisão do Provedor de Justiça, já consolidada, de 17 de Novembro de 1992; b) o recurso de acto posterior que aplicou a pena de aposentação compulsiva, face à consolidação do anterior, não prossegue qualquer interesse juridicamente relevante, não sendo alterada, ainda que face a eventual provimento do recurso, a situação jurídica do recorrente; c) não viola a Constituição a sentença judicial em determinado recurso que conhece da existência de caso julgado incompatível com a pretensão aí em apreço; d) não viola a Constituição a norma do artº 287º, e), do Código de Processo Civil, na medida em que considera como causa extintiva da instância a superveniência de facto que permita concluir como em b).
Assim, por não procederem as alegações do recorrente, deve o Tribunal Constitucional não julgar como inconstitucional a norma constante do artº 287º do CPC, não provendo o presente recurso.»
B – A fundamentação
6 - A questão decidenda
É a de saber se a norma do artigo 287º, alínea e), do Código de Processo Civil, aplicável ao contencioso administrativo nos termos do art. 1º do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, na medida em que determina a inutilidade superveniente da lide num processo de recurso contencioso interposto contra um acto administrativo em que tenha sido aplicada ao recorrente a pena disciplinar de aposentação compulsiva por, entretanto, haver transitado em julgado decisão jurisdicional de não provimento de outro recurso contencioso instaurado pelo mesmo recorrente contra acto administrativo que lhe tenha aplicado a pena disciplinar de demissão da função pública, é inconstitucional.
7 - Do mérito do recurso
Como se vê do seu requerimento de interposição de recurso, o recorrente imputou a inconstitucionalidade à violação de: “princípio de separação de poderes, princípio geral de um Estado de direito democrático - art. 2º da CRP - que impõe que o recurso contencioso tenha de seguir para decisão tendo em vista a formulação de um juízo sobre a conduta da Administração ao praticar o acto administrativo; garantia de anulação dos actos administrativos ilegais, prevista no art. 268º, n.º 4, da CRP, conjugado com o disposto no art. 18º, n.º 2, do mesmo diploma; direito a ser indemnizado por actos ilegais da Administração - art. 22º da CRP, conjugado com o art. 18º, n.º 2, do mesmo Diploma; princípios gerais de um Estado de Direito democrático - art. 2º da CRP - , da economia de meios processuais e da celeridade processual”.
Nas suas alegações o recorrente alargou os fundamentos de inconstitucionalidade, falando agora ainda na “violação do princípio constitucional de tipicidade de intervenção dos tribunais, princípio estruturante de um Estado de direito democrático - art. 2º da CRP” e “dos princípios da repressão do arbítrio, da sua prevenção, da justiça e da transparência administrativa, também princípios estruturantes de um Estado de direito democrático - art. 2º da CRP”.
Não dizendo estes fundamentos respeito à decisão judicial, o Tribunal Constitucional poderá conhecer deles, em virtude de apenas estar vinculado ao pedido, mas já não aos seus fundamentos, de acordo com o disposto no art. 51º, n.º 5, da LTC.
7.1 - Mais do que o efeito jurídico da extinção da instância por inutilidade da lide previsto em abstracto, o que o recorrente verdadeiramente contesta, no plano de constitucionalidade da norma, é a inclusão no leque de hipóteses que desencadeiam essa inutilidade da lide e, consequentemente, da extinção da instância, da hipótese em que a inutilidade superveniente da lide em um processo de recurso contencioso interposto contra um acto administrativo em que tenha sido aplicada ao recorrente a pena disciplinar de aposentação compulsiva advenha da circunstância de, entretanto, haver transitado em julgado decisão jurisdicional de não provimento de outro recurso contencioso instaurado pelo mesmo recorrente contra acto administrativo que lhe tenha aplicado a pena disciplinar de demissão da função pública.
Entende o recorrente que a norma assim interpretada viola várias disposições e princípios constitucionais.
Vejamos se lhe assiste razão.
