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Processo nº 104/03
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. - A, identificada nos autos, interpôs recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, ao abrigo do disposto no artigo
70º, nº 1, alíneas b), c) e f), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, da decisão do Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15 de Novembro de 2001, que indeferiu a reclamação por si deduzida do despacho judicial lavrado em acção contra si intentada pelo Ministério Público no Tribunal Judicial da Comarca de Torres Vedras – acção de dissolução, nos termos do nº 4 do artigo 533º do Código das Sociedades Comerciais –, não lhe admitindo o recurso que intentara para o Tribunal da Relação, dado o valor da acção ser inferior ao da alçada do tribunal de 1ª instância.
Os autos foram distribuídos à 1ª Secção do Tribunal Constitucional e, em 13 de Fevereiro de 2002, proferiu-se decisão sumária, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, na qual não se conheceu do recurso interposto ao abrigo das alíneas c) e f) do nº 1 do citado artigo 70º e se negou provimento ao recurso interposto no âmbito da alínea b) do mesmo preceito, por ser manifestamente infundado.
A decisão proferida foi objecto de reclamação, nos termos do nº 4 do artigo 76º do mesmo diploma legal, a qual veio a ser indeferida, pelos fundamentos que assistiram à decisão sumária, pelo acórdão nº
126/2002, de 14 de Março de 2002, tirado em conferência.
A reclamante foi notificada através de carta registada expedida em 18 de Março de 2002, tendo esse acórdão transitado em julgado em 16 de Abril seguinte (fls. 128 e 128-v. dos presentes autos).
2. - Inconformada, em 9 de Julho de 2002, a ora reclamante interpôs novo recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto nas alíneas b), c) e f) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, da sentença proferida na 1ª instância, 27 de Abril de 2001 (fls. 96 e segs.) na qual se declarou dissolvida a ré A.
Ao dissolver a sociedade, alegou, “a decisão recorrida” violou claramente e de forma inequívoca o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, maxime o seu nº 4, assim como o artigo 9º, alínea d), in fine, do mesmo texto.
3. - O requerimento mereceu reparos do juiz do processo que, nomeadamente, formulou um convite, nos termos do nº 5 do artigo 75º-A da Lei nº
28/82.
Escreveu-se, a certo passo, nesse despacho judicial, de
17 de Setembro de 2002:
“Nos termos do disposto no artigo 72º, nº 2 da citada lei, os recursos previstos nas alíneas b) e f) do nº 1 do artigo 70º, atrás aludido, só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal “a quo”, em termos de este estar obrigado a dela conhecer. Por outro lado, em conformidade com o artigo 75º-A, sempre da mencionada lei, são requisitos de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional que o recorrente indique na respectiva petição de recurso a alínea do nº 1 do artigo
70º ao abrigo da qual o recurso é interposto e a norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que aquele decastéreo [sic] Tribunal aprecie, bem como ainda, sendo o recurso interposto ao abrigo das referidas alíneas b) e f) do nº 1 do artigo 70º, a indicação da norma ou princípio constitucional ou legal que se considera violado, e a peça processual em que o recorrente suscitou, no decurso da acção, a quetsão da inconstitucionalidade ou ilegalidade (cfr. nº 2 do art. 75º-A). Atentando no teor da petição de recurso apresentada pela recorrente, constata-se a ausência da menção da peça processual dos presentes autos em que tivesse suscitado a questão da inconstitucionalidade da norma contida no nº 1 do artigo
787º do Cód. Proc. Civil, norma cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada. Conforme dispõe o nº 2 do artigo 76º da Lei do Tribunal Constitucional, o requerimento de interposição do recurso deve ser indeferido quando não satisfaça os requisitos do artigo 75º-A, da mesma lei. Todavia, permite o nº 5 deste último artigo que o recorrente seja convidado a prestar a indicação em falta. Assim, atento o exposto, e ao abrigo do artigo 75º-A, nº 5 da Lei do Tribunal Constitucional, convido a recorrente A a indicar, no prazo de 10 dias, a peça processual em que tenha suscitado, no decorrer na tramitação dos presentes autos, a questão da inconstitucionalidade da norma contida no nº 1 do artigo
787º do Cód. Proc. Civil, sob pena de indeferimento de interposição do recurso.”
