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Proc. n.º 17/04
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A. (ora recorrida), cidadã brasileira, residente na Av. --------------------, n.º ---, -º -, em ----------, contribuinte fiscal n.º ---------------------, requereu ao Instituto de Solidariedade e Segurança Social, em 28 de Outubro de
2002, apoio judiciário com vista à propositura de acção laboral. O requerimento foi, porém, indeferido, por despacho de 27 de Novembro de 2002, com fundamento em que a requerente não seria titular de autorização de residência válida, emitida pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, mas apenas de autorização de permanência, averbada no seu passaporte.
2. Inconformada com esta decisão a requerente recorreu para o Tribunal de Trabalho de Lisboa que, por decisão de 14 de Novembro de 2003, concedeu o apoio judiciário solicitado. Para decidir desta forma ponderou aquele Tribunal:
“[...] Dispõe o art. 7°, n° 2 da Lei n° 30-E/2000, de 20/12 que os estrangeiros que residam habitualmente em Portugal gozam de protecção jurídica nos termos daquele diploma. Contudo, como refere o recorrido, o D.L. 391/88, de 26/10, estabelece no seu art.1° que 'para efeito de protecção jurídica, a residência habitual de estrangeiros ou apátridas titulares a que se refere o n° 2 do art. 7° do D.L.
387-8/87, de 29 de Dezembro, implica a sua permanência regular e continuada em Portugal, por período não inferior a um ano, salvo regime especial decorrente de tratado ou convenção internacional que Portugal deva observar'. Esta disposição legal foi expressamente ressalvada da revogação constante do art. 56°, n.º 1 da Lei n° 30-E/2000, de 20/12, pelo que a referência constante da mesma ao art.7º, n° 2 do D.L. 387-B/87, deve hoje entender-se como feita para o art. 7° n.º 2 da referida Lei 30-E/2000. Por outro lado, o D.L. n° 244/98, de 08/08 estabelece, nos seus arts. 2° e 3°, que estrangeiro residente será todo aquele que não tendo nacionalidade portuguesa, seja titular de uma autorização de residência válida em Portugal. Não obstante o supra exposto, entende este Tribunal que as disposições legais citadas, quando interpretadas no sentido de que o estrangeiro residente em Portugal que não seja titular de autorização de residência válida, mas disponha de autorização de permanência válida, se ache inscrito e a contribuir para o sistema de Segurança Social português, processe declarações de IRS, comprove encontrar-se numa situação de insuficiência económica nos termos e para os efeitos previstos na Lei n° 30-E/ 20/12, e pretenda obter o benefício de Apoio Judiciário com vista à interposição de acção no Tribunal do Trabalho para defesa dos seus direitos como trabalhador não pode obter tal benefício por não ser titular de autorização de residência válida é inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da dignidade humana, do direito ao trabalho e dos direitos dos estrangeiros residentes, vertidos, v.g., nos arts. 1°, 15°, 26°,
53º, e 58º da Constituição da República Portuguesa. Na verdade, ainda que eventualmente se venha a constatar que o direito da Requerente a permanecer no nosso país é precário, o direito que a mesma pretende valer em juízo neste Tribunal prende-se certamente com factos passados, isto é com trabalho já prestado. Ora, se o Estado Português não colocou quaisquer obstáculos à Requerente quando a mesma se inscreveu nas Finanças e na Segurança Social, e recebeu os impostos e as contribuições para a Segurança Social que a mesma pagou, não pode negar-lhe o acesso ao Direito e aos Tribunais, para constituir advogado e suportar as custas de uma acção judicial, ainda para mais uma acção laboral, sendo certo que a Requerente não dispõe de meios económicos para a custear. É que nesta situação, a denegação à Recorrente do acesso ao Tribunal do trabalho para fazer valer os seus direitos enquanto trabalhadora constituiria, em nosso entender, a violação dos referidos princípios constitucionais da defesa da dignidade humana e do direito ao trabalho, bem como dos direitos constitucionalmente assegurados aos estrangeiros residentes, vertidos, entre outros, nos arts. 1°, 15°, 26°, 53°, e
58° da Constituição da República Portuguesa. IV – DECISÃO Por todo o exposto, e tendo em conta o juízo de constitucionalidade supra exposto, ao abrigo do estabelecido no art. 2° da Constituição da República, decide este Tribunal desaplicar, ao caso concreto, o conceito de estrangeiro residente constante dos arts. 1° do D.L. 391/88, e de 26/10, e dos arts. 2° e 3° do D.L. no 244/98, de 08/08, pelo que, em consequência, considerando demonstrado que a Recorrente [...] se encontra em situação de insuficiência económica, por força da presunção estipulada no art. 20°, no 1, al. c) da Lei n° 30-E/2000, de
20/12, decide este Tribunal revogar a decisão recorrida concedendo à Recorrente o benefício de Apoio Judiciário, na modalidade peticionada de dispensa de Taxa de Justiça Inicial e do pagamento das demais custas e encargos do processo
[...]”.
3. É desta decisão que vem interposto pelo representante do Ministério Público naquele Tribunal, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do art.º 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, o presente recurso, para apreciação da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 7º, n.º 2, da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro.
4. Admitido o recurso foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
“1 – É materialmente inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da não discriminação e do acesso ao direito e aos tribunais para efectivação de direitos de natureza laboral, a interpretação restritiva da norma constante do artigo 7º, n.º 2, da Lei n.º 30-E/2000, que conduz a denegar o benefício do apoio judiciário ao trabalhador estrangeiro que reside efectivamente em Portugal, dispondo de autorização de permanência – aqui trabalhando e cumprindo os seus deveres para com a Administração Fiscal e a Segurança Social – para a propositura de acção laboral, com fundamento em que não dispõe de autorização de residência válida em território português.
2 – Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida”.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II. Fundamentação.
5. Delimitação do objecto do recurso.
Vem o presente recurso interposto ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo
70º, da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação, nos termos do respectivo requerimento de interposição, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 7º, n.º 2, da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro. Importa, porém, começar por delimitar mais rigorosamente o objecto do recurso assim delineado.
Com efeito, em causa nos presentes autos está apenas uma determinada interpretação normativa daquele preceito, quando lido conjuntamente com o disposto no artigo 1° do Decreto-Lei n.º 391/88, de 26 de Outubro e com os artigos 2° e 3° do Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, a saber: a interpretação que conduz a recusar a concessão do benefício de apoio judiciário para a propositura de acção laboral a trabalhador estrangeiro, economicamente carenciado, que, dispondo de autorização de permanência válida, resida efectivamente em Portugal e aqui trabalhe.
Foi esta a norma efectivamente desaplicada pela decisão recorrida, pelo que só ela constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade.
6. Julgamento do objecto do recurso
O Tribunal Constitucional pronunciou-se já, por diversas várias vezes, sobre a articulação do estatuto constitucional dos estrangeiros com a matéria do direito ao apoio judiciário. Assim, no Acórdão n.º 962/96 (Diário da República, I Série-A, de 15 de Outubro de 1996), tirado em Plenário, o Tribunal Constitucional decidiu declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas dos artigos 7º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, e do artigo 1º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 391/88, de 26 de Outubro, na parte em que vedam o apoio judiciário, na forma de patrocínio judiciário, aos estrangeiros e apátridas que pretendem impugnar contenciosamente o acto administrativo que lhes denegou asilo. Posteriormente, no Acórdão n.º
365/2000 (publicado no Diário da República, II Série, de 14 de Novembro de
2000), o Tribunal decidiu julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, na redacção dada pela Lei n.º
46/96, de 3 de Setembro, “enquanto nega a possibilidade da concessão de apoio judiciário ao cidadão de nacionalidade angolana que, alegando ter perdido a nacionalidade portuguesa com o processo de descolonização, pretende efectivar jurisdicionalmente em Portugal, onde não reside, o direito à aposentação com o fundamento de ter sido funcionário da antiga Administração Pública ultramarina”. Mais recentemente, no Acórdão n.º 433/03 (publicado no Diário da República, II Série, de 10 de Novembro de 2003), o Tribunal julgou inconstitucional a norma constante do n.º 3 do artigo 7º da Lei n.º 30-E/2000, por violação do disposto nos artigos 20º, n.ºs 1 e 2 e 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, “quando interpretada em termos de conduzir à recusa da concessão do benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos do processo, a estrangeiro não residente em Portugal, economicamente carenciado e arguido em processo penal pendente perante os tribunais portugueses”.
A jurisprudência firmada naqueles arestos permite igualmente concluir pela incompatibilidade da norma ora em apreciação com os preceitos que regem a garantia do acesso ao direito, designadamente com o disposto no artigo 20º, n.º
1, da Constituição.
Com efeito, também agora, a interpretação normativa que vem questionada, ao negar a possibilidade de acesso ao benefício do apoio judiciário para a propositura de acção destinada a fazer valer direitos emergentes de relação laboral exercida em Portugal, a trabalhador estrangeiro economicamente carenciado, que, dispondo de autorização de permanência válida, resida efectivamente em Portugal e aqui trabalhe, com o simples fundamento em que o mesmo não dispõe de autorização de residência válida em território português, coloca em causa “a tutela judicial como direito à garantia dos direitos” ou, como se escreveu nos Acórdãos n.º 365/00 e 433/03 (já citados), “um certo número de direitos fundamentais” - no caso, aqueles direitos dos trabalhadores, emergentes da actividade laboral, que a interposição da acção judicial, para a qual o benefício do apoio judiciário é requerido, se destina precisamente a fazer valer.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 20º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma que se extrai do n.º 2 do artigo
7º da Lei n.º 30-E/2000, quando interpretada em termos de conduzir à recusa da concessão do benefício de apoio judiciário para a propositura de acção laboral, a trabalhador estrangeiro economicamente carenciado, que, residindo efectivamente em Portugal, disponha de autorização de permanência válida e aqui trabalhe; b) consequentemente, negar provimento ao recurso.
Lisboa, 24 de Março de 2004
Gil Galvão Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Luís Nunes de Almeida