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Proc. nº 703-A/02
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 3ª secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Por decisão da 8ª Vara Criminal da Comarca de Lisboa foi o requerente, A, condenado na pena de 5 anos de prisão, pela prática, em co-autoria, de um crime continuado de burla agravada, previsto e punido pelo art. 313º e 314º, al. c) do Código Penal.
2. Inconformado com esta decisão o ora requerente e o Ministério Público recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 7 de Maio de
1996, decidiu, para que agora interessa, negar provimento ao recurso do Réu A e, consequentemente, condená-lo na pena de 4 anos de prisão, “mas como co-autor material de um crime de fraude na obtenção de subsídio, particularmente grave”.
3. Novamente inconformado o arguido recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual, por acórdão de 30 de Abril de 1998, decidiu não conhecer do recurso que havia sido interposto pelo arguido, por considerar que o mesmo não havia cumprido o convite que lhe foi feito ao abrigo do disposto no art. 690º, n.º 3, do CPC.
4. Desta decisão do Supremo Tribunal de Justiça, foi interposto pelo arguido A, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, recurso de constitucionalidade, para apreciação da inconstitucionalidade da norma que, na interpretação da decisão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Abril de 1998, se extrai do n.º 3 do artigo 690º do Código de Processo Civil, na redacção anterior à resultante dos Decretos-Lei nºs 329/A-95 e 180/96.
5. Na sequência do Acórdão do Tribunal Constitucional, de 5 de Maio de 1999, que decidiu julgar inconstitucional, em determinadas interpretações normativas, a norma do artigo 690º, n.º 3, do Código de Processo Civil, foram os autos remetidos ao Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 1 de Julho de 1999, decidiu manter o despacho reclamado, indeferindo a reclamação do arguido A e, em consequência, não conhecer do seu recurso.
6. Inconformado com esta decisão, o arguido A apresentou, ao abrigo das alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, novo recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, recurso que, por decisão do Ex.mo Conselheiro Relator do processo no Supremo Tribunal de Justiça, não foi admitido, com fundamento em que seria manifestamente infundado.
7. Desta decisão foi interposta, ao abrigo do disposto nos artigos 76º, n.º 4 e
77º da LTC, reclamação para o Tribunal Constitucional, que, pelo Acórdão n.º
184/01, tirado em plenário, julgou a mesma procedente.
8. Em cumprimento desta decisão do Tribunal Constitucional, o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 7 de Fevereiro de 2002, decidiu ordenar o prosseguimento dos autos, com o consequente julgamento do recurso que havia sido interposto pelo arguido A. Nessa sequência proferiu, em 11 de Abril de 2002, acórdão com o seguinte teor:
“Pelos fundamentos expostos no parecer do relator exarado a fls. 2300 e segs., que aqui se dão por inteiramente reproduzidos, acorda-se, quanto às questões suscitadas pelo réu A no seu recurso, em julgá-lo manifestamente infundado no que concerne às seguintes questões: momento da consumação do crime de fraude na obtenção de subsídio (conclusões 1ª a 13ª e 32ª a 39ª) e omissão de pronúncia e falta de fundamentação do acórdão da Relação acerca dos perdões (conclusões 40ª a 45ª), e em não conhecer dele no que toca às seguintes questões: medida concreta da pena (em termos de atenuação especial) e suspensão da respectiva execução (conclusões 14ª a 21ª) e violação do disposto no art. 447º do CPP de 1929 (conclusões 22ª a 31ª), sem embargo de, quanto a esta última questão, se acordar ainda em julgar o recurso manifestamente infundado, assim se confirmando, inteiramente, o decidido pela Relação de Lisboa no que respeita ao recorrente”.
9. Notificado desta decisão o arguido A veio reclamar da mesma para a Conferência, por nulidades, em virtude de ter deixado de apreciar questões que deveria ter apreciado, reclamação que foi indeferida pelo Acórdão de 27 de Junho de 2002.