4. - Como resposta, veio a interessada dizer:
“[...] Em síntese, alega a Recorrente como fundamento do recurso: a) Princípios constitucionais violados
- o direito à Justiça. Artº 20º nº 4 da Constituição da República Portuguesa;
- o direito ao bem estar económico e social (Artº 9 al. d)). b) Recusou a aplicação de normas constantes de acto legislativo – Artº 35º e
533º do Código das Sociedades Comerciais. c) A inconstitucionalidade do art. 787º do C.P.C. apenas foi aplicada na última Peça do processo imediatamente anterior ao presente recurso. Ora,
2. Sendo aquela norma de natureza adjectiva apenas pode ser arguida a sua inconstitucionalidade depois de ter sido aplicada.
3. Isto é antes de o saneador sentença a R. não sabia que aquela disposição iria ter aplicação nestes autos. Nem tinha possibilidade de o saber.
4. A hermenêutica jurídica exige que a leitura das disposições legais se peça de acordo com a teleologia da norma.
5. Assim não pode no presente ser exigido, o que, por natureza, não podia nunca ter sido lavrado.
6. No entanto, não pode a R. ser prejudicada no direito que tem ver apreciada tal não à luz do Direito Fundamental (C.R.P.) sob pena de mais uma vez estar a ser negada a Justiça.
7. Basta olhar ao nº 2 do Artº 70º para se infirmar da natureza “aberta” que a estatuição legal tem quanto à administração de Recurso.”
5. - O recurso não foi admitido, por decisão judicial de 16 de Outubro:
“Requerimento de fls. 183 e 1184 [sic]: Mediante o requerimento de fls. 157 a 159, interpôs a Ré A recurso de inconstitucionalidade da sentença proferida a fls. 100 a 108, ao abrigo do artigo 70.º, nº 1, als. b), c) e f), e nº 3, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15/11, alterada pela Lei nº 143/85, de 26/11, pela Lei nº 85/89, de 7/9, pela Lei nº
88/95, de 1/9, e pela Lei nº 13-A/98, de 26/02). Por decisão de fls. 160 e 161, foi a Ré convidada, ao abrigo do artigo 75.º-A, nº 5 da Lei do Tribunal Constitucional, a indicar, no prazo de 10 dias, a peça processual em que tenha suscitado, no decorrer da tramitação dos presentes autos, a questão da inconstitucionalidade da norma contida no nº 1 do artigo
787.º do Cód. Proc. Civil. No requerimento ora apresentado é alegado que, uma vez que aquele normativo foi aplicado na última peça do processo, antes do presente recurso, e desconhecendo que a mesma iria ser aplicada nos autos, não pode ser exigido à requerente, por natureza, a peça onde invocou tal norma. Com o elevado respeito que sempre é devido, não assiste razão à requerente. Se não vejamos: o primeiro guardião das normas e dos princípios jurídico-constitucionais é o juiz 'a quo ', e não, como parece partilhar a recorrente, o Tribunal Constitucional. Tal como resulta do artigo 223.º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, a este Tribunal cabe a apreciar a inconstitucionalidade de normas, nos termos dos artigos 277.º e seguintes, sendo que, de acordo com o artigo 280.º, nº 1, da mesma Lei Fundamental, cabe recurso das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Daí que a Lei de Funcionamento, Organização e Processo do Tribunal Constitucional exija, nesta última situação - que é o caso dos autos - a indicação da peça processual em que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade, pois só após essa questão ter sido colocada perante o juiz ' a quo ', e em face da posição por este assumida, fica legitimada a intervenção do Tribunal Constitucional, já que não vigora entre nós o mecanismo do recurso de amparo, que permitiria o acesso directo dos cidadãos àquela instância jurisdicional. Ora, no caso 'sub judice ' a questão da inconstitucionalidade da norma prevista no artigo 787.º, nº l, do Cód. Proc. Civil, não foi suscitada nos autos, em articulado próprio, após ter sido proferida a decisão de fls. 100 a 108, pelo que o presente recurso carece de objecto. Por outro lado, conforme dispõe o nº 2, do artigo 76.