7.2 - O recorrente pretexta que a norma, cuja inconstitucionalidade questiona, viola o princípio constitucional da separação dos poderes e o que designa por “princípio da tipicidade das intervenções dos tribunais, consagrado no art. 2º da CRP”, neste caso, das competências reservadas aos tribunais administrativos. Para sustentar uma tal conclusão, o recorrente argumenta que o tribunal - ao levar em conta, num processo de recurso contencioso ainda pendente de decisão final em que está em causa um acto administrativo que aplica uma pena disciplinar de aposentação compulsiva, uma decisão judicial, transitada em julgado, proferida em outro recurso contencioso que tem como objecto um acto administrativo que havia aplicado uma pena de demissão da função pública e que lhe nega provimento - está a praticar um acto administrativo de execução de sentença (da última), porquanto “entra claramente na esfera de atribuições exclusivas da administração”, pois, por força do “Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril), das disposições complementares do mesmo Estatuto, da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos (Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Junho), do Decreto-Lei n.º
374/84, de 29 de Novembro, e nas partes aplicáveis da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo (Decreto-Lei n.º 40 768, de 8 de Setembro de 1956) e do Regulamento do mesmo Tribunal (Decreto-Lei n.º 41 234, de 20 de Agosto de 1957), bem como do Decreto-Lei n.º 256-A/77, de 17 de Junho (arts. 5º e ss.)”, os tribunais administrativos, em matéria de contencioso relativo aos actos administrativos, apenas têm competência para a sua anulação, retomando essa competência apenas em caso de inexecução da sentença transitada em julgado por banda da administração. Mas o recorrente não tem razão. E não a tem, como está implícito na interpretação levada a cabo no caso sub judice, porque o tribunal que, num processo de recurso contencioso ainda pendente de decisão final cujo objecto é um acto administrativo aplicativo de uma pena disciplinar de aposentação compulsiva, leva em conta o decidido, com trânsito em julgado, num outro processo de recurso contencioso em que o objecto do processo era um acto administrativo aplicativo da pena disciplinar de demissão da função pública, decisão essa no sentido do não provimento do recurso contencioso, não está a praticar qualquer acto administrativo de cumprimento deste último julgado, ou a substituir-se à administração pela inexecução do julgado, mas, pura e simplesmente, a aferir do interesse processual em conhecer do objecto do processo (recurso contencioso de anulação), pendente de decisão, por confronto com o decidido, com trânsito em julgado, no outro processo relativamente ao objecto neste processo. O dado de referência do tribunal, para conhecer da utilidade da decisão que lhe é pedida pelo recorrente, não é a actividade administrativa, ou sequer uma antecipação da mesma, que o cumprimento do julgado no outro processo demande dos órgãos administrativos, mas apenas o efeito jurídico constituído pela decisão judicial na Ordem Jurídica, aqui traduzido pela não anulação de um acto administrativo de aplicação de uma pena disciplinar de demissão da função pública e, decorrentemente, também, pela consolidação dos efeitos jurídicos estatuídos por tal acto administrativo. O tribunal, numa tal hipótese, não procede, pois, a mais do que a um confronto do objecto de um processo contencioso com o objecto do outro processo contencioso, confronto esse que nem sequer exige a antecipação de qualquer eventual actividade administrativa a ter lugar consoante o decidido e em cumprimento dele. O tribunal limita-se a apurar se o efeito jurídico cuja constituição se encontra definitivamente consolidada na Ordem Jurídica é de tal natureza que implique a inutilidade do conhecimento do objecto do outro recurso contencioso. E é claro que nada impede que o tribunal atenda ao decidido com trânsito em julgado em outro processo, como entendeu o acórdão recorrido. Ponto é que, como se disse na decisão recorrida, essa decisão se mostre devidamente certificada nos autos
(cfr. art. 514º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 1º da LPTA), como no caso sub judicio. A Constituição, no seu art. 205º, n.º 2, dispõe que as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas. Ora, entre estas entidades não podem deixar de contar-se os próprios tribunais. É o princípio da certeza e da segurança jurídica, que justifica axiologicamente o reconhecimento constitucional do caso julgado (cfr. o art.
282º, n.º 3, da CRP), que demanda uma tal conclusão. Daí que, correspondentemente, a lei ordinária tenha até configurado o caso julgado como uma excepção peremptória cuja invocação não depende da vontade do interessado
(cfr. arts. 493º e ss. do CPC).