10. Na sequência o arguido A veio recorrer para o Tribunal Constitucional, apresentado um requerimento de interposição do recurso que conclui nos seguintes termos:
“A) O presente recurso funda-se na alínea b) do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional e da fiscalização da constitucionalidade; B) A decisão recorrida é o douto acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Abril de 2002, que, confirmando anterior acórdão da Relação de Lisboa, condenou o ora recorrente em pena de prisão pela prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio previsto e punido no n.º 1 do art. 36º do Decreto-Lei
28/84 de 20/01; C) A norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada, é a do art. 36º do Decreto-Lei 28/84 de 20/01, na interpretação e aplicação que dela foi feita pelo Tribunal a quo (cfr. art. 80º n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional); D) As normas violadas foram as dos art.s 2º, 3º, 18º e 29º da CRP e as dos art.s
1º 2º e 3º do Código Penal, que consagram os princípios do Estado de direito, da Legalidade e Tipicidade Penal e da Força Jurídica dos Preceitos Constitucional; E) O recorrente suscitou a questão perante o Supremo Tribunal de Justiça, em recurso entrado em 03.06.97, com apresentação de novas conclusões em 29.07.97; mas a questão fora já aflorada perante o Tribunal da Relação de Lisboa, nas alegações ali entradas em 24.04.95; F) O Recorrente dispõe de legitimidade (art. 72º, n.º 1, alínea b)) e está em prazo, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 75º da Lei n.º 28/82 de 15.11”.
11. Por parte do Supremo Tribunal de Justiça foi proferida decisão que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional.
12. Desta decisão foi interposta pelo arguido A reclamação para o Tribunal Constitucional, a qual foi indeferida pelo acórdão n.º 43/2003, de 27 de Janeiro de 2003, cuja fundamentação, agora relevante, tem o seguinte teor:
“[...]
3. Novamente inconformados os arguidos recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo formulado, a concluir a sua alegação, designadamente as seguintes conclusões:
[...] B) O arguido A:
«(...)
7. Porém, como sustentam predominantemente a jurisprudência e a melhor doutrina citadas no corpo desta alegação, a fraude na obtenção de subsídio ou subvenção consuma-se no momento em que foi dado o despacho de aprovação do projecto de candidatura do arguido. A partir desse despacho, a importância concedida sai da esfera patrimonial do concedente, passando para a do «concedido», certo que o primeiro já não poderia dispor dessa verba.
8. O depósito de numerário em conta do arguido e o caminho dado por este ao mesmo são irrelevantes. O «iter criminis» mostra-se preenchido independentemente do local onde o montante concedido venha a ser percebido.
9. A fraude na obtenção de subsídio consuma-se não no momento coincidente com a entrega efectiva do subsídio previamente concedido, mas sim – e apenas – no momento em que foi dado o despacho de aprovação do pedido de concessão do mesmo subsídio.
10. O que ocorreu com a prolação, pelo Secretário de Estado das Pescas, do despacho de concessão do subsídio, em 31 de Dezembro de 2003 (cfr. fls. 1272 e v.º e resposta aos quesitos 19 a 21 e 59).
11. É pois esse – e não outro – o momento do «resultado», da consumação do crime: aquele em que se produziu o dano que o legislador quis prevenir; dano esse consubstanciado pelo despacho favorável de concessão do subsídio, proferido em consequência das manobras fraudulentas e dos erros que o pré-determinaram.
12. Os princípios da tipicidade e da legalidade prescritos no art. 29º da Constituição, são postos em causa quando se condena alguém pela prática de um crime ainda não previsto nem punido.
13. Ao decidir como decidiu, o douto acórdão recorrido fez, pois, errada interpretação e aplicação não só do preceito do direito penal económico do art.
36º do DL 28/84, de 20 de Janeiro como – e fundamentalmente – dos princípios constitucionais básicos da legalidade e da tipicidade prescritos no art. 29º da CRP, art.s 1º e 2º do CP e 146 e segts. E 673 e sgts. Do CPP.
(...)
34. Atentas as diferenças típicas, sua repercussão no tema da prova e no objecto do processo, a incriminação adequada aos factos provados é a correspondente ao art. 36º, n.º 1, al. a), n.º 2, n.º 3 e n.º 8 do DL 28/84, e não aquela que foi adoptada no acórdão recorrido, em convolação para o crime de burla agravada, na forma continuada.
35. Nos termos do art. 86º do citado Dec. Lei 28/84, de 20 de Janeiro, o aludido diploma apenas entrou em vigor em 1 de Março de 1984.