º, da Lei do Tribunal Constitucional, o requerimento de interposição do recurso deve ser indeferido quando não satisfaça os requisitos do artigo 75º.-A, da mesma lei, entre os quais se conta a indicação da peça processual em que o recorrente suscitou no decurso da acção, a questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade (cfr. nº 2 do art. 75.º-A). Convidada a indicá-la, a recorrente não o fez. Acresce que o presente recurso é intempestivo. Se não vejamos: Inconformada com a decisão de dissolução, a Ré interpôs dela recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, recurso este que foi liminarmente rejeitado por a causa, atento o seu valor, ser insusceptível de recurso. Não concordando, reclamou a Ré para o Presidente da Relação de Lisboa por entender que a presente acção é do tipo das acções sobre o estado das pessoas, a qual foi indeferida. No prazo legal, interpôs a Ré recurso para o Tribunal Constitucional do despacho de fls. 137 e 138, na parte em que recusou a aplicação da norma prevista no artigo 312.º do Cód. Proc. Civil, ao qual foi negado provimento. Inconformada, a Ré reclamou para a conferência, nos termos do disposto no artigo 78.º-A, da Lei do Tribunal Constitucional, que foi indeferida, tendo o acórdão transitado em julgado no dia 9 de Abril de 2002 (cfr. fls. 128 Vº, do apenso ). Fácil é de inferir, pois, que pretendendo agora a Ré recorrer para o Tribunal Constitucional da decisão de fls. 100 a 108, que declarou dissolvida a Ré, há muito decorreu o prazo de 10 dias para a sua interposição, previsto no artigo
75.º, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15/11. Assim, e pelos fundamentos expostos, ao abrigo do disposto no nº 2, do artigo
76.º da Lei nº 28/82, de 15/11, não admito o presente recurso, por intempestivo, falta de objecto e dos demais requisitos legais de admissibilidade. Custas do incidente a cargo da recorrente, com taxa de justiça que fixo em 3 UC
(cfr. art. 16.º, do Cód. Custas Judiciais). Notifique.
6. - É do assim decidido que se reclama agora.
O que se faz em termos essencialmente idênticos à peça processual apresentada, referida em 4. para daí retirar, por um lado, “não lhe poder ser exigido a Peça Processual onde se invocou a inconstitucionalidade por não haver Peça Subsequente àquela aliás douta decisão que aplicou o artigo 787º do C.P.C.”, e, por outro lado, defendeu a tempestividade do recurso, que “só podia ser interposto após baixa à 1ª Instância do Recurso e Reclamação quanto à retenção do Recurso Ordinário para a 1ª Instância se suscitou”.
7. - Recebidos os autos neste Tribunal, o magistrado do Ministério Público, ouvido nos termos do nº 2 do artigo 77º da Lei nº 28/82, observou:
“A presente reclamação carece obviamente de qualquer fundamento sério, só podendo perspectivar-se como pura manobra dilatória, destinada a protelar artificiosamente o termo do processo. Para além do objecto do recurso, interposto a fls. 139 dos autos, ser verdadeiramente ininteligível, é manifesto que o mesmo é intempestivo. Na verdade, tendo transitado em julgado o acórdão deste Tribunal Constitucional que dirimiu o precedente recurso, reportado à decisão proferida acerca da reclamação, deduzida perante o Presidente da Relação de Lisboa, em 9/4/02 (cfr. fls. 171 verso), é evidentemente intempestivo o recurso interposto em 12/7/02
(fls. 157), visando impugnar a decisão da 1ª instância, proferida em 27/4/01. Na verdade, estando irremediavelmente esgotados, em 9/4/02, os “recursos ordinários possíveis”, relativos ao decidido em 1ª instância, é manifesto que seria a partir de tal data que se contava o prazo para se interpor qualquer recurso de constitucionalidade, reportado a precedentes decisões das instâncias.”
O relator proferiu o seguinte despacho:
“Notifique a reclamante para: a) em 2 dias, e nos termos do nº 7 do artigo 84º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, dizer o que se lhe oferecer a respeito de uma eventual sua responsabilização como litigante de má fé dado que pode entender-se esboçar-se, da sua parte, um comportamento processual artificial e intencionalmente dilatório; b) em 10 dias, juntar aos autos cópia autenticada do despacho judicial a que se refere no nº 1 da sua reclamação para este Tribunal.”
8. - Expedida carta registada em 25 de Fevereiro, a reclamante veio, em 6 do corrente, dizer o que se passa a transcrever, na íntegra:
“A, Requerente nos autos em epígrafe, notificada para dizer se mantém interesse no presente, vem fazê-lo pela positiva, porquanto:
1. Há que distinguir o Recurso já intentado para este Tribunal, onde se suscitava a questão da inconstitucionalidade da não admissão do Recurso Ordinário para os Tribunais superiores em matéria, que a Recorrente entendia ser sobre o Estado das pessoas ( colectivas ). Matéria de natureza adjectiva. E,
2. Uma vez decidido aquele, que tinha como objectivo obter do Tribunal Constitucional a possibilidade de fazer subir os autos da 1ª Instância para a Relação. Por outro lado,
3. O presente recurso que pretende ver apreciada a questão substantiva, de mérito da decisão da 1 a Instância. Isto é a questão substantiva. Isto é, e tal como alegamos já no requerimento de interposição do Recurso, apreciar da Constitucionalidade das disposições legais, nomeadamente do Código Comercial, que ali se alega ser norma violada. Termos em que, deve ser apreciado o presente Recurso, sem prejuízo das Alegações que oportunamente se apresentará, neste douto Tribunal.”
9. - A reclamante não só respondeu à eventualidade equacionada da sua responsabilização como litigante de má fé em termos destituídos de pertinência quanto à questão, como nem sequer juntou aos autos cópia do despacho judicial, consoante notificação que lhe foi feita.
De qualquer modo, transitado em julgado o acórdão nº
126/02 proferido nos autos, em 9 de Abril de 2002 (cota de fls. 171-v.), o requerimento de interposição do recurso da decisão de 27 de Abril de 2001, da 1ª Instância (fls. 114 e segs.), apresentado em 9 de Julho de 2002 (cfr. fls. 16; dos autos consta o original, entrado a 12 desse mês: fls. 106), é manifestamente intempestivo. Como diz o Ministério Público no seu visto, estando irremediavelmente esgotados os recurso ordinários, seria a partir dessa data – 9 de Abril – que se deveria contar o prazo para recorrer da constitucionalidade, reportado a precedentes decisões da 1ª instância.
O exame dos autos revela, por sua vez, manifestamente, o uso reprovável que dos mesmos está a ser feito pela reclamante que, desse modo, tem protelado sem fundamento sério, mediante a utilização de sucessivos expedientes processuais, a regular tramitação processual. O que se considera constituir uma situação enquadrável na alínea d) do nº 2 do artigo 456º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69º da Lei nº 28/82, questão esta relativamente à qual foi a reclamante ouvida, nos termos do nº 7 do artigo
84º deste último diploma legal.
10. - Em face do exposto, decide-se:
a) indeferir a presente reclamação;
b) condenar a reclamante como litigante de má fé, nos termos do artigo 456º do Código de Processo Civil, na multa de 10 Ucs;
c) condenar a mesma nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta.
Lisboa, 28 de Abril de 2003 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida