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Processo 508/02
2ª Secção Relator: Cons. Paulo Mota Pinto Acordam em conferência no Tribunal Constitucional: I. Relatório Por sentença de 20 de Novembro de 2000, o Tribunal Colectivo do 1º Juízo da Vara Mista do Funchal condenou A, melhor identificada nos autos, na pena de prisão de
2 anos e meio com suspensão da execução da pena por 3 anos, na condição de, em igual período de tempo, pagar a indemnização em que foi condenada pela autoria material de um crime de peculato, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 375º do Código Penal. Inconformada, a arguida interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 4 de Julho de 2001, julgou improcedente o recurso. Veio então a arguida apresentar novo recurso, agora para o Supremo Tribunal de Justiça, que, na dúvida, foi admitido pelo Desembargador-relator do Tribunal da Relação de Lisboa, 'em homenagem a uma visão garantística do direito, maxime do constitucionalmente garantido direito de defesa'. A arguida encerrou as suas alegações com as seguintes conclusões:
'a) O critério atributivo da possibilidade de recurso perante este Tribunal, ao abrigo do artigo 400º f) do CPP, a contrario, diz respeito à medida da pena abstractamente aplicável tal como definida ab initio pela Acusação ou pelo Despacho de Pronúncia, para o que militam quer razões de forma (literais), quer razões de conteúdo; b) Ora, não obstante apenas ter sido concretamente aplicada à Arguida uma pena de 2,5 anos de prisão, a qual não poderá ser agravada à luz da proibição da reformatio in pejus, sempre se verifica tratar-se de um processo por um crime de peculato e cinco crimes de falsificação, em concurso efectivo, aos quais, de acordo [com] o disposto nos artigos 375º/1, 256º/1 e 77º/2, todos do CP, é aplicável a pena máxima e única de 23 anos; c) O mesmo será dizer que, ao abrigo dos mencionados artigos 432º b) e 400º f), ambos do CPP, resulta a perfeita recorribilidade, junto deste Tribunal, do Douto Acórdão ora contestado; d) Por outro lado, é ponto assente e expressamente reconhecido que o recurso decidido pelo Douto Acórdão recorrido versava, exclusivamente, sobre matéria de facto, cumprindo perfeitamente as normas aplicáveis a esse tipo de recurso; e) Nomeadamente, da respectiva motivação constava a discriminação completa dos factos e provas a discutir, bem como sentido que deles se pretendia extrair; f) Todavia, o Douto Acórdão ora recorrido limitou-se a concluir sumariamente sobre o objecto do referido recurso, negando-o em bloco, sem proceder a qualquer tipo de análise a esse propósito; g) É, assim, o Douto Acórdão ora recorrido nulo, por falta de fundamentação de acordo com o disposto nos arts. 379º/1 e 374º/2, ambos do CPP, devendo como tal ser declarado por este Tribunal.' Por acórdão de 17 de Janeiro de 2002, o Supremo Tribunal de Justiça julgou procedente a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, não o conhecendo e
'assim o rejeitando', dizendo, designadamente:
'(...)
É, assim, à luz do n.º 1, al. f) do art. 400.º do CPP, irrecorrível o acórdão proferido pela Relação (e que confirmou a sentença condenatória). Nos termos da al. b) do art. 432º do CPP só é admissível o recurso para o STJ de decisões que não sejam irrecorríveis, proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do art. 400º do mesmo diploma. E, como se viu, a irrecorribilidade da decisão mantém-se não obstante os valores do pedido e da sucumbência ultrapassarem os limites mínimos para admissibilidade de recurso, não sendo invocável em sentido contrária a pretendida, mas não consagrada, autonomia da acção cível enxertada. Neste sentido se vem pronunciando maioritariamente este Supremo Tribunal [em nota citavam-se acórdãos num e noutro sentido].
(...)
É finalmente de notar que são irrecorríveis os acórdãos das relações confirmativos da absolvição ou da condenação em processo crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a 8 anos.' Seguiu-se um requerimento de aclaração deste último acórdão, em que a recorrente considerou que a decisão a aclarar decidira pela inadmissibilidade do recurso
'apenas em função do carácter acessório da acção cível enxertada em processo penal, ficando aquela na estrita dependência deste último', mas não considerava
'salvo melhor compreensão, a questão da recorribilidade da própria questão penal no caso vertente, em face da redacção da alínea f) do art. 400º do CPP'. O Supremo Tribunal de Justiça decidiu, por acórdão de 11 de Abril de 2002, desatender o pedido formulado pela recorrente. A recorrente veio então apresentar recurso para o Tribunal Constitucional nos termos do artigo 70º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro, para apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 400º, n.º 1 alínea f) do Código de Processo Penal, invocando violação do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa. Por despacho datado de 2 de Maio de 2002, o Conselheiro-relator no Supremo Tribunal de Justiça decidiu não admitir o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
'Como reconhece a recorrente, a questão de constitucionalidade que pretende ver conhecida pelo Tribunal Constitucional só foi aflorada no pedido de aclaração do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça. Verifica-se, assim, que ela não suscitou a questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante este Tribunal, por forma a obrigá--lo a dela conhecer – art. 72º, n.º2 da LOFTC.' Inconformada, a recorrente vem reclamar para o Tribunal Constitucional, 'nos termos e ao abrigo do disposto no art. 76º/4 da Lei n.º 28/82', apresentando as seguintes conclusões:
'A)- A Arguida, ora Reclamante, naturalmente que, pela sua parte, considera não ter podido, segundo um critério de razoabilidade e normalidade, previsto, e como tal suscitado, a dita questão de inconstitucionalidade em momento anterior do processo; B)- Isso mesmo logo resulta da própria natureza da questão de constitucionalidade em causa, porque relativa à recorribilidade ou não para o Supremo Tribunal de Justiça, isto é, quando apenas este último Tribunal, em regra, faltará e poderá pronunciar-se; C)- Mais resulta ainda da consideração – que a Arguida, salvo melhor opinião, continua a defender, convicta – de que a respectiva interpretação do art. 400º/1 f) do CPP é clara e manifestamente a mais conforme quer ao espírito, quer sobretudo à letra, de tal forma que a interpretação profundamente contrária do Supremo Tribunal de Justiça não poderá deixar de ser considerada como, na verdade, excepcional; D)- A não ser assim, nula seria a protecção perante as interpretações mais inesperadas e descabidas de qualquer norma, em fase terminal dos Autos, como é o caso; E)- E, para terminar, em caso de dúvida, sempre nos parece de assegurar o direito constitucionalmente garantido à defesa.' O representante do Ministério Público neste Tribunal pronunciou-se sobre a reclamação defendendo a sua manifesta improcedência, por a reclamante ter tido
'plena oportunidade processual para suscitar, ‘durante o processo’, a questão de inconstitucionalidade que só intempestivamente colocou, em sede de pedido de aclaração do acórdão, proferido pelo Supremo, que considerou irrecorrível a decisão impugnada.' Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos Segundo a reclamação, nos presentes autos 'tudo está em saber se a questão de constitucionalidade suscitada pela Arguida, ora Reclamante, apenas suscitada no respectivo Pedido de Aclaração, podia ou não tê-lo sido em momento anterior do processo, em função de um juízo normal, razoável, de antecipação ou previsibilidade.' Cumpre notar que, se, como pretende a reclamante, o Supremo Tribunal de Justiça não aplicou a norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal na sua decisão de 17 de Janeiro de 2002, e tal não obstou a que a reclamante tenha suscitado a questão da sua inconstitucionalidade depois dela – no requerimento de aclaração de tal decisão -, nenhuma razão havia para que o não tivesse feito logo antes da decisão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Janeiro de 2002. Num momento e noutro, antes de uma e outra das decisões, a reclamante tinha o ónus de poderar a relevância de tal norma para a decisão da sua pretensão. Aliás, no presente caso, resulta mesmo dos autos a demonstração prática de que, no momento em que formulou a sua motivação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, a recorrente se debateu efectivamente com as duas possíveis interpretações da norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal, uma das quais favorável às suas pretensões, a outra desfavorável, não sustentanto, porém, a inconstitucionalidade desta última. Nas palavras que usou (fls. 23 dos autos) na motivação do recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça: 'a questão que se põe é a de saber se estamos, ou não, ‘em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções’. (...) Ou seja, questiona-se em primeiro lugar se o critério atributivo da possibilidade de recurso perante o
[Supremo Tribunal de Justiça], ao abrigo do mencionado artigo 400º, alínea f), a contrario, diz respeito à medida da pena abstractamente aplicável' (a seguir ainda considerava a incidência da proibição da reformatio in pejus na fixação da pena, em recursos intentados apenas pelos arguidos). Simplesmente, e como se disse, argumentando a favor da interpretação que tinha por preferível, como o fez, em momento algum dessa motivação a recorrente arguiu como inconstitucional a interpretação oposta. Assim, adoptando o Supremo Tribunal de Justiça essa interpretação que lhe era desfavorável, como fez, não teve tal tribunal de se pronunciar sobre uma questão de constitucionalidade que lhe não fora posta. O juízo que sobre esta questão foi solicitado ao Tribunal Constitucional não configuraria, pois, reapreciação de uma anterior decisão sobre uma questão de constitucionalidade. A questão de constitucionalidade não foi, portanto, suscitada durante o processo, isto é, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo sobre a questão para cuja resolução é relevante a norma impugnada (cfr., por exemplo, os acórdãos ns. 90/85, 352/94 e 584/96, publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 11 de Julho de 1985, de 6 de Setembro de 1994 e de 29 de Outubro de 1996), não se estando perante uma daquelas decisões-surpresa que tornem inexigível a adopção de uma estratégia processual adequada (cfr., por exemplo, os acórdãos ns. 479/89, 166/92 e 370/94, publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de
1992, de 18 de Agosto de 2002 e de 7 de Setembro de 1994). Falta, pois, esse requisito do recurso de constitucionalidade interposto, razão pela qual, como decidido no despacho reclamado, dele se não pode tomar conhecimento. III. Decisão Pelos fundamentos expostos decide-se confirmar o despacho reclamado de não admissão do recurso de constitucionalidade pretendido interpor. Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 19 de Março de 2003. Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Luís Nunes de Almeida