36. À data da consumação do crime consubstanciado pelos factos imputados ao Réu A – 31 Dez. 83 – ainda não se encontrava em vigor o aludido Dec. Lei; que é o
único a tipificar e a correctamente enquadrar juridicamente a punibilidade de tais factos.
37. Constitui princípio fundamental consagrado no art. 29º da Constituição da República Portuguesa que«ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão...”
38. Preceito que contém o essencial do regime constitucional da lei criminal – NULLUM CRIMEN SINE LEGE, NULLA POENA SINE LEGE – aliás também consagrado nas disposições penais dos artigos 1º e 2º do CP; art.s 146º e ss e 673º e ss. do CPP.
39. Constitui um impossível jurídico - constitucional, além de também juridico-penal -, condenar o Réu A pela prática de factos não previstos e punidos criminalmente à data em que tenham sido presumivelmente praticados.
(...)”.
17. A reclamação do arguido A
(...)
17.2 Importa, porém, averiguar desde já se estão verificados os demais pressupostos processuais do recurso interposto, já que, como se afirma no Acórdão deste Tribunal n.º 641/99 (inédito), “destinam-se as reclamações sobre não admissão dos recursos intentados para o Tribunal Constitucional a verificar a eventual preterição da devida reapreciação, pelo Tribunal Constitucional, de uma questão de constitucionalidade, em sede de recurso de constitucionalidade”. Pelo que, continua o Acórdão citado, “mais que apreciar a fundamentação do despacho de indeferimento do recurso, há, pois, que verificar o preenchimento dos requisitos do recurso de constitucionalidade que se pretendeu interpor”, sendo certo que, ao decidir a reclamação, a decisão do Tribunal Constitucional faz caso julgado quanto à admissibilidade do recurso, nos termos do artigo 77º, n.º 4, da Lei n.º 28/82. O recurso previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional - que o ora reclamante pretendeu interpor – pressupõe, consequentemente, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma processualmente adequada, a inconstitucionalidade de uma norma jurídica, ou de uma sua interpretação normativa.
Vejamos, pois, se tal aconteceu no caso dos autos.
Tal como delimitado pelo reclamante A no requerimento de interposição do recurso, o mesmo teria por objecto a norma do artigo 36º do Decreto-Lei n.º
28/84, de 20 de Janeiro, na interpretação segundo a qual “o que releva para a consumação do crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção é a obtenção efectiva do subsídio ou da subvenção e não a concessão destes por despacho da entidade competente para o efeito, e ainda que o crime se consuma com o pagamento efectivo da última tranche de subsídio concedido”. A verdade, porém, é que só no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional a questão de inconstitucionalidade surge equacionada deste modo. Com efeito, verifica-se que durante o processo - concretamente nas conclusões da alegação apresentada perante o Supremo Tribunal de Justiça - o reclamante não suscitou propriamente a inconstitucionalidade de uma norma com uma determinada interpretação, antes imputou o vício de inconstitucionalidade à própria decisão recorrida.
(...). Ora, das transcrições feitas resulta que o ora reclamante não imputa o juízo de inconstitucionalidade a uma norma jurídica, mas ao próprio acto (decisão judicial) de aplicação, no caso concreto, do artigo 36º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro. O que, naquela peça processual, o ora reclamante verdadeiramente questiona é o processo interpretativo (e, nesse sentido, a decisão judicial) que permitiu ao tribunal recorrido subsumir à descrição típica os factos que lhe são imputados. Dito de outra forma, o que o ora reclamante ali impugnou foi a aplicação ao caso do artigo 36º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro – a norma que define os elementos do tipo do crime de fraude na obtenção de subsídio e estabelece a respectiva punição. Efectivamente, ao referir-se, durante o processo, a uma eventual violação da Constituição, o ora reclamante invocou afinal a inconstitucionalidade da decisão judicial na parte em que considerou subsumível a sua conduta ao tipo de crime previsto e punido por aquela norma, e não a inconstitucionalidade da norma jurídica em que a decisão se fundamentou. Dessa forma, não tendo sido suscitada durante o processo pelo ora reclamante, de modo processualmente adequado, uma questão de inconstitucionalidade normativa, conclui-se que não se encontram verificados os pressupostos processuais de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. E isto independentemente da questão de saber se, neste ponto, ainda assim seríamos confrontados com uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa. Por tudo o exposto, entende-se que a presente reclamação deve ser indeferida.'
13. Na sequência desta decisão o requerente veio de novo aos autos, desta vez para requerer a sua aclaração, o que foi indeferido pelo acórdão n.º 96/2003, de
17 de Fevereiro.
14. Notificado desta decisão o arguido A voltou aos autos, agora para requerer a reforma do Acórdão n.º 43/2003, apresentando um requerimento que, por ser insusceptível de qualquer síntese, se transcreve na íntegra, tal como foi apresentado:
' A, Reclamante nos autos à margem referenciados, tendo sido notificado do Acórdão da Conferência n° 96/2003 de 17 de Fevereiro de 2003 que decidiu, desatendendo-o, o seu pedido de aclaração do douto Acórdão n° 43/2003 de 27 de Janeiro de 2003 da mesma Conferência, vem, nos termos e ao abrigo do disposto na segunda parte da alínea a) do n ° 2 do art. 669° e no n ° 3 do art. 670° do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do art. 69° da Lei n° 28/82 de 15 de Novembro e dos arts. 716° e 666° n° 3 do C PC, requerer a reforma deste, nos termos e pelos fundamentos seguintes:
1. De acordo com o estabelecido na segunda parte da alínea a) do n° 2 do art.
669° do Código de Processo Civil ao caso aplicável, é lícito às partes requerer a reforma da sentença quando tenha ocorrido manifesto lapso do juiz na qualificação jurídica dos factos.
2. Entende o Reclamante, ora requerente, que ocorre tal lapso no Acórdão desta Conferência n° 43/2003 de 27 de Janeiro de 2003.
3. E tal lapso manifesto na qualificação jurídica dos factos consiste em se ter considerado que dos factos que os autos patenteiam resulta que o recorrente não suscitou durante o processo e de forma processualmente adequada a inconstitucionalidade de uma norma jurídica ou de uma sua interpretação normativa.
4. Qualificação esta que serviu para aplicar a cominação a contrario estabelecida na alínea b) do n° 1 do art. 70° da LTC, e que se traduziu na não admissão do recurso.
5. O fundame[n]to do presente requerimento de reforma consiste, justamente, na consideração de que os factos dos autos - e, designadamente, os termos em que suscitou nas conclusões perante o STJ a questão da constitucionalidade normativa que é fundamento do recurso de fiscalização concreta interposto - suportam serem qualificados como suscitação durante o processo e de forma processualmente adequada da inconstitucionalidade de uma norma jurídica ou de uma sua interpretação normativa.
6. E que o entendimento contrário integra lapso manifesto na qualificação jurídica de tais factos.
7. A qualificação jurídica dos factos traduz-se na actividade de o intérprete lhes atribuir - às realidades da vida - qualidades ou títulos ou de os classificar em termos de categorias de dogmática jurídica, em ordem à sua subsunção, ou não, na previsão de um -ou mais- normativos legais, com vista à respectiva aplicação.
8. Os normativos legais que estão em causa são as regras positivas de direito constitucional adjectivo que permitem estabelecer qual é o modo processual adequado de se suscitar uma questão de constitucionalidade normativa, para efeitos da admissibilidade de recurso de fiscalização concreta;
9. São elas, no que a esta questão importa, as da alínea b) do n° 1 do art. 70° da LTC a do n° 2 do art. 70° e a do n° 2 do art. 75°-A do mesmo diploma.
10. A primeira, que é apenas conclusiva, limita-se a dispor que cabe recurso para o Tribunal Constitucional (...) das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
11. A segunda -e a mais relevante-, estatui que só assiste legitimidade para recorrer à parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
12. E a terceira, disciplina que o recorrente deve indicar no requerimento de interposição do recurso a norma ou o princípio constitucional ou legal que considera violados, bem como a peça processual em que suscitou a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade.
13. No que respeita ao preenchimento da previsão legal desta terceira norma, não se levantam quaisquer dúvidas, sendo claro que no requerimento de interposição do recurso o ora requerente identificou clara e inequivocamente as normas e os princípios constitucionais que considerou violados, bem como a peça processual em que suscitara a questão.
14. E, portanto, cumpriu esse ónus que sobre si impendia.
15. E tanto assim foi, que nem o Senhor Conselheiro Relator no STJ nem o Senhor Conselheiro Relator neste Tribunal Constitucional lhe dirigiram o convite a que se refere o nº 5 do art. 75°-A da L TC.
16. No que tange à segunda norma, ou seja, à questão de saber qual o sentido do que seja a adequação processual no modo de suscitação da questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade, a lei apenas concretiza que a mesma se traduz na suscitação de tal questão perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
17. Vejamos pois os factos dos autos, para aquilatar da sua subsunção nesta previsão legal.
18 Salienta-se que nos termos do douto Acórdão reformando, a inadequação processual no modo como o Reclamante suscitou a questão perante o STJ, consistiu em aquele não imputar o juízo de inconstitucionalidade a uma norma jurídica, mas ao próprio acto (decisão judicial) de aplicação, no caso concreto, dessa norma - cfr. fls. 234.
19 E inquestionável que o Reclamante erigiu a crítica da inconstitucionalidade contra a forma como a norma em causa foi interpretada e aplicada na decisão recorrida.
20.Crítica essa que, por isso mesmo, naturalmente atinge não só a norma, naquelas interpretação e aplicação, mas também a própria decisão que as encerram. Ora,
21. As decisões dos tribunais que aplicam normas interpretadas em termos expressamente reputados de desconformes à Lei Fundamental, enfermam, elas próprias também, de um claro grau de desrespeito à Constituição;
22. Pelo que a circunstância de a decisão ter sido reputada de desconforme à Constituição não deve por si só constituir critério de não admissão do recurso, desde que seja apreensível que a inconstitucionalidade suscitada foi erigida também contra a norma, interpretada e aplicada de certa forma.
23. Sobretudo nos casos, como este, em que claramente o tenha sido contra ambas.
24. Ainda que se admita que a suscitação pode ser apodada de técnicamente deficiente, podendo e devendo ter sido feita de forma mais preclara e porventura mais correcta.
25. E sobretudo, também, nos casos em que se mostra evidente que durante o processo o Recorrente suscitou a violação de preceitos constitucionais, na perspectiva do impacto que tal violação tinha na questão central do processo, in casu, a condenação pela prática de um crime.
26. Nas conclusões apresentadas perante o STJ em 29 de Julho de 1997, o Reclamante suscitou a questão nos seguintes termos:
“1. Os factos imputados aos RR. e dados como provados pelos Tribunais de instancia integram a tipicidade penal de um crime de fraude na obtenção de subsídio, p. e p. pelo D.L. 28/84 e não de burla agravada, p .e p. nos arts. 313 e 314 do C.P. como havia sido decidido em 1ª instancia.
2. Tal crime integra um 'tipo novo ... que a nossa ordem jurídica não poderia continuar a ignorar...”, e que portanto ainda não contemplava, pelo que só passou o mesmo a ser previsto e punido com a entrada em vigor do citado Dec. Lei
28/84, de 20/01/84.
3. Contudo, não estava ainda em vigor o referido decreto-lei 'à data da consumação dos factos’, já que por força do disposto no seu art°. 86°, tal diploma entrou em vigor apenas em 1 de Março de 1984.
4. O critério perfilhado na determinação do momento consumativo do crime em apreço foi o 'da concessão da vantagem patrimonial indevida'. (sic p. 1675, §
4°)
5. A atribuição do subsídio 'teria ocorrido entre o dia 17 de Fevereiro de 1984
(data da carta do R. Marcelino de Brito) e Abril de 1984 (data da entrega da primeira tranche do subsidio) sem que possa determinar-se ao certo a data exacta;' (sic do Acórdão de 1ª instância)), razão pela qual o Tribunal Colectivo afastou a aplicação, ao caso, deste diploma.
6. Não se duvida que o crime em presença seja um crime material de resultado:
'(quem obtiver subsidio ou subvenção)”.
7. Porém, como sustentam predominantemente a jurisprudência e a melhor doutrina citadas no corpo desta alegação, a fraude na obtenção de subsídio ou subvenção consuma-se no momento em que foi dado o despacho de aprovação do projecto de candidatura do arguido. A partir desse despacho, a importância concedida sai da esfera patrimonial do concedente, passando para a do “concedido”, certo que o primeiro já não poderia dispor dessa verba.
8. O depósito de numerário em conta do arguido e o caminho dado por este ao mesmo são irrelevantes. O 'iter criminis' mostra-se preenchido independentemente do local onde o montante concedido venha a ser percebido.
9. A fraude na obtenção de subsidio consuma-se, não no momento coincidente com a entrega efectiva do subsidio previamente concedido, mas sim - e apenas - no momento em que foi dado o despacho de aprovação do pedido de concessão do mesmo subsidio.
10. O que ocorreu com a prolacção [sic], pelo Secretário de Estado das Pescas, do despacho de concessão do subsidio, em 31 de Dezembro de 1983 (Cfr. fls. 1272 e vº. e resposta aos quesitos 19 a 21 e 59))
11. É pois esse - e não outro - o momento do 'resultado', da consumação do crime: aquele em que se produziu o dano que o legislador quis prevenir; dano esse consubstanciado pelo despacho favorável de concessão do subsidio, proferido em consequência das manobras fraudulentas e dos erros que o pré-determinaram. Em face do exposto,
12. Os princípios da tipicidade e da legalidade prescritos no art°. 29° da Constituição, são postos em causa quando se condena alguém pela prática de um crime ainda não previsto nem punido.
13. Ao decidir como decidiu. o douto Acórdão recorrido fez pois, errada interpretação e aplicação não só do preceito de direito penal económico do art°.
36° do D.L 28/84 de 20 de Janeiro como – e fundamentalmente- dos princípios constitucionais básicos da legalidade e da tipicidade prescritos no art°.9° da C.R.P., anos. 1° e 2° do C.P. e 146 e segts. e 673 e segts. do C.P.P..
34. Atentas as diferenças tipicas, sua repercussão no tema da prova e no objecto do processo, a incriminação adequada aos factos provados é a correspondente ao art°. 36° n°. 1 al. a), n°. 2, no. 3 e n°. 8 do D.L 28/84, e não aquela que foi adoptada no douto Acordão recorrido, em convolação para o crime de burla agravada, na forma continuada.
35. Nos termos do art°. 86° do citado Dec. Lei 28/84 de 20 de Janeiro, o aludido diploma apenas entrou em vigor em 1 de Março de 84. Assim,
36. À data da consumação do crime consubstanciado pelos factos imputados ao Réu.A - 31 Dez. 83 - ainda não se encontrava em vigor o aludido Dec. Lei; que é o único a tipificar e a correctamente enquadrar juridicamente a punibilidade de tais factos.
37. Constitui princípio fundamental consagrado no art°. 29°da Constituição da República Portuguesa que 'ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, ... '
38. Preceito que contém o essencial do regime constitucional de lei criminal – NULLUM CRIMEN SlNE LEGE. NULLA POENA SINE LEGE – aliás também consagrado nas disposições penais dos art°s, 1º e 2° do C.P.; art°s. 146 e ss. e 673 e ss. do C.P.P. Por isso,
39. Constitui um impossível jurídico - constitucional, além de também jurídico - penal, condenar o Réu .A pela prática de factos não previstos e punidos criminalmente à data em que tenham sido presumivelmente praticados”. Ora,
27.Destes termos que, insiste-se, admite-se poderem ser técnicamente criticáveis, resultava a obrigação para o Supremo Tribunal de Justiça de conhecer da questão de saber se constitui violação dos princípios da legalidade e da tipicidade penal, consagrados no art.º 29 nºs 1, 3 e 4 da C.R.P., e violação do disposto nos artºs 1°.2° e 3° do Código Penal., interpretar e aplicar a norma do artº 36° do Decreto-lei 24/84 de 20/01 no sentido de que comete o crime de fraude na obtenção de subsídio previsto naquela norma quem, anteriormente à sua entrada em vigor, pratica actos integrantes de 'fraudes e erros que recaiam sobre factos relevantes para a concessão do subsídio”, que eventualmente constituem manobras fraudulentas e erros que antecedem a concessão do subsídio e o predeterminam causalmente.
28. E, nessa medida, a suscitação da questão nesses termos e com esse sentido era perfeitamente apreensível.
29.E desses termos e desse sentido resultava a obrigação para o STJ de dela conhecer.
30.E tanto era apreensível que foi efectivamente apreendida, sendo certo que o STJ dela expressamente conheceu, tendo proferido verdadeiros juízos de constitucionalidade, cuja sindicação junto deste Tribunal Constitucional o Reclamante vê agora recusada pelo Acórdão reformando.
31.É certo que no requerimento de interposição do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, o Reclamante usou de melhor técnica jurídica ao se servir de uma redacção mais adequada na identificação da questão de constitucionalidade normativa.
32.Mas tal não significa que o modo por que suscitara a questão perante o Supremo Tribunal de Justiça deva ter-se por processualmente inadequado, para afastar a admissibilidade do recurso.
33. É que, e fazendo apelo a um critério funcional na interpretação da expressão
'modo processualmente adequado', havia que assentar a decisão na questão de saber se o conteúdo das alegações feitas pela parte nesse sentido era ou não apto a realizar as funções que legitimam aquela exigência, e designadamente de impôr ao Tribunal recorrido o conhecimento da questão.
34. E, manifestamente, parece que os termos em que o Reclamante suscitou a questão da constitucionalidade normativa perante o STJ eram perfeitamente aptos a realizar tais funções, designadamente a de identificar claramente a questão em termos de o Tribunal recorrido estar obrigado a conhecê-la.
35.Sendo certo que o entendimento perfilhado no Acórdão reclamando constitui uma restrição interpretativa do conceito de 'modo processualmente adequado'.
36.Restrição interpretativa essa que acarreta uma redução inadmissível das garantias do Arguido em processo criminal, de acordo com jurisprudência anterior deste Tribunal, mesmo no âmbito destes autos criminais.
37. Com efeito, o próprio Tribunal Constitucional, no seu douto Acórdão de 5 de Maio de 1999 -fls. 1993 e seguintes-, expressou já o seguinte entendimento:
'Ao assegurar a todos o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (artº 20) e, específicamente, ao prever que ‘o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa, incluindo o recurso’
(art. 32º nº 1), a Constituição não só assegura que ao arguido sejam facultados todos os meios necessários e adequados para que possa defender a sua posição em juízo, como impede a existência de normas processuais -ou de interpretações normativas- que se traduzam numa limitação defesa. '
'Nesse sentido, ponderando sobre o alcance do art°32° n° 1 da Constituição, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada. 2a Ed., Vol., pp. 214-215. anotação II):
'A fórmula do n° 1 é, sobretudo, uma expressão condensada de todas as normas restantes deste artigo, que todas elas são, em última análise, garantias de defesa. Todavia, este preceito introdutório serve também de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal. ‘Todas as garantias de defesa’ engloba indubitávelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação.'
'Em idêntico sentido se tem pronunciado também, por inúmeras vezes. o Tribunal Constitucional. No Acórdão 61/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11°Vol., pp 611 e ss.) pode ler-se:'
'Esta cláusula constitucional apresenta-se com um cunho 'reassuntivo' e
'residual' -relativamente às concretizações que já recebe nos números seguintes do mesmo artigo- e, na sua abertura, acaba por revestir-se, também ela, de um carácter acentuadamente 'programático'. Mas, na medida em que se proclama aí o próprio princípio da defesa, e portanto indubitávelmente se apela para um núcleo essencial deste, não deixa a mesma cláusula constitucional de conter 'um eminente conteúdo normativo imediato a que se pode recorrer, em casos limite, para institucionalizar certos preceitos da lei ordinária’ (cfr. Figueiredo Dias, A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os tribunais, pg. 51; e acórdão n°
164 da Comissão Constitucional, apêndice ao Diário[] da República I série, de 31 de Dezembro de 1979).'
'A ideia geral que pode formular-se a este respeito - a ideia geral, em suma, por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio da defesa, para além das consignadas nos nºs 2 e seguintes do artº
32°- será a de que o processo criminal há-de configurar-se como um due process of law devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido (assim, básicamente, cfr. Acórdão n° 377/86, deste Tribunal, Diário da República. I série, de 30 de Dezembro de 1986).'
38.Pelo que ao qualificar os termos em que a suscitação da questão da constitucionalidade normativa foi feita pelo Reclamante perante o STJ como 'modo processualmente inadequado', para efeitos da aplicação das normas da alínea b) do n° 1 do artº 70° e do n° 2 do artº 70° da L TC, incorreu este Tribunal em lapso manifesto na qualificação jurídica desses factos.
39.
40.Requer pois a Vªs Exas. se dignem reformar o douto Acórdão nº 43/2003 de 27 de Janeiro de 2003, nos termos acabados de expôr, com as legais consequências.”
15. Notificado deste pedido de reforma, o Ministério Público veio responder, considerando que “o pedido de «reforma» traduz manifesto – e abusivo - uso ilegítimo do meio processual de «reforma» da sentença, previsto no art. 669º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Civil, já que é evidente que o acórdão proferido por este tribunal não enferma de qualquer “lapso” susceptível de correcção ou suprimento” [...], “sendo evidente que, na peça processual ora apresentada, o reclamante se limita a dissentir do definitivamente decidido no acórdão nº 43/2003, naturalmente insusceptível de nova impugnação perante a conferência”. Assim, pronuncia-se no sentido de que “o Tribunal lance mão da disciplina contida no artigo 84º, n.º 8, da Lei n.º 28/82, a fim de pôr termos à litigância – ostensivamente dilatória – do reclamante, inibidora do termo normal dos presentes autos de reclamação”.
16. O Tribunal, atendendo à sequência processual que precedeu o presente requerimento e os fundamentos invocados pelo ora requerente para solicitar a reforma do acórdão n.º 43/2003, considerou ser manifesto que aquilo que, a final, o requerente pretendia era obstar ao cumprimento da decisão proferida pelas instâncias, pelo que, nos termos do n.º 8 do artigo 84º da LTC, conjugado com o artigo 720º do Código de Processo Civil, decidiu, pelo Acórdão n.º 129/03, de 7 de Março de 2003, mandar extrair traslado de fls. 219 e seguintes, a fim de tudo ser processado em separado, para, cumprido o condicionalismo expresso na parte final do citado artigo 84º n.º 8 da LTC, ser proferida decisão sobre aquele requerimento, e remeter os autos imediatamente ao Supremo Tribunal de Justiça.
Cumprido o condicionalismo expresso na parte final do citado artigo 84º n.º 8 da LTC, cumpre decidir, sendo dispensados os vistos.
II. Fundamentação.
17. Tem o presente requerimento de reforma do acórdão 43/2003 como fundamento um alegado 'manifesto lapso do juiz na qualificação jurídica dos factos'. Verifica-se, porém, que, nas dezoito folhas que ocupa no processo, nada existe que justifique uma tal reforma. De facto, nada é aduzido, com relevância para a decisão, que não tivesse sido correcta e adequadamente ponderado e qualificado no citado acórdão. Com efeito, como se afirma nas alegações do Ministério Público é “evidente que, na peça processual ora apresentada, o reclamante se limita a dissentir do definitivamente decidido no acórdão nº 43/2003, naturalmente insusceptível de nova impugnação perante a conferência.”
Acresce que é suficiente ler as longas transcrições supra (bem como, aliás, as efectuadas nos três acórdãos que, só neste ano de 2003, foram já produzidos por este Tribunal nos presentes autos em relação ao arguido A), para se concluir que, a haver manifesto lapso, não foi, seguramente, do acórdão reformando, o qual, tomando em consideração todos os elementos pertinentes do processo, qualificou correctamente os factos e decidiu em conformidade. Ao invés, e não se tratou de uma mera deficiência técnica, é óbvio que, conforme aí se decidiu e foi detalhadamente fundamentado (resultando igualmente, de forma patente, das transcrições efectuadas no próprio requerimento de reforma), não foi suscitada durante o processo pelo ora reclamante, de modo processualmente adequado, de acordo com jurisprudência uniforme e constante deste Tribunal, uma questão de inconstitucionalidade normativa, pelo que não se encontravam verificados os pressupostos processuais de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Sendo isto assim, já se vê que o acórdão de que se pede a reforma (ou seja, o acórdão nº 43/2003) não enferma de qualquer lapso manifesto.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir o pedido de reforma do acórdão n.º 43/2003. Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta. Lisboa, 11 de Abril de 2003 Gil Galvão Bravo Serra Luís Nunes de Almeida