Nesta perspectiva, forçoso é concluir que a norma do art. 287º, al. e), do CPC, interpretada como o foi pelo acórdão recorrido, não ofende o princípio constitucional da separação e interdependência dos órgãos de soberania consagrado no art. 111º, n.º 1, da CRP (Sobre a compreensão deste princípio, cfr., entre outros, J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6ª edição, pp. 551 e ss.). E a entender-se que o recorrente atribui um sentido distinto do acabado de analisar ao “princípio constitucional da tipicidade da competência dos tribunais”, sempre se dirá que só tem sentido quando referido à distribuição, pela Constituição, da competência material jurisdicional prevista no n.º 2 do art. 202º da CRP pelas diversas espécies de tribunais, nos termos dos arts. 209º e ss. e 221º da Lei Fundamental mas também esse princípio não sai aqui ofendido. De resto, nem a ofensa que o recorrente alega tem a ver com essa repartição constitucional de competência entre os diversos tribunais, já que não assaca à interpretação levada a cabo pelo tribunal recorrido que este, por virtude dela, tenha exercido a competência de outra ordem de tribunais (como os judiciais), prendendo-se antes, segundo a sua própria lógica de raciocínio, com a não verificação dos pressupostos de exercício da própria competência material: o tribunal administrativo só deteria a competência para a prática do acto, que tem por administrativo, em sede de inexecução de sentença cujo pedido lhe fosse dirigido.
7.3 - O recorrente defende ainda que a interpretação questionada sob o prisma da constitucionalidade ofende ainda “a garantia de impugnação dos actos administrativos - art. 268º, n.º 4, da CRP, assim como o disposto nos n.os 2 e 3 do art. 18º do mesmo Diploma, com aquela norma articulados”. Mas mais uma vez sem razão. No seu modo de ver, essa garantia sai violada, porque terá que haver sempre, no contencioso de anulação, uma apreciação sobre a legalidade ou ilegalidade do acto administrativo, ou seja, que o processo instaurado tem de terminar sempre por uma decisão de mérito. O preceito constitucional convocado garante “aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos e interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas”.
É muito abundante a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a compreensão do direito constitucional à tutela judicial efectiva (cfr., entre outros os Acórdãos n.º 435/98, publicado no DR, II Série, de 10/12/98, n.º
84/99, publicado no DR, II Série, de 1/7/99, BMJ, 484º, pp. 73, e AcsTc., vol.
42º, pp. 373; n.º 105/99, publicado no DR, II Série, de 15/5/99, e AcsTc., vol.
42º, pp. 495, e n.º 1146/96, publicado no Diário da República, I Série-A, de
20/12/96, BMJ, 461º, pp. 74, e AcsTc., 35º, pp. 55).
Sobre esse tema discreteou-se no Acórdão n.º 1146/96 do seguinte modo:
«6.2. É, hoje, reconhecida pela doutrina a consagração de um direito à tutela judicial efectiva, constitucionalmente garantido como direito fundamental dos cidadãos, em especial perante a justiça administrativa, quando sejam titulares de posições jurídicas subjectivas, nos termos do disposto nos artigos 20º e
268º, nºs. 4 e 5, da Lei Fundamental (cfr. M. Fernanda dos Santos Maçãs, A Suspensão Judicial da Eficácia dos Actos Administrativos e a Garantia Constitucional da Tutela Judicial Efectiva, Boletim da Faculdade de Direito, Studia Jurídica 22, Coimbra, Coimbra Editora, 1996, p. 272-276. Cfr. ainda J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., Coimbra, Almedina, 1993, p.
658, e J.C. Vieira de Andrade, Direito Administrativo e Fiscal, Lições ao 3º Ano do Curso de 1993-1994, Faculdade de Direito de Coimbra, p. 76 ss.).
Foi com a Revisão Constitucional de 1989 que o legislador constituinte veio reforçar o direito à tutela judicial efectiva, ao garantir, ao lado do direito ao recurso contencioso (artigo 268º, n.º 4), 'aos administrados o acesso à justiça administrativa para tutela dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos' (cfr. o artigo 268º, n.º 5, da Constituição). Este último preceito constitucional, introduzido pela Lei Constitucional n.º 1/89, traduziu-se, como salientam J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, no reconhecimento ao cidadão de uma protecção jurisdicional administrativa sem lacunas - princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa -, permitindo-lhe o acesso à justiça para defesa de direitos e interesses legalmente protegidos, sem se condicionar essa acção à adopção de meios específicos de impugnação ('recurso contencioso') ou à existência de um 'acto administrativo' (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1993, p. 941, 942).
A garantia recebida no novo preceito constitucional abrange os mecanismos que sejam adequados à defesa e protecção dos direitos subjectivos e interesses legítimos dos cidadãos que sejam lesados por um qualquer acto ilegal da Administração. A tutela judicial não pode ser negada ou limitada a certas formas concretas de actuação da Administração, antes deve ser uma protecção plena, sem lacunas (cfr. M. Fernanda dos Santos Maçãs, ob. cit., p. 274). Compete, no entanto, ao legislador ordinário a disciplina dos aspectos fundamentais do direito constitucional ao recurso contencioso (artigo 268º, n.º
4) e do direito constitucional de acesso à justiça administrativa (artigo 268º, n.º 5).
Na modelação daqueles direitos, goza o legislador ordinário de uma ampla margem de liberdade, disciplinando aspectos como o do seu âmbito, legitimidade, prazos, poderes de cognição do tribunal, processo de execução das sentenças, etc.. A garantia constitucional do direito à tutela judicial efectiva não implica, como sublinha J.C. Vieira de Andrade (cfr. ob. cit., p.
76), porém, 'que seja livre o acesso aos tribunais, tendo de aceitar-se, por razões de ordem pública, de justiça, de segurança e de eficiência, que a lei limite e discipline as formas pelas quais se processa o recurso dos interessados
(mesmo dos administrados titulares desse direito processual fundamental) à justiça administrativa'.
Ao legislador é apenas vedada a criação de obstáculos que dificultem ou prejudiquem, sem fundamento e de forma desproporcionada, o direito de acesso dos particulares aos tribunais em geral e à justiça administrativa em particular.».
E no Acórdão nº 84/99 escreveu-se o seguinte:
«Poderia dizer-se que a garantia consagrada no artigo 268º, n.º 5, da CRP
(versão de 89) não é mais do que a consagração expressa, no âmbito do contencioso administrativo, do que, em termos legais, decorria já da garantia de acesso aos tribunais para defesa de direitos e interesses legítimos estabelecida no artigo 20º, n.º 1, da CRP que, na melhor interpretação, compreende o direito a uma tutela judicial efectiva daqueles direitos e interesses.
Mas, erigida em preceito autónomo, a norma reforça a exigência de um programa completo de instrumentos processuais que integralmente satisfaçam a necessidade da tutela efectiva de quaisquer direitos ou interesses legalmente protegidos.
O que essencialmente se pretende é que a justiça administrativa tenha sempre resposta, em termos procedimentais, à solicitação de tutela de direitos ou interesses; trata-se, afinal, de fazer corresponder a todo o direito uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, como se consigna no artigo 2º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Já, porém, o comando constitucional não condiciona o legislador, respeitado que seja o modelo organizatório judicialista e a tutela efectiva dos direitos dos administrados, na sua opção pelas fórmulas de instituição da justiça administrativa, como bem sustenta Vieira de Andrade, in 'Direito Administrativo e Fiscal', lições ao 3º ano do Curso de 1994/95, pág. 35; e, muito menos, na articulação dos diversos meios processuais que disponibiliza ao administrado ou na fixação de pressupostos processuais de cada um deles, de que eventualmente resulte – como no caso resulta – a preferência por um determinado meio que, em concreto, assegure a tutela efectiva, reclamada, do direito ou do interesse.».
Face à doutrina exposta, que corresponde ao comando constitucional, fácil é verificar que a lei ordinária não tem de assegurar ao recorrente a obtenção de uma decisão de mérito em todos e cada um dos processos que intente para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. Se a tutela for concedida em outro processo, ou ficar juridicamente prejudicada pelo aí decidido, não pode deixar de entender-se como tendo sido facultada ao recorrente a garantia de tutela efectiva jurisdicional. O administrado pôde exercer o seu direito de acção para a obtenção da tutela do seu direito subjectivo ou interesse legalmente protegido. A inadmissibilidade do prosseguimento da instância será, em tal caso, um corolário da própria função jurisdicional, já que, estando resolvida, de vez, a controvérsia que levou o recorrente a juízo, se haverá de entender que a nova decisão judicial só poderá ter um interesse académico, sobrepondo-se sempre a decisão anterior transitada em julgado por força do disposto no art. 205º, n.º 2, da CRP. Expressão de uma tal normatividade constitucional é, de resto, a norma do art. 675º, n.º 1, do CPC, também aplicável ao contencioso administrativo (art. 1º da LPTA, em vigor ao tempo). É também essa, para além da dos princípios da economia e celeridade processuais, que constitui a ratio do art. 663º do CPC, quando manda atender aos factos jurídicos supervenientes, no momento da decisão final. Se, por força do decidido em um recurso contencioso, se consolidou a decisão administrativa, que aplicou ao administrado a pena disciplinar de demissão da função pública, deixa de haver direito subjectivo a fazer valer em outro recurso contencioso cujo conteúdo seja o de anular uma decisão que aplicou ao administrado uma pena de aposentação compulsiva para se manter a relação de emprego público anterior à aplicação dessa sanção. A decisão proferenda nunca poderia produzir quaisquer efeitos no âmbito da relação jurídica de emprego público, precisamente porque esta se havia já extinguido. Deste modo a norma que consagra a extinção da instância por inutilidade da lide não envolve, sequer, qualquer restrição do direito de acção e do direito ao processo, não afrontando as disposições constitucionais dos arts. 268º, n.º 4, e 18º, n.os 2 e 3, da CRP.
7.4 - Entende ainda o recorrente que a norma impugnada viola ainda a norma do “art. 22º - responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas - bem como das disposições do art. 18º, n.os 2 e 3, todos do Diploma Fundamental, também articulados”. Não se vê, todavia, em que é que uma norma cujo conteúdo é totalmente alheio, quer ao direito previsto no art. 22º, da CRP, quer ao processo judicial em que o mesmo seja exercido, possa ofender aquela norma constitucional. Mesmo na perspectiva, que parece ser a do recorrente, de que uma decisão favorável obtenda neste processo se assumiria como condição da interposição de uma acção de indemnização por responsabilidade extra-contratual por ter sido quebrada a relação de emprego público por via da aplicação da pena disciplinar de aposentação compulsiva, sempre se poderia objectar que aquele efeito nem sequer por antecipação poderia ser considerado, como se disse, por estar, por uma outra via, já extinto o seu direito subjectivo cuja existência o mesmo tem como pressuposto da acção de indemnização
- a ilegal extinção da relação de emprego público.
7.5 - Argumenta ainda o recorrente que a norma em causa viola “os princípios gerais de um Estado de direito democrático - art. 2º da CRP -, da economia de meios e de celeridade processual”. Independentemente de se saber se deve reconhecer-se a esses princípios processuais uma dimensão prescritiva constitucional e, na afirmativa, se eles poderão ser inferidos da norma constitucional apontada (art. 2º da CRP), e não antes do art. 20º, n.º 4, da CRP, é por demais evidente que eles não resultam violados pela norma questionada. Ao contrário, a solução ditada por esta norma é confortada também por esses princípios, na medida em que a decisão do recurso contencioso obvia à prática de actos juridicamente inúteis e propicia o desfecho imediato da instância processual. 7.6 - Defende, por fim, o recorrente a inconstitucionalidade da norma em questão com base em que ela ofenderia os
“princípios da repressão do arbítrio, da sua prevenção, da justiça e da transparência administrativa, também princípios estruturantes de um Estado de direito democrático - art. 2º da CRP”. Resulta das alegações do recorrente que estes fundamentos de inconstitucionalidade se baseiam na sua pré-compreensão do efeito jurídico contido na norma do art. 287º, al. e), do CPC, declarado pelo tribunal, como sendo correspondente a um acto administrativo de execução do julgado relativamente ao recurso contencioso cujo objecto era o acto administrativo de aplicação da pena de demissão da função pública. Já se viu, porém, que esse conteúdo se produz ao nível do processo judicial e não do acto administrativo. Sendo assim, não tem qualquer sentido a invocação de tais princípios relativamente à norma sindicada.
C – A decisão
8 - Destarte, atento tudo o exposto, decide este Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente com taxa de justiça de 15 UC. Lisboa, 23 de Março de 2004 Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos